Em Haia, os EUA deixam claro: obrigações climáticas, só no Acordo de Paris (do qual sairão em breve)

Intervenção dos EUA sobre obrigações climáticas suscitou várias críticas. “Não podemos permitir que se utilize o Acordo de Paris para diluir responsabilidades”, alertou uma das arquitectas do tratado.

Foto
Margaret Taylor, conselheira jurídica do Departamento de Estado dos EUA, falou em nome dos Estados Unidos perante o Tribunal Internacional de Justiça Piroschka Van De Wouw / REUTERS
Ouça este artigo
00:00
06:20

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

“O regime das Nações Unidas em matéria de alterações climáticas, com o Acordo de Paris no seu cerne, é o único regime jurídico internacional especificamente concebido pelos Estados para fazer face às alterações climáticas.” Foi com estas palavras que Margaret Taylor, conselheira jurídica do Departamento de Estado dos EUA, resumiu a posição do país sobre o que considera ser as respectivas obrigações internacionais em matéria de alterações climáticas.

Esta semana, o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) iniciou uma maratona de audiências para ouvir as intervenções de 100 países sobre um pedido de parecer consultivo sobre as obrigações dos Estados em matéria de alterações climáticas. Depois de contributos de países como Alemanha, Brasil e China, chegou a vez dos Estados Unidos, que apresentaram os seus argumentos na quarta-feira.

O que está em jogo é importante: os Estados Unidos são o maior emissor histórico de carbono do mundo (com a China a aproximar-se vertiginosamente) e são actualmente um dos países com maior expansão da produção de petróleo e gás a nível mundial – algo que tem acontecido tanto com governos republicanos como democratas.

Não teremos sempre Paris

Perante o tribunal internacional, os EUA pareceram apostados em garantir o mínimo de compromissos e responsabilidades, reduzindo as suas obrigações climáticas ao Acordo de Paris, escrito com uma “abordagem cuidadosamente calibrada”, segundo Margaret Taylor.

O país considera assim que esta matéria não tem cabimento nos tratados sobre direitos humanos ou outras obrigações do direito internacional, devendo ser exclusivamente tratada à luz do Acordo de Paris – que, ironicamente, os Estados Unidos deverão denunciar assim que Donald Trump tomar posse como Presidente, em Janeiro de 2025.

A linguagem do Acordo de Paris, assim como dos compromissos das cimeiras do Clima (COP) em geral, tem sido sempre exaustivamente escrutinada pelos países desenvolvidos para não representar nenhum risco de responsabilização legal em caso de incumprimento dos planos nacionais – as contribuições nacionalmente determinadas (NDC, na sigla em inglês). Como se vê, aliás, pela continuação do argumento norte-americano: “Trata-se de uma importante obrigação vinculativa de esforço, que deve ser cumprida de boa-fé, mas não converte a NDC de um país numa obrigação vinculativa de resultado.”

Laurence Tubiana, directora executiva da Fundação Europeia para o Clima e uma das principais negociadoras de França para o Acordo de Paris, lamentou o tom da intervenção dos EUA. “Não podemos permitir que alguém utilize indevidamente o Acordo de Paris para diluir as suas responsabilidades climáticas e a sua responsabilização”, afirmou, citada em comunicado.

“O Acordo de Paris foi criado como uma ferramenta que vincula legalmente os países a apresentarem políticas e acções”, sublinhou Tubiana, reforçando que “não é suficiente anunciar” planos que, muitas vezes, não cumprem os objectivos.

Países desenvolvidos unidos

Mas os EUA não estão sozinhos a demarcar-se de responsabilidades, juntando-se ao grupo de países desenvolvidos que fogem como o diabo da cruz a qualquer responsabilidade jurídica sobre as suas decisões. Também os Estados nórdicos (Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega e Suécia) sugeriram na terça-feira o mesmo foco restrito das obrigações climáticas dos Estados centrado no Acordo de Paris, descartando a aplicabilidade da lei dos direitos humanos às acções de mitigação climática (redução de emissões de gases com efeito de estufa) e ignorando o princípio da prevenção de danos transfronteiriços.

A Rússia acompanhou igualmente os EUA, ao sublinhar que o direito a um ambiente saudável – reconhecido politicamente pela Assembleia Geral das Nações Unidas – carece de protecção jurídica internacional concreta, e ao rejeitar que existam bases para reparações aos países prejudicados pelos danos causados.

A directora do programa de Clima e Energia do Centro de Direito Internacional do Ambiente, CIEL, Nikki Reisch, faz notar que “os EUA não podem escapar às realidades fundamentais das alterações climáticas nem fugir aos princípios fundamentais da justiça: o dever de não causar danos e a obrigação de reparar os danos causados”.

A antiga secretária-geral do organismo da ONU para o Clima Christiana Figueres outra das arquitectas do Acordo de Paris acrescentou que, para além do Acordo de Paris e da Convenção do Clima das Nações Unidas, os governos também têm obrigações em matéria climática “decorrentes dos princípios gerais do direito internacional do ambiente (dever de evitar danos transfronteiriços significativos e os princípios da prevenção e da precaução), bem como das normas e tratados em matéria de direitos humanos e do direito humanitário”.

Quando começa a responsabilidade?

Depois de enunciarem a complexidade do fenómeno das alterações climáticas causadas por emissões antropogénicas para defender que não há bases para a responsabilização de Estados individuais, os EUA sublinharam ainda que “um Estado não pode ser responsabilizado a nível internacional por actos praticados antes da data em que a sua obrigação jurídica internacional passou a existir”.

Mais uma vez, não estão sozinhos. A maioria dos Estados desenvolvidos parece apostada em determinar o Acordo de Paris (que entrou em vigor em 2016) como o início das obrigações internacionais em matéria de alterações climáticas, mesmo havendo compromissos anteriores como o Protocolo de Quioto (assinado em 1997, entrou em vigor em Fevereiro de 2005), a Convenção das Nações Unidas assinada em 1992 ou mesmo a resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas que reconheceu, em 1988, a necessidade de “protecção do clima global para as gerações presentes e futuras”.

A representante dos EUA argumentou ainda – “escandalosamente”, comentam os juristas do Centro de Direito Internacional do Ambiente – que o princípio das responsabilidades comuns mas diferenciadas e respectivas capacidades (CBDR-RC) não é um princípio transversal do Acordo de Paris. Este princípio, que garante que os Estados com mais emissões são também os que têm mais responsabilidades de proporcionar ajuda, tem sido essencial nos argumentos dos países em desenvolvimento à luz da Convenção do Clima (incluindo os actuais grandes emissores, como o Brasil ou a China).

Nikki Reisch, do CIEL, assinala que, “durante décadas, os EUA procuraram diluir as suas obrigações legais”, tentando agora, perante o Tribunal Internacional de Justiça, “colher os frutos do seu trabalho de longa data para enfraquecer os tratados sobre o clima, alegando que esses acordos diluídos contêm a soma total das obrigações legais dos Estados em matéria de alterações climáticas”.

“A posição dos EUA não é apenas desonesta – é desrespeitosa para com os milhões de pessoas cujas vidas e meios de subsistência estão em risco”, afirmou a jurista. “Estes processos devem afirmar que a lei não é o que os poluidores dizem que é”, sublinhou. “A mãe natureza não cai em truques jurídicos. E o tribunal também não deveria.”