COP29 aprova de forma controversa novo acordo de financiamento climático

Negociações estenderam-se pela noite. Estados ricos comprometem-se com 300 mil milhões de dólares por ano até 2035, mas sem garantias pedidas por países em desenvolvimento. Mercado de carbono aprovado

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O presidente da COP Mukhtar Babayev fala durante o plenário de encerramento da COP29, no Azerbaijão Maxim Shemetov / REUTERS
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“Sei que nenhum de nós quer sair de Bacu sem um bom resultado”, afirmou o presidente da COP29, Mukhtar Babayev, perante a primeira parte do plenário de encerramento, convocado para o início da noite no horário do Azerbaijão. “Os olhos do mundo estão focados em nós”, sublinhou. No final das contas, o que se viu não foi bonito.

A cimeira do clima das Nações Unidas, que começou a 11 de Novembro e deveria ter terminado na tarde de sexta-feira, dividiu o seu plenário de encerramento este sábado em duas partes para despachar as matérias que não estavam bloqueadas e tratou de aprovar o mercado de carbono. Todas as outras grandes decisões, incluindo financiamento climático, ficaram pendentes até à segunda parte do plenário, que teve uma falsa partida pouco depois da meia-noite (20h30 em Lisboa) e acabou por ser retomada duas horas depois.

Pelas 22h40 de cá, a presidência da COP29 bateu o martelo a aprovar o Novo Objectivo Colectivo Quantificado (NCQG, o Santo Graal desta COP29), mas um conjunto de países, incluindo Cuba, Índia e Bolívia, levantou a voz para apresentar as suas queixas não apenas sobre o texto acordado, mas acusando a presidência azeri de ter ignorado os pedidos de declarações antes de serem tomadas decisões.

“Informámos o Presidente e tínhamos informado o secretariado de que pretendíamos fazer uma declaração antes de qualquer decisão sobre a adopção, mas como todos podem ver isto foi uma encenação e estamos extremamente desapontados com este incidente”, acusou a representante da Índia, numa declaração longa e contundente. “Nós vimos o que você fez”, afirmou. “Opomo-nos em absoluto a este meio injusto de adopção.”

Também a representante da Nigéria tomou a palavra para se queixar da decisão. “Temos o direito, enquanto países, de decidir se aceitamos isto ou não. Estou a dizer que não o aceitamos. São 3h da manhã e vamos bater palmas e dizer que é isto que vamos fazer? Não me parece”, concluiu, sob aplausos sonoros.

Falta de consenso

Já no que toca ao documento sobre o chamado Diálogo dos Emirados Árabes Unidos sobre a aplicação dos resultados do balanço global (GST, o grande documento da COP28), vários negociadores manifestaram o seu desagrado com o processo deste ano.

“Na nossa opinião, o texto que temos à nossa frente carece de uma série de elementos muito importantes”, afirmou um negociador do Chile, afirmando que o texto não reflecte as ferramentas necessárias para informar as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDC) que devem ser entregues até Fevereiro. E, ao contrário do que aconteceu com o NCQG, Mukhtar Babayev adiou a decisão sobre o Diálogo dos EAU (referente, recorde-se, à “transição para o abandono dos combustíveis fósseis”) para a próxima COP.

O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, já veio reagir à decisão desta COP29: “Esperava um resultado mais ambicioso, mas este acordo constitui uma base a partir da qual se pode construir. Tem de ser honrado na íntegra e a tempo.” O português alertou que “os compromissos têm de se transformar rapidamente em dinheiro”, lembrando que “os países em desenvolvimento, afundados na dívida, atingidos por catástrofes e deixados para trás na revolução das energias renováveis, precisam desesperadamente de fundos.”

“Nenhum país conseguiu tudo o que queria e saímos de Bacu com uma montanha de trabalho ainda por fazer. Por isso, não é altura de dar voltas de vitória”, afirmou Simon Stiell, secretário-executivo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas. “Foi uma jornada difícil, mas conseguimos chegar a um acordo”, sublinhou o responsável, destacando a responsabilidade assumida pelos países desenvolvidos: “Como qualquer apólice de seguro, só funciona se os montantes dos prémios forem pagos na íntegra e a tempo”.

Acordo pouco satisfatório

O rascunho final do novo objectivo de financiamento coloca um objectivo de financiamento de 300 mil milhões de dólares (cerca de 290 mil milhões de euros) por ano até 2035, com os países desenvolvidos a “assumirem a liderança” em financiamento público ou proveniente de bancos multilaterais de desenvolvimento.

O texto não expande oficialmente a base de doadores — uma cedência dos países desenvolvidos, que insistiam em incluir a China e países como a Arábia Saudita neste esforço —, mas “encoraja os países em desenvolvimento a efectuarem contribuições, incluindo através da cooperação Sul-Sul, numa base voluntária”.

De fora ficaram os apelos do grupo dos países menos desenvolvidos (LDC, na sigla em inglês) e a Aliança dos Pequenos Estados Insulares (AOSIS), que na tarde de sábado tinham abandonado as reuniões com a presidência azeri por não verem as suas prioridades reflectidas no texto de trabalho apresentado, nomeadamente mais garantias de financiamento directo para as suas nações, que se contam entre as mais vulneráveis às alterações climáticas.

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Marina Silva na COP29 REUTERS/Maxim Shemetov

Além dos delegados na COP29, começaram a surgir mais reacções. O antigo vice-presidente norte-americano Al Gore escreveu que “esta experiência em Bacu revela falhas mais profundas no processo da COP, incluindo a influência desproporcionada dos interesses dos combustíveis fósseis que tem dificultado este processo desde o seu início”. Al Gore atacou ainda o reino da Arábia Saudita, que “tem sido particularmente obstrutivo” ao longo das negociações. “Colocar o futuro da humanidade em grave risco para ganhar mais dinheiro é um comportamento verdadeiramente vergonhoso”, reagiu, citado pelo jornal britânico The Guardian.

“Confiar é fiar juntos”

O texto final do NCQG procura uma solução de compromisso: decide lançar o “Roteiro de Bacu a Belém para o 1.3T” — leia-se 1,3 biliões de dólares, o total anual “mobilizado”, ou seja, incluindo investimento privado , com o objectivo de aumentar o financiamento da luta contra as alterações climáticas aos países em desenvolvimento, “nomeadamente através de subvenções, instrumentos concessionais e não geradores de dívida e medidas destinadas a criar espaço orçamental, tendo em conta as iniciativas multilaterais pertinentes”.

Já são habituais nas cimeiras do clima as acusações dos países em desenvolvimento de terem as suas visões excluídas dos documentos finais, mas este ano há uma voz que é impossível ignorar: o Brasil, que será anfitrião da COP30, em Belém, no próximo ano. Numa conferência de imprensa depois da suspensão da primeira parte do plenário, a ministra brasileira do Meio Ambiente, Marina Silva, afirmou com irritação que "a sociedade tem o direito de saber, perante tamanha emergência, qual é o sentido de urgência que os políticos estão dando".

"Somente ontem tivemos acesso a um valor, ainda temos algumas questões que precisam de ser agregadas", sublinhava a ministra brasileira, falando da “experiência dolorosa que estamos vivendo aqui”.

Marina Silva lamentou que “muitos países” estivessem a bloquear a negociação, impedindo compromissos sobre os "recursos para a implementação". “O sucesso da COP terá de ser um esforço colectivo de mobilização e transparência”, reforçou. E, num processo multilateral, “sem confiança, não vamos a lugar nenhum”, afirmou. “Confiar significa fiar juntos, tecer juntos. Honremos os nossos compromissos.”

Mercados de carbono

Na primeira parte do plenário de encerramento, dominado maioritariamente por decisões burocráticas, os únicos aplausos foram para a aprovação do acordo sobre as regras de um mercado global de compra e venda de créditos de carbono.

O acordo sobre o Artigo 6 do Acordo de Paris surge nove anos depois da aprovação do acordo, e quatro anos desde o início oficial das negociações, na COP26, em Glasgow. O documento incide sobre a forma de garantir a credibilidade do sistema, de modo a que este possa conduzir, de forma fiável, a reduções das emissões de gases com efeito de estufa que estão na origem das alterações climáticas.

A ministra brasileira do meio ambiente, Marina Silva, afirmou que, “apesar de não ser uma panaceia”, o mercado de carbono é “um dos instrumentos importantes” para a acção climática, sublinhando sempre que a transparência, a integridade e a credibilidade são essenciais.

O IETA, um grupo empresarial que apoia a expansão do comércio de créditos de carbono, afirmou que um mercado apoiado pelas Nações Unidas poderia valer 250 mil milhões de dólares por ano até 2030 e contribuir para compensar mais cinco mil milhões de toneladas métricas de emissões de carbono por ano.

Riscos

A ministra portuguesa do Ambiente e Energia, Maria da Graça Carvalho, também celebrou a aprovação do mercado de carbono sob a chancela da ONU, sublinhando que a “UE está bastante confortável” com o texto final: “Estão lá as linhas todas que pretendíamos.”

Para Portugal, a preocupação era que o mercado voluntário de carbono que o Governo está a desenvolver a nível nacional estivesse alinhado com o que ficou decidido e que “não houvesse nada lá que pusesse em causa o que estamos a desenvolver”.

Questionada sobre as dúvidas que ficam sobre a falta de consequência para as entidades que não cumprem as regras do novo mercado, a ministra reconhece que “essa pode ser talvez a parte mais fraca do documento”, mas reforça que “cada um dos países é soberano para fazer isso” ao criar parcerias no âmbito do Artigo 6.2, de acordos bilaterais para a transacção de créditos.

“Estes mercados vivem muito da credibilidade que têm, se não forem credíveis desaparecem”, nota ainda a governante, recordando que as regras aprovadas são “muito exigentes”.

UE vs EUA

A União Europeia bateu-se por uma supervisão mais rigorosa por parte das Nações Unidas e maior transparência nas transacções entre as nações, enquanto os Estados Unidos procuraram mais autonomia sobre os acordos celebrados.

O texto final resultou de um compromisso, depois de a UE ter assegurado serviços de registo para os países que não têm meios para criar os seus próprios registos para emitir e acompanhar os créditos, enquanto os EUA garantiram que o simples registo de uma transacção nesse registo não é considerado uma aprovação dos créditos pela ONU.

Ao concordar que o registo na base de dados não garante a qualidade de um crédito ou serve de recomendação aos emissores, a UE acabou por ceder para acomodar os EUA, explicou à agência Reuters Pedro Martins Barata, que acompanhou as negociações na COP29 para a organização sem fins lucrativos Fundo de Defesa Ambiental. “Continua a ser um sistema de comércio internacional viável... mesmo que algumas pessoas digam que não tem garra”.

Na sua página do LinkedIn, o especialista, que foi Coordenador do Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050, nota a importância desta decisão: “Pela primeira vez desde 2013, podemos assistir ao surgimento de um mecanismo viável, apoiado pela ONU, para alargar e ligar os mercados de carbono em todo o mundo.”