Ria Formosa: saquetas de chá revelam que calor vai dificultar captura de CO2 nas zonas húmidas
Portugueses participaram em experiência global que analisou a decomposição de matéria orgânica nas zonas húmidas, onde há armazenamento do carbono azul. Aquecimento global vai fragilizar processo.
Todos os anos a ria Formosa, no Algarve, sequestra 1500 toneladas de dióxido de carbono (CO2), conservado na matéria orgânica que se deposita nos seus sapais e pradarias marinhas. Esta matéria orgânica fica tapada no leito daqueles ecossistemas, fora do alcance do oxigénio, e não se decompõe, originando o carbono azul. Deste modo, aquele CO2 está impedido de se acumular na atmosfera, onde poderia reforçar o efeito de estufa. Mas o aumento da temperatura global, no contexto das alterações climáticas, pode fragilizar aquele processo e diminuir o CO2 sequestrado nas zonas húmidas em todo o planeta, adianta um estudo internacional que analisou este fenómeno através de saquetas de “chá” verde e de rooibos em 28 países, incluindo Portugal.
“O nosso estudo sublinha o potencial para a redução de matéria orgânica abaixo do solo nas zonas húmidas interiores devido o aumento do aquecimento global”, lê-se no resumo do artigo sobre o estudo, publicado recentemente na revista Environmental Science and Technology, liderado por Stacey Trevathan-Tackett, investigadora da Universidade Deakin, em Melbourne, na Austrália.
Há diversas zonas húmidas a nível global, como os sapais, os mangais, as pradarias de ervas marinhas e os sistemas lacustres, entre outros. Estas regiões são normalmente ricas a nível da biodiversidade e providenciam diversos serviços de ecossistemas, desde a limpeza das águas até serem berçários de muitos animais, como é o caso das pradarias marinhas.
A vida vegetal destes lugares tem a capacidade de filtrar a matéria orgânica que está na água e vai subtilmente sendo depositada no leito. Esta matéria orgânica é rica em CO2, que foi primeiro fixado pelas plantas e algas através da fotossíntese e que vai saltando, de organismo em organismo: primeiro das plantas para os animais, que as predam, depois de animais que se alimentam dos herbívoros e assim sucessivamente.
Quando a matéria orgânica se deposita no leito, acaba por ser enterrada e fica num ambiente sem oxigénio. Deste modo, aqueles ecossistemas vão acumulando toneladas de CO2 em forma de matéria orgânica. Durante um longo período de tempo, aquele carbono azul não volta a entrar no ciclo do carbono. Por exemplo, nos 4500 hectares da ria Formosa estão acumuladas 320 mil toneladas de carbono.
“Por isso é que é extremamente importante percebermos os processos de decomposição da matéria orgânica no sedimento”, explica Rui Santos ao PÚBLICO. O investigador do Centro de Ciências do Mar (CCMar) da Universidade do Algarve participou no estudo global e foi um dos autores do artigo, juntamente com Carmen B. de los Santos, também do CCMar. “Se não houver distúrbios, esse carbono mantém-se. Agora, os distúrbios que o homem provoca, como as dragagens, faz com que aquela matéria orgânica entre em contacto com o oxigénio” e possa ser degradada, acrescenta o especialista.
A temperatura é também um factor importante nesta equação. “Quanto maior a temperatura, mais actividade microbiana, mais decomposição e menos sequestro de carbono”, explica Rui Santos, que é líder do grupo Ecologia de Plantas Marinhas.
Lábil ou recalcitrante
A experiência das saquetas permitiu analisar o efeito desse factor ambiental. Estudos passados mostraram que as saquetas de “chá” eram bons representantes dos sedimentos das zonas húmidas, permitindo extrapolar os fenómenos observados. A experiência usou dois tipos de “chá” para avaliar dois tipos de matéria orgânica que têm comportamentos diferentes.
O “chá” verde representa matéria orgânica que se decompõe mais facilmente, como as algas. Já o rooibos representa matéria orgânica que se decompõe mais lentamente, como as ervas marinhas e as plantas dos sapais, que contêm mais celulose e lenhina. Por isso, ao primeiro tipo de matéria orgânica chama-se lábil e ao segundo recalcitrante.
Ao testar esta experiência em vários ecossistemas situados em diferentes regiões costeiras nos vários continentes, a diferentes latitudes, é possível fazer comparações entre essas regiões. Em Portugal, além dos investigadores do CCMar, também Ana Sousa, Ana Lillebo e Daniel Jerónimo, três investigadores do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar, da Universidade de Aveiro, assinaram um artigo por terem realizado a mesma experiência na ria de Aveiro. Mas foram feitos estudos na Austrália, no Brasil, na China, nos Estados Unidos, na Nigéria, no Reino Unido, entre muitos outros países.
Na ria Formosa, as saquetas ficaram enterradas em diferentes locais durante um ano: em sapais, em pradarias marinhas (compostas por plantas, e não algas, que vivem no mar a baixa profundidade e em zonas entre marés) e em áreas colonizadas pela espécie de alga invasora Caulerpa prolifera.
Passados os 12 meses, quando as saquetas foram retiradas, foi analisada a quantidade de matéria orgânica decomposta e o CO2 degradado. Os resultados dos lugares em todo o planeta foram comparados uns com os outros. Por isso, foi possível perceber o que ocorreu em zonas do globo mais quentes e projectar o que ocorrerá nas próximas décadas com a continuação do aquecimento global. “Baseadas nas projecções climáticas, em 2050 as constantes de decomposição das zonas húmidas vão aumentar em 1,8% para a matéria orgânica lábil [que equivale ao chá verde] e 3,1% para a recalcitrante [que equivale ao rooibos]”, lê-se no resumo do artigo.
“O efeito de temperatura é maior na decomposição do rooibos, da matéria orgânica mais recalcitrante. O aumento global da temperatura vai ser mais importante na matéria orgânica mais difícil de se degradar”, acrescenta Rui Santos. “Isso é uma má notícia, porque essa é aquela matéria orgânica que fica armazenada mais anos.” Ou seja, cujo CO2 não volta tão cedo para o ciclo do carbono.
Dada a enorme quantidade de CO2 que está armazenado naqueles ecossistemas mundo fora, o investigador defende serem necessárias acções de protecção e de restauração. “Ao longo dos últimos 100, 150 anos, tem-se perdido cerca de 30 a 40% das áreas dos sapais e das pradarias marinhas a nível global”, diz. “É absolutamente necessário recuperar estes ecossistemas.”