COP16: a guerra contra a natureza não pode ser ganha, avisa Guterres

Presidente da Colômbia pede que a COP16 da biodiversidade seja um ponto de viragem, num discurso contra a “ganância” e promove conversão da dívida dos países em acções pela natureza e pelo clima.

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António Guterres na cerimónia ERNESTO GUZMAN JR./EPA
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A natureza é vida. “E estamos a fazer guerra contra ela, que é uma guerra sem vencedores”, alertou o secretário-geral das Nações Unidas, na conferência da Convenção da Biodiversidade, em Cali, na Colômbia (COP16). “Vivemos uma crise existencial, a que nenhum país fica imune. A devastação das alterações climáticas e da perda de biodiversidade, da poluição, afecta todos os países do mundo, sejam ricos ou pobres”, sublinhou. Porque persistimos numa “economia baseada em modelos económicos obsoletos”, afirmou António Guterres nesta terça-feira.

Mas a guarda avançada da marcha contra as crises ambientais na abertura do segmento de alto nível da COP16 — em que responsáveis governamentais são chamados a tomar decisões e fazer compromissos — foi Gustavo Petro, o Presidente da Colômbia, o país anfitrião da COP16.

Fez um discurso contra a “ganância” que governa o mundo, que faz com que nestas grandes conferências das convenções de protecção do ambiente das Nações Unidas, assinadas praticamente por todos os países do mundo, não se fale, por exemplo, do petróleo, e dos efeitos da sua exploração no clima da Terra… “Estas interferências burocráticas, digamos assim, garantem que os interesses da ganância sejam ouvidos acima dos da humanidade”, afirmou.

“Não se resolve a crise climática através da rentabilidade nem através das taxas de interesse. Estamos a enganar-nos e o tempo está a esgotar-se”, disse Gustavo Petro, o primeiro Presidente de esquerda na Colômbia, cujo discurso acabou por se centrar mais em temas discutidos nas cimeiras do clima do que nas da biodiversidade e nas desigualdades do sistema capitalista.

Dívida por natureza

Uma sugestão que avançou foi a ideia de converter a dívida de muitos países em acções pela natureza e pelo clima. “É algo que a Zero considera também essencial”, destacou Francisco Ferreira, da organização ambientalista Zero, que está em Cali. O exemplo de Portugal com Cabo Verde, na criação do Fundo Climático e Ambiental, em troca dos 140 milhões da dívida – aprovado pelo Parlamento cabo-verdiano este mês –, poderia ser estendido à biodiversidade.

Na verdade, seis organizações ambientais com presença global anunciaram nesta terça-feira a sua união para ter um leque de potenciais projectos que possam ser apoiados através da conversão de dívidas soberanas. O esforço servirá para estabelecer os padrões de base para este tipo de conversões de dívida em acções para a natureza e o clima, diz um comunicado de imprensa conjunto da Conservation International, Nature Conservancy, Pew Charitable Trusts, Re:wild, Wildlife Conservation Society, e Fundo Mundial para a Conservação da Natureza (WWF).

O Quadro Global para a Biodiversidade de Kunming-Montreal​, assinado em 2022, estabelecia que os países mais ricos deveriam mobilizar 200 mil milhões de dólares por ano até 2030 (cerca de 185 mil milhões de euros), incluindo 20 mil milhões por ano até 2025 (cerca de 18 mil milhões de euros), para acções de preservação da natureza e dos seres vivos. Para conseguir que 30% do planeta estivesse protegido até 2030. Mas o que se obteve até agora foi 407 milhões de dólares (perto de 377 milhões de euros).

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Presidente colombiano Gustavo Petro ERNESTO GUZMAN JR./EPA

“Se conseguirmos dar escala às conversões da dívida, isso poderia ser parte da solução, e desbloquear perto de 100 mil milhões de dólares em financiamento para a natureza e clima”, de acordo com estimativas desta nova coligação. Baseiam-se no facto de 60% das nações de mais baixos rendimentos, muitas das quais são também as mais vulneráveis às alterações climáticas, estarem em dificuldades com a sua dívida, o que limita as suas capacidades de proteger a biodiversidade ou responder a ameaças climáticas – segundo dados do Banco Mundial.

Os pontos-chave de Guterres

Também António Guterres pediu esforços para desbloquear o financiamento. “Tocou nos pontos-chaves de discussão na COP16 em Cali, com particular destaque para o financiamento, mencionando a necessidade de se mobilizar 200 milhares de milhões de dólares por ano em 2030, de financiamento público e privado”, destacou Francisco Ferreira.

O secretário-geral das Nações Unidas saudou ainda os planos de criação um organismo permanente na convenção da Biodiversidade para ter em conta o conhecimento e os interesses dos povos indígenas e comunidades locais. “Temos de proteger quem protege a natureza”, afirmou.

Guterres salientou ainda a necessidade de cada país apresentar “planos claros, ambiciosos e detalhados que os alinhem com as metas da biodiversidade”. Portugal, recorde-se, chegou a Cali sem plano de acção nem estratégia actualizada para conservação da natureza. “É fundamental que todos os países, em particular Portugal, concretizem a sua estratégia e plano de acção para a biodiversidade (só 36 dos 196 países entregaram este documento até agora)”, frisou Francisco Ferreira.

Os mais ricos têm mais riscos

Petro é Presidente do segundo país mais biodiverso do planeta – o Brasil é o primeiro, e ele não se esqueceu de falar da COP30 do clima, que se realizará para o ano no brasileiro estado do Pará, como esperança para haver uma inversão radical no rumo que levam as negociações sobre as crises ambientais.

Falou da polémica questão de financiar as perdas e danos dos países mais vulneráveis às consequências das alterações climáticas, que são normalmente também os mais pobres do mundo, uma batata quente das negociações do clima. “Países de risco, nós? Os mais arriscados são os que mais emitem dióxido de carbono”, afirmou Gustavo Petro, invertendo a lógica habitual: “Não têm um risco maior os países que adicionam mais dióxido de carbono [o principal gás com efeito de estufa]?”, interrogou.

Sugeriu uma nova forma de calcular os riscos, com base num índice de dióxido de carbono equivalente – uma métrica usada para comparar as emissões de vários gases de estufa conforme o seu potencial de aquecimento global. Dessa forma, defendeu, os países com maior risco climático deveriam ser considerados os maiores emissores – em vez de os países mais pobres e vulneráveis aos efeitos do clima serem vistos como um incómodo.

“Estes são os donos do mundo global, os centros de poder global, que não se importam de nos matar. Que não querem deixar os sul-americanos que emigram depois de os seus rios terem secado, o clima ter colapsado”, afirmou o Presidente da Colômbia, disposto a lançar a revolução a partir do púlpito, brandindo um lápis enquanto discursava. Nomeou os grandes que oprimem o mundo: as bombas israelitas sobre Gaza, a guerra na Ucrânia, a China que é maior detentora de dívida do mundo, os Estados Unidos e toda a sua potência económica.

“O que precisamos é de democracia global. Espero que esta COP16 seja um ponto de inflexão, quisemos que não fosse uma reunião numa alta montanha cheia de neve, isolada da humanidade, mas antes que se pudesse sentir o calor, o espírito de alegria da região”.