O que é a gota fria, o fenómeno que causou as fortes chuvas em Espanha?
Fenómeno extremo de precipitação ocorreu algumas vezes nas últimas décadas, mas ar e água mais quentes no Mediterrâneo permitem haver mais humidade na atmosfera, o que faz aumentar chuvas.
Um sistema estacionário por cima do Sudeste da Península Ibérica e as condições mais quentes do ar e do mar no Mediterrâneo estão na origem da grande intensidade do fenómeno que, entre a noite de terça-feira e a madrugada desta quarta-feira, despejou mais de 400 milímetros de água em poucas horas em algumas localidades do Leste espanhol, explicam os peritos ouvidos pelo PÚBLICO, que falam de uma situação extrema, mas que não é inédita. Embora não se possa culpar directamente as alterações climáticas, elas terão ajudado a intensificar o fenómeno que causou a morte a mais de 90 pessoas.
“O ar mais quente tem maior capacidade de reter vapor de água, cerca de 6% a 7% em média por cada grau a mais [de aquecimento global]. O ar sobre a Península Ibérica e à volta e a temperatura da água do mar do Mediterrâneo têm estado muito acima do normal. Isso favorece a evaporação e que o ar tenha maior capacidade [de reter humidade]. O mesmo fenómeno pode provocar 10%, 15% de precipitação a mais do que ocorreria”, se o planeta não estivesse a aquecer, explica ao PÚBLICO Ricardo Trigo, geofísico da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Sem as alterações climáticas um fenómeno destes “já seria uma coisa muito intensa, mas as alterações climáticas ainda o tornaram mais intenso”, observa.
Mas que fenómeno é este? A “gota fria” ou o termo científico espanhol “depresión aislada en niveles altos”, que se resume no acrónimo DANA, tão repetido nesta quarta-feira, ocorre quando uma depressão – um sistema de baixa pressão e frio – fica estacionário na região da troposfera (a região mais baixa da atmosfera, até aos 18 quilómetros de altitude) durante algum tempo. Neste caso, “o vale depressionário veio do Norte, das ilhas britânicas, a estender-se para o Sul e depois isolou-se e evoluiu sobre a Península Ibérica”, diz ao PÚBLICO Bruno Café, meteorologista do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).
Este sistema, ao interagir com o ar mais quente perto da superfície, provoca um dinamismo que vai produzir chuva: o ar mais quente e húmido, ao ter menos densidade, vai subindo e alimentando regiões em altitude que produzem nuvens e precipitação. Como o mar do Mediterrâneo tem estado mais quente, há mais humidade disponível. O problema torna-se mais grave pelo carácter estacionário destes sistemas. “É um ciclone que fica a rodopiar sobre si próprio, e isso faz com que continuamente vá apanhando humidade no Mediterrâneo que cai em cima da Península Ibérica. Por isso é tão perigoso”, justifica Ricardo Trigo.
As tempestades que vêm do oceano Atlântico trazidas normalmente pelas correntes de jacto podem produzir muita chuva, mas, como se movimentam depressa, distribuem a precipitação por uma área maior. Já os sistemas estacionários, cortados das correntes de jacto, acabam por concentrar a precipitação em áreas mais pequenas. Neste caso, isso resultou na queda de mais de 490 milímetros de água em Chiva, uma localidade valenciana, segundo os dados da Agência Estatal de Meteorologia de Espanha. “Há valores registados em Espanha que se aproximam muito dos valores que são registados no ano inteiro, em poucas horas”, diz Bruno Café. “É muita, muita precipitação.”
Isto não faz deste um fenómeno inédito, mas é com certeza o mais intenso deste século em Espanha. No entanto, os jornais espanhóis recordam eventos semelhantes que ocorreram em 1982 e 1987, por exemplo. O jornal espanhol El Mundo refere que na gota fria ocorrida a 11 de Setembro de 1996 acumularam-se 520 milímetros de água em Tavernes de la Valldigna, outra localidade valenciana.
Água com memória
Ricardo Trigo sublinha que estes sistemas estacionários tendem a ocorrer nesta época do ano na região sul e leste da Península Ibérica e, quando ocorrem, podem ser responsáveis por uma percentagem importante da pluviosidade desse ano. Mas é difícil prever exactamente onde a quantidade de chuva que cai vai tornar-se catastrófica. “Na zona de Valência, há uma estação em que chove 450 milímetros, mas a 50km há uma em que chove 150 milímetros”, explica o geofísico. “Ninguém consegue prever com esse grau de rigor no espaço e no tempo” o que vai acontecer, adianta.
Esse facto dificulta a protecção das populações. No entanto, o geógrafo José Luís Zêzere observa que os danos tendem a concentrar-se em certos locais. “Há um ditado um bocado trágico que é a água tem memória”, diz ao PÚBLICO o director do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa. “Isto significa que, quando chove muito, a água vai escoar pelos sítios onde escoava originalmente, por função da lei da gravidade. A água concentra-se nos sítios mais baixos, que são os antigos fundos do vale.”
Para José Luís Zêzere, há um perigo inerente quando o ordenamento do território não respeita aquela dinâmica da água, algo que infelizmente se observa estes dias por Espanha, mas que também se viveu em Lisboa em Dezembro de 2022, quando ocorreram dois fenómenos de grande precipitação separados por poucos dias. “A relação que as sociedades têm tido com a água não é muito saudável, no sentido de artificializar demasiado os territórios e não respeitar o funcionamento natural dos processos”, alerta o geógrafo, adiantando que as alterações climáticas pioram os eventos extremos. “Mais tarde ou mais cedo aquilo vai correr mal.”