Para lá de Paris, a discussão sobre os SUV nas cidades está para durar
Depois de um referendo, Paris vai triplicar o preço do estacionamento para quem entra na cidade com automóveis de mais de 1600 quilos. UE instada a legislar sobre dimensões máximas de ligeiros.
Maiores, mais confortáveis e seguros para quem os conduz e mais rentáveis para a indústria automóvel, os chamados Sport Utility Vehicles estão no topo das vendas nos principais mercados. Mas, em contraponto, o processo de “suverização” do parque automóvel mundial está sob escrutínio, pelos impactos que estes ligeiros bem mais pesados do que os carros mais vendidos há duas décadas têm no ambiente, na segurança de outros transeuntes e no próprio espaço urbano, numa fase em que as cidades estão pressionadas a reparti-lo por modos de deslocação mais sustentáveis. Respaldada pelo resultado do referendo de domingo passado, a Câmara de Paris vai triplicar o preço do estacionamento para quem entra na capital francesa com este tipo de veículo — um gesto que está longe de ser isolado.
Veículos com características que hoje vemos nos Sport Utility Vehicles (SUV) fazem parte da história da indústria automóvel há muitas décadas. Mas foi só com o golpe de génio da Nissan — que ao desenvolver em 2006 o Qashqai descobriu uma fórmula de sucesso — que os SUV passaram a ter um lugar cativo no portfólio das principais marcas. Seja na sua versão mais compacta, os chamados “crossover”, seja nos de maiores dimensões conhecidos pela sigla inglesa SUV.
A resposta dos consumidores a estes veículos de plataforma elevada, que conjugam características que antes conhecíamos apenas nos todo-o-terreno com um design e conforto que apelam a um público urbano foi avassaladora. Nos últimos anos, em mercados como o europeu, os SUV acabaram por ser os veículos mais procurados, representando, no ano passado, uma fatia de quase 50% das vendas. Portugal não foi excepção.
Sucesso e preocupação
Nos Estados Unidos, berço de Henry Ford e de automóveis que o cinema tornou icónicos, a paixão por carros grandes é mais antiga e conhecida. Mas foi também o desenvolvimento mais recente de modelos de grandes dimensões para “responder” a uma clientela citadina que fez explodir a presença deste tipo de veículo no espaço urbano dos EUA, país onde as grandes distâncias e décadas de planeamento territorial centradas no automóvel tornaram maior a dependência do carro nas deslocações quotidianas.
No início deste século, e ainda antes de a Nissan inventar a sua “cash-cow”, como o Qashqai por vezes era apelidado, pelo seu sucesso comercial, já os americanos discutiam os efeitos perniciosos deste fenómeno, entretanto cunhado como “autobesity”: quer na segurança rodoviária; quer, mais recentemente, nas emissões de gases com efeito de estufa e na poluição. Ali, como em outros países, grupos de jovens anónimos esvaziam os pneus destes carros como forma de chamar a atenção para um problema que se tornou global.
A Europa está longe do panorama americano, onde, entre 2000 e 2019, ao mesmo tempo que diminuiu o número anual de mortes de condutores de veículos, as mortes anuais de peões aumentaram 30%, tendo o incremento de atropelamentos fatais envolvendo SUV sido de 81%, entre 2009 e 2016, como revelou o Insurance Institute for Highway Safety. Vários estudos no outro lado do Atlântico correlacionam o aumento da gravidade e do risco de morte de utilizadores vulneráveis com o aumento da presença no espaço urbano de veículos mais altos, mais pesados e, em muitos casos, mais potentes, capazes de, em caso de abalroamento ou atropelamento, causar mais danos físicos, ou a morte, a transeuntes a pé ou em duas rodas.
Os riscos de um choque com um SUV
Mas o predomínio deste tipo de veículos, mesmo que um pouco mais pequenos e apetrechados de dispositivos de segurança, está no radar das organizações europeias, como o European Transport Safety Council (ETSC). Esta entidade reúne organismos públicos e privados de segurança rodoviária de 25 países europeus, incluindo a Prevenção Rodoviária Portuguesa e a Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária.
Nos últimos anos, a ETSC acrescentou ao seu leque de preocupações — no topo das quais continuam o excesso de velocidade e o consumo de álcool — o aumento de peso, dimensão e potência dos veículos.
“Nos últimos 20 anos, as características dos veículos evoluíram cada vez mais em benefício dos ocupantes e em detrimento de quem lhes surge no caminho. A massa média das viaturas aumentou 30% (de 1186 kg em 2000 para 1521 kg em 2021); a potência média aumentou 60% (de 65 kW em 2000 para 103 kW em 2021 e a altura média do capot aumentou 15%, de 73 cm para 83 cm)”, lê-se num estudo de Setembro do ano passado da organização de segurança rodoviária belga VIAS, de que a ESTC fez eco.
A VIAS analisou 300 mil colisões entre automóveis de passageiros e entre estes veículos e utilizadores vulneráveis, ocorridas entre 2017 e 2021, e avaliou os efeitos deste aumento de massa, peso e potência na (in)segurança rodoviária. “Numa colisão entre um carro pesando 1600 quilos e um outro mais leve, de 1300 quilos, o risco de lesão fatal diminui 50% nos ocupantes do mais pesado, mas aumenta quase 80% nos ocupantes dos carros mais leves. A cada incremento de 300 quilos na massa de um veículo, o risco de lesão fatal nos utilizadores vulneráveis (peões e ciclistas) aumenta 30%”, lê-se no estudo.
As variações são distintas, conforme a análise recaia sobre as pick-ups, mais perigosas, ou os SUV. No caso destes, o incremento da segurança dos ocupantes detectado neste estudo foi de 25%, e o incremento do risco em quem seguia nos carros mais leves era de 20%. No mesmo sentido, o aumento da altura da frente do carro mostrou ter efeitos assinaláveis. “Um peão ou ciclista atingido por um automóvel com uma altura de capot de 90 cm corre um risco de 30% de lesão fatal do que se for atingido por carro [com uma frente] dez centímetros mais baixa” avisam, reiterando um dado já apontado por outros estudos.
O trabalho da VIAS apontava também para o facto de, em muitos casos, o maior peso vir associado a um incremento de potência, que surge frequentemente “a par de uma condução mais desportiva”. Esta é já uma questão comportamental, mas o que os dados mostram é que o excesso de velocidade continua a ser um factor preponderante na sinistralidade na Europa, e que aliar a ela mais massa, não está a tornar as ruas mais seguras. Pelo menos para todos os que a utilizam.
A directora de políticas da ETSC, Ellen Townsend, afirma que o estudo “demonstra como esta tendência imparável da indústria automóvel de vender carros cada vez maiores e mais pesados em todos os segmentos é uma má notícia para a segurança rodoviária, mas particularmente para aqueles que conduzem carros mais pequenos e mais eficientes e para os utilizadores vulneráveis. Esta tendência só está a piorar com a electrificação do parque automóvel, dado que os SUV precisam de baterias mais pesadas. É de uma importância crítica que a UE, os governos nacionais e as autoridades locais pressionem o mercado para veículos mais adequados aos seus propósitos e mais seguros para todos os que circulam nas estradas.”
O alerta do Euro NCAP
As preocupações multiplicam-se. Há dois meses, o próprio organismo europeu encarregado de testar a segurança dos novos veículos colocados no mercado, o Euro NCAP, alertou para os riscos desta tendência no seu último comunicado de 2023, após a análise a 11 viaturas.
Os responsáveis pelo programa de avaliação europeu começam por notar que, no contexto dos compromissos ambientais globais, “poderia parecer encorajador verificar que a grande maioria destes [11 carros testados] é [composta por] veículos eléctricos”, mas preferiram sublinhar esse outro movimento do mercado automóvel que “põe não apenas os outros condutores em risco, como tem ainda um efeito adverso no ambiente. Dos 11 carros testados, apenas três pesam menos de duas toneladas e apenas um deles, o Smart #3, é classificado como um pequeno familiar”, frisam.
“Durante anos, Euro NCAP foi acusado de estar a condicionar este aumento do peso dos carros. Pensava-se que dispositivos de segurança adicionais implicavam mais peso. Isso nunca foi, de facto, assim, e o incremento do peso dos veículos que hoje em dia verificamos não está relacionado com a segurança dos mesmos — tem que ver com as preferências dos consumidores por viaturas maiores e com a electrificação, com baterias cada vez maiores a serem usadas para responder à ansiedade dos consumidores quanto à sua autonomia”, acrescentou o secretário-geral do Euro NCAP, Michiel van Ratingen, contrariando algumas das justificações apontadas pela indústria para esta tendência.
Carros crescem. As ruas nem por isso
Numa outra análise tornada pública há duas semanas, a organização ambientalista Environment & Transport – que ajudou, por exemplo, a desocultar a fraude com as emissões dos automóveis, o DieselGate – divulgou que, nas primeiras décadas deste século, a cada dois anos a largura média dos carros comprados pelos europeus aumentou um centímetro. Parece pouco, mas como as ruas das cidades europeias, consolidadas, em muitos casos, há séculos, não alargaram, os modelos mais recentes preferidos pelos consumidores ocupam uma maior percentagem do espaço disponível.
“Entre os cem modelos mais vendidos em 2023, 52% dos veículos vendidos eram demasiado largos para as especificações mínimas de estacionamento nas ruas (180 cm) em grandes cidades, incluindo Londres, Paris ou Roma, detectou-se na pesquisa. Estacionamentos interiores [em parques e garagens] tornaram-se apertados mesmo para o automóvel médio mais recente, sendo que os SUV mais largos já nem cabem. Medindo cerca de dois metros de largo, os SUV de luxo deixam pouco espaço para os ocupantes saírem dos carros num lugar de parque de estacionamento típico (240 cm)”, descreve a organização num comunicado.
Esta organização lembra que segundo os regulamentos existentes, na UE os novos carros estão limitados à mesma largura máxima dos autocarros e camiões, fixada em 255 cm. E consideram que, “a menos que a UE reveja esse limite, e que as cidades, como Paris e outras, imponham preços de estacionamento mais altos, os grandes SUV e pick-ups vão continuar a expandir as suas dimensões até ao tecto previsto” para os veículos pesados.
A Comissão de Transportes do Parlamento Europeu deverá votar precisamente na semana que agora começa emendas à directiva sobre pesos e dimensões de veículos. E entre muitas alterações referentes a veículos comerciais, incluem-se propostas pedindo que a UE reveja, até ao final de 2024, a largura máxima permitida para pick-ups e SUV, e produza legislação que enquadre com clareza os limites admissíveis.
Um retrocesso nas emissões
O urbanista brasileiro Jaime Lerner (1937-2021) costumava dizer, nos anos 70, que o automóvel seria um dia olhado como o tabaco das cidades. Desde a sua primeira passagem pela presidência da Câmara de Curitiba, a indústria automóvel desenvolveu soluções para minimizar o consumo energético, a poluição e as emissões de gases com efeito de estufa dos veículos. Mas, num planeta onde se estima haver quase 1,5 mil milhões de carros matriculados, este processo de “suverização” em curso tem sido criticado como um retrocesso.
Em 2022, a Agência Internacional de Energia alertava que, entre 2010 e 2021, os SUV (incluindo os mais pequenos crossover) tinham sido os segundos maiores responsáveis pelo aumento global das emissões de gases com efeito de estufa. Atrás, apenas, do sector da produção de electricidade. Noutro relatório de Fevereiro do ano passado, a mesma organização alertava que, em 2022, a totalidade destes veículos emitiu quase mil milhões de toneladas de CO2.
Consultando a Base de Dados Europeia para a Pesquisa Atmosférica Global (EDGAR), vemos que, no mesmo ano, foi esse praticamente o total de emissões de CO2 do Japão (1082 milhões de toneladas). E só a China (12,7 mil milhões), os EUA (4,8), a Índia (2,7), o bloco da UE a 27 (2,8) e a Rússia (1,9) ficaram acima desses valores. Ou seja, nesta lista os SUV surgiriam em sétimo lugar.
A estas preocupações acresce ainda a da emissão de partículas finas (PM2,5), responsáveis por doenças graves e milhares de mortes prematuras, que tem como fonte, entre outras, o atrito dos pneus no piso das estradas. Ao serem mais pesados e precisarem de pneus mais largos, os SUV libertam mais destas partículas que se tornaram o principal foco de poluição do sector, alertam várias entidades, como a empresa inglesa Emissions Analytics ou a coligação de associações Environmental Coalition on Standards, que pedem mais atenção e medidas para mitigar o problema.
Paris hoje, a pensar em 2050
É neste contexto global que Paris pretende triplicar a tarifa de estacionamento para os condutores que entrem na cidade com automóveis de mais de 1600 quilos, a partir de 1 de Setembro. O referendo do passado domingo, contou com pouco mais de 6% de votantes, 54% dos quais apoiaram a medida, mas a baixa taxa de participação tanto pode ser lida como um desinteresse dos parisienses (que não pagarão essa tarifa), como um sinal da pouca mobilização conseguida pelas vozes que se vêm manifestando contra a medida.
Na verdade, salienta o engenheiro e urbanista Frederico Moura e Sá, docente nas áreas do Espaço Público e da Mobilidade da Universidade de Aveiro, que acompanha a evolução recente desta cidade, a medida é apenas mais uma entre muitas que a maioria liderada pela socialista Anne Hidalgo, em coligação com os Verdes, vem pondo em prática, no âmbito de uma estratégia de humanização do espaço público que se integra no objectivo de atingir a neutralidade carbónica até 2050.
Há anos que, a pensar nesse futuro, o município pôs em prática políticas públicas ambiciosas de mitigação e adaptação que incluem o reforço da vegetação, e que promovem, também, uma alteração profunda do padrão de mobilidade. Tem-se assistido a um reforço do transporte público, e das condições para as deslocações a pé e em bicicleta, que teve um boom com a aceleração da criação de ciclovias durante a pandemia de covid-19. Hidalgo prometeu tornar toda a capital amigável para quem escolhe este último modo de transporte até 2025. A frequência das ciclovias duplicou, num ano, e já há mais bicicletas do que carros em alguns eixos viários importantes, nas horas de ponta.
Fazer escolhas
Num espaço urbano denso e consolidado, do tamanho de Lisboa mas com o quádruplo da população, não há forma de arranjar mais espaço para vegetação e para os modos de deslocação menos poluentes sem o retirar ao automóvel. Apesar de representar 13% das deslocações, mais de 50% do espaço público da capital francesa está dedicado a este tipo de veículo, e o município tem vindo a concretizar o objectivo de eliminar metade dos 140 mil lugares de estacionamento à superfície. Uma medida que tem muitos críticos, mas cujos benefícios posteriores vão ganhando, também, adeptos.
Longe da atenção mediática suscitada pelo referendo sobre os SUV, no mesmo dia, em vários bairros administrativos decorreram votações sobre projectos de âmbito local. Quatro das cinco perguntas colocadas à votação em outros tantos distritos estavam relacionadas com este processo de reafectação do espaço público para mais árvores, peões ou bicicletas, e três delas mereceram a aprovação expressiva de quem quis participar.
A excepção aconteceu no 8.º Bairro Administrativo, que inclui a Avenida dos Campos Elísios, para a qual, depois dos Jogos Olímpicos deste Verão, a Câmara de Paris tem previsto um ambicioso plano de renaturalização. Nesta zona, 58,9% dos votantes afirmou-se contra a aceleração da pedonalização e da ecologização das estradas locais.
Esta votação é demonstrativa de como o tema da reafectação do espaço público divide, ainda, a opinião pública. Seja em Paris, que tem posto em prática os conceitos de Cidade de Quinze Minutos, de Carlos Moreno, como noutras cidades e países, incluindo Portugal.
O voto e o lugar social do carro
Este facto foi notório também no referendo principal de domingo passado. Apesar de a nova tarifa para os SUV se destinar a quem entra na cidade e não aos seus moradores, em vários bairros administrativos do oeste da cidade, votou-se claramente contra a proposta do município. E, para o conselheiro municipal David Belliard, adjunto de Anne Hidalgo para o espaço público e mobilidade, esta diferença mostra como a relação com o carro está ligada ao nível de rendimentos.
“Basicamente, quanto mais rico você for, mais deseja manter seu carro. Não surpreende que os moradores do 16.º, bairro nobre da capital, tenham rejeitado a proposta de aumento de preços em 82%. Em contraste, os distritos do leste de Paris, que são mais mistos socialmente, votaram massivamente a favor da medida”, escreveu na segunda-feira passada o membro dos Verdes, na sua página do Linkedin. A acompanhar o post, Belliard mostrava um mapa de resultados que, legendava, “sobrepõe-se quase distrito a distrito com o da taxa de motorização (1,2 carros por habitante no 16. º, apenas 0,2 nos distritos orientais) e com os dos resultados eleitorais municipais”.
David Belliard considera que a votação mostra também “que a questão do lugar do carro nas nossas vidas é e continua a ser uma questão eminentemente política”. E em Paris, acrescentava o conselheiro, “isto é particularmente verdade porque os seus habitantes são, sem dúvida, os menos vinculados ao automóvel, dadas as alternativas significativas que existem, nomeadamente em termos de transportes públicos. Recorde-se que este é um território único: apenas 33% dos parisienses possui carro. Esta taxa ultrapassa os 80% a nível nacional”.
A publicação de Belliard foi recebida, como outras reflexões suas sobre o espaço público e o lugar do carro na cidade, por uma avalancha de críticas, várias delas considerando a medida como um sinal da veia autoritária dos ecologistas que acompanham Hidalgo. Em França, país onde um conselho de cidadãos aprovou a inclusão de frases promovendo o transporte público, ou o andar a pé e de bicicleta na publicidade automóvel, outras cidades, como Lyon ou Grenoble, já avançaram, ou pretendem avançar, com medidas semelhantes à de Paris, concitando a ira, entre outros, da associação 40 millions d’Automobilistes, que sente coarctada a liberdade de escolha dos cidadãos que representam.
Debate tímido em Portugal
O lugar do automóvel no espaço público tem sido alvo de forte discussão desde meados do século. Por essa altura, a partir dos EUA, nomes como Lewis Mumford (1895-1990), autor de A Cidade na História e Jane Jacobs (1916-2006), com o seu A Morte e a Vida de Grandes Cidades Americanas, alertaram para os riscos de destruição do tecido social e urbano colocados pelo planeamento modernista, assente, desde os anos 20, na expansão do uso do automóvel individual.
A maioria das cidades europeias escapou a esse modelo de desenvolvimento que, do lado de lá do Atlântico, rasgou auto-estradas pelo meio de bairros. Mas não a um processo de motorização que, assinala Frederico Moura e Sá, no caso português é tanto consequência como causa de uma dispersão da urbanização, que o planeamento urbano não conseguiu, durante décadas, controlar.
Considerando que o território importa, e que não podemos deixar de ter em conta as características do país, ao mesmo tempo que observa com interesse o que se faz lá fora, o professor da Universidade de Aveiro espera que algumas das tendências internacionais não sejam importadas acriticamente, sem que antes tentemos resolver, como o vem fazendo Paris, frisa, outros problemas.
Repetindo um argumento já partilhado com o PÚBLICO, este urbanista não deixa de assinalar o poder da política pública na transformação dos hábitos de mobilidade. Se no caso português, as opções tomadas instigaram a motorização da sociedade, no caso francês, e em Paris, particularmente, é notório como as medidas de atracção (melhorias do transporte público, das condições para andar a pé e de bicicleta, etc.) e de dissuasão (como esta última dos SUV) podem ter um efeito oposto, neste caso positivo. Ou seja, para o mal e para o bem, ambas funcionaram, insiste.
O que lhe parece ser também claro é que o caminho para um novo programa da rua, que qualifique e humanize o espaço, deve ser feito por fases, trabalhando primeiro a diminuição do diferencial de velocidades que é o principal factor que determina a necessidade de segregar/separar eixos para os vários utilizadores. E, aqui, lamenta que a velocidade máxima de 30 km/h na maioria das vias urbanas não seja já o padrão da maioria das ruas portuguesas.
Depois, acrescenta, há que diminuir o volume de tráfego, com medidas que o ajudem a evaporar e promovam a mudança de meio de transporte, como Paris vem fazendo. Dependendo do estádio em que cada cidade se encontre, Frederico Moura e Sá considera que então, numa terceira fase, é possível ir mais a fundo, sem risco de cometer injustiças, e pôr em prática medidas mais direccionadas para os vários tipos de utilizadores. E se é para termos espaços partilhados e favorecer o peão ou quem ande de bicicleta, o convívio com veículos maiores e mais pesados deve ser evitado, quer pelos riscos efectivos, quer pela percepção de insegurança, assume.
O caminho para o q.b.
Já o presidente da Zero considera que, além das medidas de planeamento urbano de âmbito local, a fiscalidade automóvel deve mudar e passar a ter em conta, afora o CO2 emitido, o peso dos veículos. Crítico daquilo a que chama a fraude dos híbridos plug in, muito comuns no segmento dos SUV, e que emitem quase o dobro do que indicam os seus fabricantes, Francisco Ferreira insiste que o próximo Governo deve dar sinais aos consumidores, em favor de escolhas mais racionais e coerentes com os objectivos ambientais a que o país se comprometeu.
“Este tipo de veículos consome mais recursos para ser produzido, gasta mais energia na construção, na operação e até no desmantelamento, desgasta mais a estrada, ocupa mais espaço. A sua pegada, em termos de passageiro/quilómetro, é muito maior do que de outros carros mais pequenos e vai no sentido contrário ao que precisamos de conseguir, mesmo quando se trata de veículos eléctricos”, insiste o especialista do Centro de Investigação em Ambiente e Sustentabilidade da Universidade Nova de Lisboa. Ferreira lamenta ainda que os contactos da Zero com o Governo ainda em funções, o Ministério das Finanças e os grupos parlamentares não tenham conduzido, já, a uma alteração do quadro legal.
Francisco Ferreira e Frederico Moura e Sá assumem que estas mudanças contarão sempre com bastante oposição, mas quer um quer outro avaliam positivamente o facto de o referendo de Paris não ter gerado nenhuma revolta — e por aqueles dias, os agricultores franceses, às portas da cidade, mostravam, de forma clara, a sua oposição aos impactos da agenda ambiental francesa e europeia na sua actividade.
“Sabemos bem que o caminho não será pacífico. Mas só quando nos encontramos num lugar sem carros e desfrutamos de um espaço com qualidade de vida, menos poluição, sem ruído, seguro, é que sentimos que temos carros a mais e que o espaço seria mais bem usado para outras actividades”, argumenta Francisco Ferreira.
A visibilidade que o tamanho e o sucesso de vendas conferiram aos SUV colocam-nos na linha da frente de um processo que toca no lugar físico e simbólico que o automóvel mantém nas nossas vidas. Os veículos da moda não deixam de ser, como nota Frederico Moura e Sá, um sinal de um tempo em que “mais, maior”, continua a ser visto como “melhor”, apesar dos apelos à frugalidade que a crise ambiental concita. “Se ao menos o marketing começasse a vender o q.b., o quanto baste”, atira, talvez a sensatez ganhasse espaço e, nas ruas, este pudesse ser mais bem repartido entre todos.