Leilão do Estado para centrais solares e eólicas no parque Peneda-Gerês já gera contestação
Dois projectos de centrais solares e eólicas no Parque Nacional da Peneda-Gerês, lançados através de leilão pelo Estado, violam o plano de ordenamento do parque e ameaçam ter impacto ambiental.
Dois projectos de centrais solares e eólicas no Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG), lançados pelo Estado através de leilão, estão a gerar contestação junto de associações e especialistas ambientais. No conjunto dos dois projectos está prevista a instalação de cerca de 44.000 painéis solares flutuantes nas albufeiras de Paradela e Salamonde, ambas inseridas no PNPG, e de cinco eólicas no limite exterior ao perímetro do parque. Os contestatários alegam que a magnitude da empreitada, que ainda contempla a construção de torres de alta tensão e acessos rodoviários, compromete a integridade ecológica e paisagística do parque nacional, e contraria o próprio Plano de Ordenamento do PNPG (POPNPG).
Raul Cerveira Lima, investigador em poluição luminosa e antigo membro da Fapas – Associação Portuguesa para a Conservação da Biodiversidade, sustenta que a instalação de toda a infra-estrutura nas duas albufeiras, separadas entre si por 15 quilómetros, irá ter “um grande impacto numa zona protegida e em toda a paisagem e habitats naturais da região”. Embora as albufeiras, por si só, já constituam um ambiente artificial, houve uma adaptação, há vários anos, das “margens e da fauna” lá existentes. Aqui, pelo contrário, refere o ambientalista, prevê-se “produção de energia no único parque nacional do país, que já sofre com uma enorme pressão turística e onde não há quase controlo de entrada de pessoas”.
Raul Cerveira Lima condena a utilização de zonas protegidas para a produção de energia, dando os exemplos de “França e Holanda, onde há imensa produção eólica, mas em zonas industriais”. “A eficiência é menor, mas protege-se a paisagem de outros locais”, sublinha, alertando ainda para o facto de que as torres de alta tensão e eólicas previstas nos dois projectos do Gerês podem também “agravar a poluição luminosa”, afectando os ecossistemas.
Os projectos de Paradela e Salamonde foram alvo de estudos de impacte ambiental (EIA) e estiveram em consulta pública até ao final de Julho. Ainda não há pareceres do ICNF, entidade responsável pela gestão do parque nacional, e da Agência Portuguesa do Ambiente (APA). Em resposta ao PÚBLICO, o ICNF refere que não se irá pronunciar sobre o assunto enquanto decorre o prazo para análise, e a APA não respondeu às questões apresentadas.
Para Miguel Pimenta, da Iris – Associação Nacional de Ambiente, a decisão das entidades não pode ser outra que não o chumbo dos projectos. Em causa, lembra, está o artigo 7.º do POPNPG que estabelece a interdição da “instalação de infra-estruturas de produção de energia eléctrica, excepto, no caso de recursos hídricos ou eólicos, em sistema de microprodução, ou, no caso de recursos hídricos, no troço já artificializado do rio Cávado que constitui limite administrativo do Parque Nacional da Peneda-Gerês”. Nos próprios EIA dos projectos está descrito que a componente fotovoltaica flutuante do projecto “está dependente do parecer do ICNF” pelo facto de estar “inserida no limite sul” do PNPG.
Atendendo às condicionantes em causa, Miguel Pimenta alerta que, além das consequências na “fauna aquática e avifauna” e na “degradação da qualidade da água”, a eventual aprovação dos projectos constituirá uma “violação da lei” e abrirá “um precedente grave”. O ambientalista, que já fez parte do ICNF e contribuiu para a redacção do POPNPG de 2011, lembra que “actualmente não há, no PNPG, nenhum projecto semelhante”, recordando que já houve, no passado, “tentativas de algumas empresas de avançar com projectos semelhantes”, nomeadamente de centrais eólicas na serra Amarela e serra da Peneda. “Na altura a legislação não era tão restrita e mesmo assim esses projectos foram chumbados. Mais do que o impacto paisagístico, olhava-se para a questão da biodiversidade.”
O POPNPG foi aprovado, relembra Miguel Pimenta, “precisamente por causa das grandes pressões que existiam”.
Já Miguel Dantas da Gama, membro do conselho estratégico do ICNF – apesar de estar à margem de pareceres consultivos na entidade – e profundo conhecedor do PNPG, acredita que os dois projectos são mais um sinal de “pressão sobre o parque”, particularmente na barragem de Paradela, onde há menos aglomerado urbano e cuja paisagem “é das mais preservadas em toda a serra do Gerês”.
Reforçando que os projectos “vão contra o estipulado” no POPNPG, onde “não estão consentidas explorações com estas dimensões naquelas albufeiras”, o ambientalista defende que há outro problema além dos painéis fotovoltaicos: a instalação de “mais uma linha eléctrica” entre as duas albufeiras e a construção de acessos rodoviários, que podem contribuir para a “entrada de caçadores furtivos, ‘piqueniqueiros’ ou incendiários”, à semelhança do que já acontece noutras zonas circundantes do parque nacional.
Miguel Dantas da Gama destaca que o PNPG “é a única área protegida com estatuto, a que os políticos costumam chamar ‘jóia da coroa’” e deve ser “olhado como tal”.
Local das centrais determinado pelo Governo
Nestes dois projectos foi o próprio Estado a determinar a instalação dos painéis solares em albufeiras. Foi em Novembro de 2021 que o Governo, num despacho assinado pelo então secretário de Estado adjunto e da Energia, João Galamba, e pela secretária de Estado do Ambiente, Inês Santos Costa, determinou a abertura de um concurso público, sob a forma de leilão, com o objectivo de atribuir a privados reserva de capacidade em parte da Rede Eléctrica de Serviço Público (RESP) para a injecção de electricidade gerada a partir de energia solar. No programa de procedimento definiu-se que a conversão de energia solar seria feita através de centros fotovoltaicos flutuantes a instalar em albufeiras, nomeando, entre sete delas, as de Paradela e Salamonde.
A energética Finerge, empresa que venceu o leilão, garante ao PÚBLICO que “não teve qualquer papel” na escolha das albufeiras e dos pontos de ligação à RESP, destacando que os dois projectos “respeitam a área de implantação prevista no procedimento concorrencial”.
Segundo a empresa, a electricidade produzida nas duas albufeiras poderá ser vendida por duas vias: “em mercado organizado ou através de contrato bilateral; e através de participante no mercado que preste serviços de agregação da produção”. Em troca, é exigido o pagamento de uma compensação fixa ao Sistema Eléctrico Nacional (SEN).
Para os contestatários, o destino da energia produzida é outro dos aspectos censuráveis em todo o processo. Miguel Dantas da Gama refere que a energia produzida nas centrais, para onde estão também previstas as construções de subestações de 30kV e 60kV, será para alimentar centros urbanos, assinalando que em redor do Gerês, onde abundam eólicas, as populações “queixam-se muitas vezes que não são beneficiadas, apesar de que estarem num lugar onde se produz muita energia”. Também Miguel Pimenta assinala que “a população, como é costume, não vai ganhar nada com isto”.
Nos EIA de ambos os projectos está contemplado o pagamento de compensações aos municípios de Vieira do Minho, do distrito de Braga, e de Montalegre, do distrito de Vila Real, onde estão instaladas as albufeiras. O PÚBLICO enviou questões a ambos os municípios, mas não obteve resposta. A Finerge diz que tem como prática “envolver os municípios numa fase inicial de concepção do projecto” e garante que tem cumprido “escrupulosamente as suas obrigações em matéria de compensações para os municípios e comunidade local nos termos da lei”.