Amigo, ganha-pão, bravo: o mar de Vila Chã que deixa o futuro da vila mais incerto
Esta vila do Norte corre o risco de ser engolida pelas ondas nos próximos anos, consequência da subida da água do mar e da erosão. Até lá, a população constrói muros para se (tentar) defender.
Vila Chã é uma pequena freguesia de Vila do Conde com pouco mais de 3000 habitantes. A dois passos do mar, assim que chegamos à praia, vemos um areal pequeno, acolhedor, que esconde uma realidade que pode estar mais próxima do que se espera – a localidade está em risco de galgamento oceânico.
Segundo o Programa da Orla Costeira (POC), publicado pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) em 2021, Vila Chã faz parte das áreas críticas. A zona (AC34B) está avaliada como zona de "prioridade intermédia", que "será avaliada pela APA oportunamente", explica a agência ao PÚBLICO por email.
A população tenta fazer a sua vida com normalidade, mas algumas pessoas não escondem o receio de ver o mar invadir o seu lar. Num passeio curto pelo areal da praia, ouvem-se as ondas a bater nas rochas e o grasno das gaivotas que ocupam o areal numa manhã atípica de sol em Dezembro. Por esta hora, os pescadores já regressaram da faina e o próximo passo é remendar as redes estragadas.
Mar: o sustento de uns, o medo de outros
Numa pequena barraca de madeira junto à praia, Sérgio Martins e a mãe, Carlota, metiam entralhos nas redes. “O mar chega à beira dos barcos, às vezes até ultrapassa. Não tenho medo de que a água chegue aqui. Há muitos anos, já subiu muito mais”, explicava Sérgio. Pescador há décadas, navegou entre a pesca e a serralharia, até que se dedicou totalmente ao “negócio de família”. A sua mãe, com 83 anos, juntamente com Adília, são as únicas mulheres que ainda remendam redes de pesca em Vila Chã.
Carlota, sentada numa cadeira azul, esticava a rede enquanto Sérgio a entralhava de pé. Tinha regressado de uma manhã no mar com apenas algumas fanecas e uns lavagantes. “Temos tido pouco peixe, muito pouco, este ano está a ser muito fraco”, comenta o pescador.
“Em certos sítios, como dizem na televisão, o mar pode subir, mas aqui não tenho visto muito. Por agora, pelo menos. Já vi há uns anos, quando era mais pequeno", dizia Sérgio, enquanto nos mostrava a rua “lá atrás” onde a água, em tempos, chegou.
Um muro “em ruínas”
“A praia tem menos areia do que tinha antigamente. Este muro dá-me alguma segurança porque fomos nós que o construímos”, comenta Vera Miranda, de 51 anos, habitante da freguesia de Vila Chã desde que nasceu. Refere-se ao muro construído entre o areal e as habitações, que sempre impede a água de lhes chegar tão perto.
É um dos receios de Vera: que o mar lhe entre pela casa a qualquer a momento. “Este muro, parecendo que não, ajuda muito. Na altura, ninguém fazia e o meu pai fez, juntamente com os vizinhos. Nunca mais tivemos problemas, mas o muro está em ruínas, estamos à espera que a câmara tome uma atitude, mas ainda ninguém tomou.”
No muro, construído pelo pai de Vera e pelos vizinhos há mais de 40 anos, é possível vislumbrar os alicerces num buraco. Depois da morte do pai, Aurora começou a pagar a uma pessoa para arranjar os estragos. E não foi só uma vez. “Aquele muro ainda está pior, a minha mãe ainda o mandou arranjar há um mês, gastou cento e tal euros em dois sacos de cimento e pediu a um homem para vir aí remendar o muro, estava mesmo mau…”, comenta Vera à porta da sua casa, onde a encontramos a conversar com a vizinha.
“Este muro já tem muitos anos e está a ficar desgastado. Eu tenho medo”, conta Aurora, de 86 anos. “Uma vez, a areia ficou da altura disto [apontou para o topo da porta], teve que vir um tractor tirar a areia. Há muitos anos, há mais de 60 anos. Nós fomos tirados por uma janela que tinha ali atrás”, acrescentou, enquanto se apoiava na beira da porta para ter algum equilíbrio.
“Ali naquela rua de trás, o mar chegou ali. Tenho medo que voltemos ao mesmo tempo”, revela Aurora. A sua filha Vera afirma que estão há mais de um ano naquela situação. "Vem agora o Inverno e isto é um problema”. Adília Ribeiro, uns metros mais abaixo da casa de Aurora e Vera, remendava uma rede que se tinha rasgado no mar. Com os seus 70 anos, garante que tem mais medo de o marido ficar no mar do que o mar lhe entrar pela “barraca” adentro.
Os sinais que o mar nos dá
“O mar entra aqui, mas não faz mal. Bate-nos aqui dentro, mas não tenho problema", conta-nos Adília, sentada num banco com a rede sob as pernas. Nasceu em Lordelo, concelho de Paredes, mas mudou-se para Vila Chã assim que se casou. O marido, que já vinha de uma família de pescadores, dedicou-se à profissão há 38 anos. Ela, cozinheira, dedica-se agora a remendar as redes.
Adília revela algum receio perto da casa da sua sogra, onde um muro foi parcialmente destruído pelo mar no ano passado. “O que está ali perto da casa da minha sogra está a cair. No ano passado, quando o mar veio, abalou e eles [a câmara municipal] ainda não quiseram saber”, comenta Adília.
“O mar entra por baixo, ficam buracos grandes e a estrada, se não a arranjarem, vai aluir. Eles dizem que vêm, mas já lá vai algum tempo e eles sem virem”, contava-nos Aurora que, tal como Adília, reclama por mais atenção da autarquia sobre o perigo de galgamento oceânico na vila.
Contactado pelo PÚBLICO, o presidente da Câmara Municipal de Vila do Conde, Vítor Costa, comentou que tem existido um diálogo permanente com a APA, que tem “a jurisdição e responsabilidade de actuar sobre aquela área e desencadear qualquer acção necessária”. Via email, o presidente refere que já foram realizadas várias reuniões e que já se dispuseram a avançar com os trabalhos necessários. “A população tem sido ouvida e informada pela câmara municipal, por mim que já estive várias vezes no local com a população e as associações, mas também através da junta de freguesia”, acrescenta.
No que toca às famílias possivelmente afectadas, Vítor Costa diz que manter as pessoas nos seus respectivos lares é a prioridade e que este fenómeno pode afectar “algumas dezenas de famílias” de Vila Chã.
Uma outra preocupação surge com o património piscatório da vila, que existe há centenas de anos e que pode vir a ser atingido em caso de galgamento oceânico. “Posso assegurar que esse património será preservado, seja através da protecção do edificado, da relocalização do património móvel, de medidas de apoio às instituições, associações e empresas que cuidam do património”, comenta o presidente.
Quanto ao muro da Praia da Congreira, na área crítica norte da vila, Vítor Costa afirma que já manifestou a preocupação à APA. "Por entendermos ser urgente e necessário, estamos, por nossa iniciativa, a recolher pareceres e propostas de especialistas em hidráulica de forma a encontrarmos soluções para podermos dar resposta à comunidade em tempo útil”, conclui.
Primeiro passo: comunicar e integrar as populações
"Nós dizemos que, para resolver os problemas, temos de conhecer as causas. Em alguns casos, a complexidade do problema é tão grande que, mesmo sabendo tudo, é complicado resolver — a erosão costeira é um destes casos", explica o professor do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa, José Luís Zêzere, ao PÚBLICO.
"Existem quatro grandes causas da erosão costeira em Portugal", contextualiza o professor. A subida do nível da água do mar e a pouca areia do litoral — rica em quartzo, a areia é trazida pelos rios, mas a construção de barragens diminuiu a passagem de sedimentos — são as mais expressivas.
Além disso, a rápida construção de infra-estruturas na linha da costa contribuiu para a erosão costeira no sentido em que interrompem o trânsito dos sedimentos. "O diagnóstico está feito. Este sistema de protecção é um sistema ultrapassado, que transfere os problemas de um sítio para o outro", indica Zêzere.
As pessoas sabem que isto a acontecer. "Temos de arranjar uma solução e, por mais obras que sejam feitas, a comunicação não pode deixar de existir", comenta o professor. "O recuo é a solução."
"O osso está demasiado à mostra"
Aqueles que sentem o mar, que vivem dele, são também aqueles que muitas vezes apresentam alguma resistência. Em Vila Chã, falamos de pessoas que cresceram ali, que viram o mar "muito pior" e que não querem deixar uma vida para trás, muitas delas que dependem da pesca para meter comida na mesa. Escondem o medo por detrás das redes, mas eles sabem que o mar está "bravo".
"Infelizmente para a população, temos que os preparar para a realidade. Antes de os tirar de casa, temos de lhes arranjar onde ficar", comenta José Luís Zêzere, enquanto observa as fotografias de Vila Chã. "Numa situação de temporal, como o Hércules, o cenário pode ser catastrófico. Vão ter de os tirar dali".
Não há infra-estrutura que aguente a força do mar. "A relocalização é a solução, mas é uma situação que precisa de ser planeada", alerta o geógrafo. "O osso está demasiado à mostra. Temos de criar condições de vida sustentáveis para as próximas gerações. Mas, acima de tudo, temos que ser sinceros com eles, mostrar-lhes os dados e os mapas", lamenta o professor. "As pessoas estão demasiado expostas e devem ser retiradas dali", conclui.
Um país em risco de norte a sul
"A identificação dos principais locais de risco prende-se com as áreas sujeitas a erosão costeira e recuo de linha de costa, em litoral baixo e arenoso", explica a APA, em declarações ao PÚBLICO. No prazo de cerca de 60 anos, a agência destaca os concelhos de Esposende, Ovar, Ílhavo, Vagos, Mira, Figueira da Foz e Almada como estando em perigo.
Segundo a Agência Portuguesa do Ambiente, "cerca de 50% da faixa costeira de Portugal é limitada por arribas rochosas", conhecidas pela sua instabilidade. "Qualquer troço costeiro limitado por arribas configura uma situação de risco potencial para a ocupação humana", refere a APA. Mas tudo depende da densidade populacional, da tipologia e da frequência de ocorrências dos movimentos de massa.
Em Novembro, foi anunciado que as praias da Costa da Caparica, no âmbito de um projecto-piloto da APA associado ao Programa Cosmo, iriam ser vigiadas no próximo ano por drones para monitorizar a erosão costeira e a possibilidade de galgamento oceânico. Questionada sobre a possibilidade de alargar esta tecnologia a outras zonas do país, a APA explica que irão ser feitos "levantamentos topográficos com tecnologia Lidar [topografia por feixes de laser] numa série de praias", para além de serem feitos "perfis de praia, perfis topo-batimétricos e levantamentos batimétricos" através de meios aéreos, terrestres e marítimos.
Texto editado por Claudia Carvalho Silva