Eis o desafio: adaptarmo-nos à crise climática, mas ter já cidades mais saudáveis

Perante os novos riscos exacerbados por um clima em mudança, a saúde pública não pode deixar de olhar para o estilo de vida urbano como produtor de doença. A natureza pode ser fonte de inspiração.

Foto
Shannon Fagan/GettyImages
Ouça este artigo
00:00
10:14

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Ao ritmo de 200 mil novos urbanitas por dia, a humanidade segue imparável a caminho das cidades, que albergarão, estima-se, dois terços da população mundial, em meados do século. Mas tragédias como as de 29 de Outubro, em Valência, Espanha, mostram-nos os riscos de um planeamento urbano que ignora a natureza e que não tenha em conta o conhecimento adquirido em anos mais recentes sobre os efeitos da crise climática no exacerbar de fenómenos extremos: sejam eles as secas que em 2018 quase deixaram sem água a Cidade do Cabo, os incêndios que já não escolhem latitudes, ou as inundações que levam centenas de vidas na enxurrada.

Um dia depois das inundações em Valência, e na antecipação da Cimeira do Clima (COP29) que há dias terminou no Azerbaijão, foi publicado o The Lancet Countdown on Health and Climate Change 2024, um relatório de monitorização anual sobre a evolução de indicadores de saúde afectados pela crise climática que vem sendo publicado desde a aprovação do Acordo de Paris, em 2015. E o panorama resumido no documento não podia ser mais desolador, quer estejamos a olhar para a consequência das secas e ondas de calor, quer nos centremos no excesso de precipitação.

Fenómenos extremos e saúde

Ao mesmo tempo que os países demoraram a articular as medidas necessárias para limitar o aquecimento do planeta aos níveis acordados na capital francesa há quase uma década, as mortes de pessoas com mais de 65 anos associadas ao calor excessivo estão em níveis 167% superiores aos da década de 90, e a exposição a temperaturas acima do normal terão sido responsáveis, em 2023, por 513 mil milhões de horas de trabalho perdidas, lê-se neste relatório.

Em contraponto, em 61% da superfície terrestre assistiu-se a um aumento do número médio de dias com precipitação extrema, quando comparado com o período entre as décadas de 60 e 90 do século passado. A alteração do regime pluviométrico em vários pontos do globo levou a um aumento das secas, que afectaram, durante pelo menos um mês, 48% do território do planeta, contra 15%, na década de 50.

Este fenómeno aumentou em 151 milhões o número de pessoas sujeitas a insegurança alimentar. Por outro lado, o clima em mudança tornou-nos também mais vulneráveis a doenças como o dengue, transmitida por duas espécies de mosquitos que têm aparecido onde não eram comuns, ou as vibrioses, causadas por bactérias que se dão bem com o aumento da temperatura da água do mar, e que atingiram um número recorde, no ano passado, garantem os autores deste relatório.

A humanidade é apenas uma das espécies a sofrer com estes eventos disruptivos, e com a alteração do equilíbrio climático pela aceleração das emissões de gases com efeito de estufa, desde a revolução industrial. Como um animal selvagem que foge da floresta durante um incêndio, milhões de pessoas procuram, todos os anos, escapar à guerra e à fome. E as cidades têm sido, na maior parte dos casos, o refúgio destes migrantes.

A era das cidades

A mesma revolução industrial que iniciou a era dos combustíveis fósseis, acelerou o processo de urbanização – “até ao ano 1800 apenas 3% a 5% da população global vivia em áreas urbanas de alguma dimensão”, assinala Ben Wilson, em Metrópoles (edição Desassossego, 2021). E, do ponto de vista humano, as cidades, entendidas desde há cinco mil anos como lugar de oportunidades, concitam o grosso das nossas atenções por ser nelas que, quando explodem, as crises atingem mais gente.

Mas, ao mesmo tempo, já se percebeu que qualquer progresso que torne a vida urbana mais sustentável terá reflexos positivos no resto do planeta, que vem sendo sobreexplorado para satisfazer esta crescente população de urbanitas. E, ao mesmo tempo que se preocupa com os novos riscos exacerbados por um clima em aquecimento, a saúde pública não pode deixar de olhar para a forma da cidade e para o estilo de vida urbano que ela, entre outros factores, induz, que é também ele produtor de doença, defende Lucy Saunders, criadora do conceito de ruas saudáveis.

“As alterações climáticas representam uma ameaça fundamental para a saúde humana. Décadas de progresso na saúde podem ser revertidas, tudo devido à emergência que vivemos. Os eventos meteorológicos e climáticos mais frequentes e extremos afectam a saúde tanto directa como indirectamente, aumentando o risco de mortes, doenças não transmissíveis, aparecimento e propagação de doenças infecciosas e emergências sanitárias”, lê-se na nota de apresentação da conferência Cidade Azul que esta quarta-feira, em Coimbra, reúne vários convidados para debater precisamente a relação entre clima e saúde.

Da cidade insalubre…

A salubridade entrou em força no debate sobre a cidade no século XIX. A Paris planeada pelo barão Haussmann, e a Barcelona de Ildefons Cerdà expandiram-se de forma a trazer luz, circulação de ar e um pouco de natureza – ou seja, mais acomodação, espaço e saúde – a velhas cidades medievais, de ruas estreitas, a rebentar pelas costuras. Em Londres, construíram-se à época redes de esgotos que ainda conseguem lidar com os efluentes de hoje em dia, recorda Ben Wilson, em Metrópoles.

Mas nenhum deles previu que, 150 anos depois, o espaço urbano fosse dominado pelo automóvel que, à boleia dos mesmos combustíveis fósseis que alimentam a crise em curso, se tornaram omnipresentes na nossa vida e condicionaram o planeamento urbano em boa parte do século XX. Pensada para o carro, a cidade e os seus habitantes cresceram e engordaram (a OMS estima que um terço da população mundial seja sedentária e cinco milhões morram de doenças associadas a esse estilo de vida).

Ao mesmo tempo, e apesar de enormes avanços tecnológicos, veículos cada vez maiores, mais potentes e mais pesados exigem mais recursos, e dificultam os esforços para reduzir a sinistralidade rodoviária, responsável pela morte cerca de 1,19 milhões de pessoas por ano, e por lesões, muitas delas permanentes, em outras 20 a 50 milhões de vítimas, segundo a OMS. Em Portugal, como noutros contextos, é no contexto urbano que a sinistralidade atinge níveis e consequências mais preocupantes. Um problema de saúde pública que custa ao país 3% do PIB, estima a Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária.

A qualidade do ar é responsável por nove milhões de mortes por ano, parte delas originadas em contextos urbanos altamente poluídos por um sistema de mobilidade esclerosado, para usar uma expressão cara ao urbanista brasileiro Jaime Lerner [1937-2021], autarca de Curitiba, no Brasil, nas décadas de 70 e 90 para quem o carro era “o cigarro das cidades”. Lerner, como outros urbanistas e pensadores da cidade do seu tempo, como Jane Jacobs (A Vida e a Morte de Grandes Cidades Americanas, 1961) Jan Gehl (A Vida entre Edifícios, de 1971), ou Donald Appleyard (Livable Streets, ou ruas habitáveis, de 1981), defendia um urbanismo de escala humana, centrado nas pessoas.

… à cidade saudável

Nas últimas décadas, e já num contexto de percepção das relações intrincadas entre crise climática e um desenvolvimento humano que não tem em conta os limites planetários, o urbanismo recuperou e criou ferramentas para uma vida urbana menos depredadora de recursos, assente menos na expansão territorial e mais na proximidade – é isto, em resumo, a Cidade de 15 minutos, de Carlos Moreno, devedor das Unidades de Vizinhança pensadas por Clarence Perry, há um século.

Há múltiplas e complementares abordagens recentes de aferição e melhoria da qualidade da vida urbana, cada uma com o seu ângulo – mobilidade, igualdade de género, justiça social, alimentação, etc. Em Inglaterra, a trabalhar para a Transport for London, Lucy Saunders aproveitou a sua dupla formação em Geografia e Saúde Pública para desenvolver o conceito de Healthy Streets, ou ruas saudáveis, ferramenta para combater o sedentarismo, sinistralidade rodoviária e poluição urbana que apresentou em Portugal em 2021, durante a conferência internacional Velo City, em Lisboa.

“Desde 2021, a sensibilidade e o interesse pela abordagem Ruas Saudáveis aumentou globalmente, principalmente na Europa, na Austrália e Nova Zelândia”, explica agora Saunders, numa troca de emails. Lamenta, contudo, que o investimento em infra-estrutura para caminhar e andar de bicicleta continue a ser “incrivelmente baixo”, apesar de se conhecerem os benefícios que a diminuição da dependência do automóvel podem gerar em termos de saúde, ambiente e sociabilidade.

Seja qual for o enquadramento teórico-prático escolhido, esse movimento de aproximação entre pessoas, de defesa de um urbanismo e mobilidade de menor intensidade energética, essencial para a redução das emissões associadas à vida urbana, vem gerando um interesse crescente de autarcas e técnicos de planeamento em todo o mundo. E tem um efeito não despiciendo na mitigação de outra epidemia deste século, o da saúde mental, associada, entre outros factores, ao stress e à solidão.

“Criar ambientes de rua em que todos se sintam bem-vindos para caminhar, andar de bicicleta e passar o tempo é vital para apoiar o bem-estar mental e a coesão social. A actividade física quotidiana ajuda a atenuar e a prevenir a depressão ligeira a moderada, bem como a gerir a ansiedade, o stress e a falta de sono. Estar na rua, exposto à natureza e ao clima, ver outras pessoas e interagir com outras pessoas na comunidade são também factores conhecidos de apoio ao bem-estar”, insiste Lucy Saunders.

O reencontro com a natureza

Esta reaproximação a uma cidade de escala mais humana coincide com um movimento de reaproximação à natureza, da qual nos afastamos – passamos a falar dela como algo exterior a nós, na verdade). A natureza, já se percebeu, é uma fonte de inspiração e ferramenta para alguns dos problemas exacerbados pela crise climática, como as inundações – que pedem, por exemplo, cidades-esponja – ou as ondas de calor, que exigem que pensemos o espaço público e privado como refúgios climáticos.

Durante a recente apresentação da edição portuguesa do seu livro, E Se…Usássemos a Imaginação para Construir o Futuro Que Desejamos (Bambual, 2024), Rob Hopkins, co-fundador do Movimento para a Transição, espicaçava a esperança na audiência com um cartoon de Thomas Liera representando uma lista da Forbes com as profissões mais procuradas e respeitadas em 2030. Entre elas estava a de rooftop farmer, a agricultora que produz alimentos nas coberturas de edifícios, o de guarda da biodiversidade urbana e o de despavimentador.

O cartoon é um claro desafio à nossa imaginação sobre o que pode e deve ser uma cidade, e sobre o benefício que isso pode trazer à nossa saúde e à saúde do planeta – que, segundo a abordagem One Health, são um só. A boa notícia é que estas profissões até já existem. Só falta dar-lhes a importância que merecem.

Confira o programa da segunda conferência Cidade Azul aqui.