Nos quatro textos anteriores, procurámos dar a conhecer o conceito de geodiversidade, de que modo os elementos e processos que a constituem são essenciais para assegurar as condições de vida e bem-estar de seres humanos e não humanos, o papel da geodiversidade na organização do território e a geodiversidade em Portugal. Neste quinto e último texto iremos desvendar alguns dos elementos da geodiversidade existentes em Portugal que possuem carácter excepcional e que devem, por isso, ser protegidos. Mas será que as leis de conservação da natureza asseguram a protecção adequada destes elementos? E valerá mesmo a pena preocuparmo-nos em “proteger umas rochas”?
O Parque Nacional de Yellowstone, criado em 1872 nos Estados Unidos da América, é considerado o primeiro parque nacional do mundo. Trata-se de uma região vulcânica, onde terá ocorrido uma das maiores erupções de sempre e onde existe a maior concentração de géisers activos do mundo (cerca de 500). Só passado um século Portugal daria os primeiros passos no estabelecimento de áreas protegidas, com a criação, em 1971, do Parque Nacional da Peneda-Gerês. Também neste domínio começámos tarde...
A conservação da natureza faz parte do conjunto de políticas públicas de qualquer país. Em Portugal, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) é a autoridade nacional que tem por missão acompanhar e assegurar a execução das políticas de conservação da natureza. O Regime Jurídico da Conservação da Natureza e da Biodiversidade (RJCNB) e a Estratégia Nacional de Conservação da Natureza e Biodiversidade 2030 (ENCNB) constituem as bases principais que suportam as políticas públicas de conservação da natureza em Portugal continental (as regiões autónomas dos Açores e Madeira têm legislação própria). Serão estes instrumentos adequados para conservar a geodiversidade?
Vamos primeiro definir o que significa “conservar a geodiversidade”. Na verdade, não podemos nem queremos proteger toda a geodiversidade, uma vez que, diariamente e em todo o mundo, necessitamos extrair milhões de toneladas de recursos geológicos essenciais para o nosso bem-estar.
Porém, existem alguns elementos que fazem parte da geodiversidade e que apresentam características especiais que lhes conferem um valor excepcional e que devem, portanto, ser conservados.
Por exemplo, fará sentido usar um calcário com fósseis raros de uma espécie já extinta para fazer cimento e assim perdermos a possibilidade de melhor compreender como evoluiu a vida no nosso planeta? Será razoável abrir uma nova estrada exactamente sobre rochas que mostram evidências dos efeitos das mudanças climáticas ocorridas nos últimos milhares de anos, deixando de parte a possibilidade de aprendermos com o passado para melhor nos adaptarmos às mudanças em curso? Faz sentido construir um armazém industrial no único local onde existe um determinado mineral que nos permite obter dados sobre processos geológicos que aconteceram há milhões de anos a uma dezena de quilómetros de profundidade?
Património geológico
Estes elementos da geodiversidade com um valor especial que os tornam únicos constituem o que se designa por “património geológico” e os locais onde eles ocorrem são os geossítios. O desafio é então o de seleccionar, entre toda a variedade de elementos geológicos, quais os que devem ser protegidos e porquê. Para tal, é absolutamente crucial proceder a um inventário do património geológico para que o sector público possa assegurar a protecção dos seus elementos mais significativos, o que se designa por “geoconservação”.
A comunidade geocientífica nacional produziu, há cerca de uma década, um inventário sistemático do património geológico português, tendo identificado mais de 300 geossítios com base no seu valor científico e na sua relevância nacional e internacional (disponível aqui).
Este inventário foi cedido ao ICNF para que fossem implementadas medidas de conservação e gestão desses geossítios. Infelizmente, até ao momento, este instrumento fundamental para a conservação da natureza não foi ainda alvo de qualquer atenção por parte do ICNF, deixando assim este património geológico em risco de ser destruído e/ou vandalizado.
Já em 2018, a ENCNF reconhecia que “apesar de existir um inventário do património geológico português, não foram tomadas medidas para a sua gestão. É necessário proceder à delimitação detalhada dos geossítios, identificar o respectivo grau de conservação e os geoindicadores que possam ser usados na sua monitorização e ainda definir usos potenciais para garantir a utilização sustentável do património geológico por parte da sociedade”.
Ameaças ao património geológico
Poder-se-á perguntar porque é necessário conservar rochas, já que, para muitas pessoas, estas aparentam possuir grande resistência, pelo que não parecem existir ameaças que as possam afectar. Na verdade, não é bem assim. A erosão natural pode degradar, em poucos anos, a superfície das rochas. É o caso, por exemplo, dos geossítios com pegadas de dinossauros onde, na ausência de qualquer medida de gestão, as marcas das pegadas se tornam cada vez mais imperceptíveis e vão assim perdendo as características que lhes conferem o seu valor científico.
A maior parte das ameaças são, porém, antrópicas, começando pelo desconhecimento da sociedade sobre o que é património geológico e qual a sua importância. A colheita ilegal de fósseis e minerais que alimentam redes internacionais de contrabando leva à destruição de muitos geossítios e à impossibilidade de serem realizados estudos científicos pioneiros, no caso de serem comercializadas espécimes desconhecidos para a ciência. Quando alguém compra um mineral ou um fóssil será que se preocupa em saber se o mesmo terá sido obtido de forma legal pelo vendedor?
A ausência de legislação apropriada para garantir a protecção de geossítios é outra das ameaças. Em Portugal, só os geossítios que estão em áreas protegidas, uma minoria, possuem algum tipo de protecção; os restantes podem ser destruídos ou vandalizados sem qualquer consequência para quem o faz. São também ameaças a ausência de políticas públicas de geoconservação e a sua não implementação, assim como a inoperância das instituições que têm a responsabilidade de gerir o património natural do país.
Muitos geossítios são ainda afectados pela construção de infra-estruturas (estradas, edificações variadas, barragens). Ao contrário do que acontece, e bem, com vestígios arqueológicos, se for descoberto qualquer tipo de elemento geológico raro durante a construção de uma infra-estrutura, nada obriga à interrupção dos trabalhos para análise dos achados.
A pressão turística em alguns geossítios é também habitualmente referida como sendo uma ameaça ao património geológico. Um exemplo óbvio é o caso da visitação em grutas calcárias que deve ser controlado e monitorizado, porque o mero efeito da respiração dos visitantes sobre a atmosfera confinada da gruta pode influenciar os mecanismos de precipitação química responsáveis pela formação de estalactites e estalagmites.
Relevância internacional
Para demonstrar a elevada importância do património geológico português, basta referir o reconhecimento já feito por organismos internacionais. Um dos requisitos para a UNESCO conferir o título de Geoparque Mundial a uma determinada área é o facto de esta possuir património geológico de relevância internacional. É o caso dos cinco Geoparques Mundiais da UNESCO portugueses: Açores, Arouca, Estrela, Naturtejo e Terras de Cavaleiros. Em cada um deles existem geossítios onde fósseis, rochas e formas de relevo têm valor científico internacional. Uma breve nota para lembrar que a UNESCO atribui classificações distintas ao património natural, que não devem ser confundidas: Reserva da Biosfera, Património Mundial e Geoparque Mundial.
A União Internacional das Ciências Geológicas é o organismo oficial responsável pelo estabelecimento da escala de tempo geológico. Tal como estamos habituados a dividir o tempo em séculos, anos, meses, semanas, dias, horas, minutos e segundos, também os geólogos fazem uma divisão do tempo geológico.
Assim, os 4600 milhões de anos da idade da Terra são divididos em eons, eras, períodos, épocas e idades. Estas divisões do tempo geológico estão materializadas em formações rochosas dispersas pelo planeta, seleccionadas pelos geólogos depois de anos de investigação científica. Em Portugal, existem duas destas formações que são referências mundiais do tempo geológico e que representam: uma o início da Idade Bajociano (há 170,3 milhões de anos) e outra o início da Idade Toarciano (há 182,7 milhões de anos), ambas pertencentes ao período Jurássico. A primeira localiza-se no Cabo Mondego e a segunda na península de Peniche. Estas formações geológicas são, obviamente, mais dois geossítios de relevância internacional existentes em território nacional.
No dia 28 de Outubro passado, por ocasião das celebrações do seu 60º aniversário, a União Internacional das Ciências Geológicas ratificou a lista dos primeiros 100 sítios de património geológico de relevância internacional, da qual constam três geossítios portugueses: o vulcão dos Capelinhos na ilha do Faial, nos Açores; as trilobites gigantes de Arouca; e a discordância entre o Paleozóico e o Mesozóico exposta nas falésias da Ponta do Telheiro, no litoral de Vila do Bispo.
Em Portugal Continental existem cinco categorias de áreas protegidas: Parque Nacional, Parque Natural, Reserva Natural, Paisagem Protegida e Monumento Natural. Apesar das áreas protegidas das primeiras quatro categorias terem sido criadas sem ter tido em conta especificamente a protecção de geossítios, o inventário revelou a sua existência em algumas destas áreas. Já a criação dos sete Monumentos Naturais de âmbito nacional actualmente existentes foi feita com o intuito de protecção de património geológico:
- Cabo Mondego (formações geológicas jurássicas);
- Carenque (pegadas de dinossauro);
- Lagosteiros (pegadas de dinossauro);
- Pedra da Mua (pegadas de dinossauro);
- Pedreira do Avelino (pegadas de dinossauro);
- Pegadas de Dinossauros de Ourém/Torres Novas (habitualmente referido como Pedreira do Galinha);
- Portas de Ródão (feições geomorfológicas).
Para além destes, existem ainda Monumentos Naturais Locais classificados e geridos por municípios com a finalidade de proteger património geológico, como acontece, por exemplo, em Alenquer, Arouca, Bragança e Viana do Castelo. Os municípios têm revelado um crescente interesse pela geoconservação, como, aliás, o demonstram os prémios atribuídos, desde 2004, no âmbito do concurso anual destinado a autarquias e promovido pelo grupo português da Associação Internacional para a Conservação do Património Geológico (ProGEO).
Conclui-se assim uma série de cinco artigos que pretenderam assinalar a comemoração, pela primeira vez, do Dia Internacional da Geodiversidade (6 de Outubro). E porque não aproveitar para conhecer um dos muitos geossítios em Portugal e assim celebrar a geodiversidade?
Agradecimentos a Luís Lopes e Teresa Salomé Mota pela leitura e revisão crítica do texto
Geólogo da Universidade do Minho e membro da Associação Portuguesa de Geólogos