Pensamento mágico e transição energética
Nos últimos dias, sob a égide da União Europeia, cartazes encheram várias zonas de Lisboa com chavões “Liberdade, Paz e Independência Energética”, “Democracia, Diversidade e Protecção do Ambiente”, “Estabilidade, Respeito e Transição Ecológica” e “União, Segurança e Energia Renováveis”, rematados por um mote comum “A Europa és tu” e sorridentes jovens fotogénicos sobre um fundo de energias renováveis e mobilidade eléctrica.
As alterações climáticas e a segurança energética representam desafios significativos que exigem decisões pragmáticas e estratégias vencedoras para evitar rupturas no abastecimento que ponham em causa o bem-estar da população e um impacto elevado no crescimento económico. Valores ‘sagrados’ como a Liberdade, Paz, Democracia e os demais não dependem da política europeia para a transição energética. Esta campanha de apropriação de valores fundamentais da UE tenta influenciar subliminarmente e estimular uma visão míope que associa estes valores às energias renováveis.
“(...) A doutrina de que alguém pode impor suas visões e desejos ao mundo apenas pela força do pensamento mantém um apelo poderoso para muitas pessoas. A sua aceitação desloca o pensamento crítico e a boa estratégia”, escreveu Richard Rumelt. O pensamento mágico está tão presente em muitos aspectos da transição energética que, apoiado por campanhas como a referida acima, fácil será cairmos no logro de que até existe uma estratégia.
Será que 100% de renováveis garantirão a segurança de fornecimento? As renováveis, sem dúvida, terão uma contribuição significativa na matriz energética, mas sozinhas não conseguem ser a espinha dorsal de uma sociedade industrializada. Não é surpreendente que se tenha 100% de produção renovável em períodos de chuva e vento intenso. Que se faça um laudatório em torno do assunto esquecendo o resto do ano roça a manipulação.
A concretização do aumento significativo de renováveis instaladas nos próximos anos resultará num excesso significativo de produção durante o dia. Os produtores têm alertado que está a tornar-se um problema porque algumas tecnologias não conseguirão atingir um nível de rentabilidade suficiente. A solução será ao introduzir-se mecanismos de receita garantida. E em paralelo será preciso um mecanismo de remuneração de capacidade de reserva. Ambos terão custos para o consumidor.
Mais preocupante neste cenário é o défice nocturno acentuado. Quer pelo encerramento previsto de centrais de potência firme, gás em Portugal e gás e nuclear em Espanha, quer pela introdução de novos perfis de consumo (e.g. viaturas eléctricas), quer pelo risco acrescido de períodos de défice, similares em ambos os países, não é prudente assumir que poderemos importar toda a electricidade que necessitarmos (saldo importador excedeu 20% em 2022). E não haverá possibilidade de abastecer o sistema energético ibérico caso não se aumente em muito a capacidade de interligação com França que se tem mostrado relutante em permitir esse aumento.
A penetração crescente das energias renováveis tem também motivado a introdução de maior flexibilidade na rede para assegurar a estabilidade desta e a segurança de abastecimento. Esta flexibilidade traduz-se em incentivar formas de consumo que privilegiam horas do dia de maior produção renovável e a introdução de contadores inteligentes que permitam desligar remotamente alguns sistemas eléctricos, por exemplo o carregamento de veículos eléctricos ou bombas de calor, em caso de necessidade, quando houver risco de falha da rede. Ou a possibilidade de um veículo ligado à rede, funcionar como fornecedor de electricidade recorrendo à energia armazenada na sua bateria.
Ideias de flexibilidade de consumo, cortes de fornecimento e outras similares são cenários que contribuem para condicionar as nossas expectativas, em nome das alterações climáticas, e a aceitação de uma degradação dos padrões de vida. Não existem países ricos com défice energético e não precisamos destas experiências sociais para saber o resultado. Infelizmente 1/8 da população mundial não tem acesso a electricidade e existem vários locais onde a fiabilidade da rede é muito reduzida. Caminhamos para um futuro de ‘vida intermitente’ por negligenciarmos a importância da energia despachável?
A instalação de mais potência renovável implica um elevado investimento em redes de transporte e distribuição de energia. Segundo a REN serão necessários cerca de 1500 km de novas redes de transporte de Muita Alta Tensão, um aumento de 15% da actual rede eléctrica de transporte, para acomodar os novos investimentos previstos em renováveis (redes de alta e média tensão terão também que ser acrescentadas). O custo desta infra-estrutura, mais tarde ou mais cedo, será parte da factura paga pelos consumidores. Não será esse investimento menor caso se opte por soluções que se integrem melhor na rede existente?
Não surpreende que o ‘Bank of America’ tenha concluído que, tendo em conta a eficiência, as necessidades de armazenamento, o custo da transmissão e outros custos gerais do sistema, as energias solar e eólica sobressaem como mais caras do que quase todas as suas alternativas numa base não subsidiada, quando se contabilizam esses factores externos e os custos totais do sistema. O investimento em renováveis previsto no PNEC, estimado em 40 mil milhões de euros, carece, para gerir a sua intermitência, de vultuosos investimentos em redes inteligentes e soluções de armazenagem.
E como se não bastasse, a independência energética é uma fabulação. A China domina o mercado da energia solar fotovoltaica (e em breve da eólica), apesar dos apelos da Aliança Europeia Solar Fotovoltaica (ESIA) à UE para que reduza a influência desproporcionada das empresas chinesas de energia solar na Europa e assegure uma maior protecção da indústria europeia contra o "colonialismo chinês".
A implementação eficiente da estratégia de descarbonização e segurança energética deve reduzir os custos de sistema, garantir a capacidade de resposta aos picos de procura introduzidos por novos padrões de consumo, ter capacidade de backup, sem excessiva confiança no armazenamento hídrico ou importação. Só o pensamento mágico justifica não termos o incómodo de olhar para todo o portefólio de soluções energéticas baixo carbono com uma mentalidade mais aberta, e fazer as contas em vez de ‘fazer de conta’. Uma estratégia coerente impede que vivamos apenas de pensamentos mágicos e ‘influencers’. Campanhas subliminares junto da opinião pública e pensamento mágico apenas servem a estratégia de alguns.