China e EUA falham pagamentos e ameaçam todas as negociações climáticas da ONU

Perto de metade do orçamento previsto para 2024 e 2024 do secretariado da Convenção das Alterações Climáticas não foi pago. Há um buraco de 57 milhões de euros que bloqueia acções em torno do clma.

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Activistas climáticos mascarados de vários líderes mundiais, na COP26, em Glasgow, 2021 DYLAN MARTINEZ/REUTERS
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O principal organismo da ONU para as alterações climáticas está a enfrentar um grave défice orçamental, de acordo com uma análise da Reuters a documentos da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (UNFCCC, na sigla em inglês). Há um buraco orçamental de pelo menos 57 milhões de euros – ou quase metade do financiamento necessário para o secretariado da UNFCCC conduzir as negociações climáticas anuais entre quase 200 países e ajudar a pôr em prática os acordos feitos.

Os orçamentos da UNFCC são definidos por dois anos. O valor para 2024-2025 é de 240 milhões de euros, prevendo-se que cerca de metade desse valor seja atribuído para este ano. Combina as três principais rubricas: um fundo principal para o qual estes países são obrigados a contribuir, um fundo suplementar que atrai donativos voluntários e outro fundo voluntário para ajudar a participação de representantes dos países mais pobres nas negociações climáticas das Nações Unidas.

Os países signatários da Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas aprovaram o orçamento e espera-se que contribuam com fundos. Só que isso não aconteceu.

Os que pagam a mais... e os que não pagam

Enquanto uma mão-cheia de países, como o Japão e a Alemanha, excederam já as suas obrigações de financiamento, outros ainda não cumpriram os seus compromissos – como os Estados Unidos e a China, as duas maiores economias mundiais e os também os maiores emissores de gases com efeito de estufa, que causam as alterações climáticas. Os pagamentos deviam ser feitos até 1 de Janeiro de cada ano.

Alguns países pagaram até mais do que a sua parte. O Japão pagou voluntariamente 11 milhões de euros para além do seu pagamento orçamental básico de três milhões. A Alemanha doou 2,3 ​​milhões de euros para o orçamento principal e mais 7,3 milhões de euros para o fundo suplementar.

O secretariado, criado ao abrigo da Convenção das Alterações Climáticas de 1992, é o organismo das Nações Unidas que coordena os esforços internacionais para reduzir as emissões de gases com efeito de estufa e a organização das conferências anuais da convenção (este ano, a COP29, no Azerbaijão), onde os países fazem negociações diplomáticas para cumprir esse objectivo.

O orçamento dividido – que combina contribuições obrigatórias e voluntárias das nações – permite a alguns países canalizar os pagamentos da UNFCC através de diferentes ministérios governamentais ou processos de aprovação. Os países que pagam para o orçamento suplementar podem também especificar como gostariam que o dinheiro fosse gasto, embora estes pedidos não sejam tornados públicos e nem sempre sejam vinculativos.

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Mas o orçamento suplementar da UNFCC também está fortemente subfinanciado. Até 1 de Outubro, o secretariado tinha recebido apenas 41 milhões de euros dos 152,3 milhões de euros previstos para 2024-2025.

Os problemas financeiros tornaram-se evidentes em Março, quando a UNFCCC apelou a fundos urgentes dos países ricos. O Reino Unido e a Alemanha responderam com um total de 1,5 milhões de euros, o que permitiu à UNFCCC apoiar os delegados nas conversações de Junho em Bona.

“É necessário entregar muito mais do financiamento prometido para garantir que todas as partes – especialmente as mais vulneráveis – estejam adequadamente representadas durante o processo negocial este ano”, disse o secretário executivo da UNFCCC, Simon Stiell, numa actualização enviada aos governos em Maio.

Com os cofres da UNFCCC no vermelho, o Azerbaijão, país anfitrião da COP29, disse no mês passado que ajudaria a garantir que todos os países pudessem participar na cimeira de Novembro. O Azerbaijão é um país de rendimento médio cujos próprios diplomatas seriam elegíveis para ajuda financeira da UNFCC.

Austeridade

A UNFCCC tem supervisionado as discussões para determinar regras para o comércio de créditos de carbono – uma meta delineada no histórico Acordo de Paris de 2015 e avançada na cimeira climática da ONU COP26 em Glasgow em 2021. Outro esforço envolve a coordenação de negociações para a meta de financiamento climático que os países deverão aprovar na COP29.

Com os cofres vazios, a UNFCCC está a reduzir custos. Conseguiu realizar conversações entre todos os países em Bona, em Junho, mas cancelou a sua habitual transmissão de vídeo em directo para permitir a participação remota de negociadores que permaneceram no seu país - naquilo a que cinco diplomatas envolvidos nas conversações chamaram uma medida de redução de custos.

Estes esforços permitiram reduzir mais de 20 milhões de euros às necessidades orçamentais suplementares do secretariado para 2024-2025, disse um porta-voz da UNFCCC.

Só que estes cortes tiveram custos para a representação dos países mais pobres. “Há equipas políticas que esperam poder observar os procedimentos e prestar apoio remotamente, e isso perde-se completamente”, disse Daniel Lund, conselheiro das Fiji em negociações climáticas, sobre o cancelamento da participação remota.

A lacuna orçamental forçou o secretariado a reduzir as suas actividades. As medidas de austeridade vão desde a redução do horário de funcionamento das conferências na sua sede em Bona, na Alemanha, até ao cancelamento de eventos das “semanas do clima” regionais este ano. No ano passado, estas cimeiras regionais, realizadas em países como o Quénia e a Malásia, angariaram milhares de milhões de dólares em promessas de investimento de governos, investidores e entidades filantrópicas para energias renováveis, reflorestação e outros projectos centrados no clima.

“Continuamos a trabalhar incansavelmente, mas os nossos recursos estão cada vez mais reduzidos”, disse um porta-voz da UNFCCC, que pediu para não ser identificado, em resposta à análise da Reuters.

Maiores atrasos de sempre

A enviada climática da Alemanha, Jennifer Morgan, instou os países a encontrar uma solução. “Precisamos de um secretariado climático que possa desempenhar as suas funções”, disse Morgan à Reuters. "Estamos a enfrentar uma crise enorme em todo o mundo."

Até este mês, a UNFCCC recebeu 63 milhões de euros em contribuições para 2024. Fontes oficiais nos Estados Unidos e na China asseguraram à Reuters que estes países pagariam as suas contribuições em atraso este ano, mas não especificaram quando.

O porta-voz do Departamento de Estado norte-americano, Melvin Felix, disse que os Estados Unidos “ainda pretendem dar uma contribuição substancial” para apoiar o secretariado da UNFCC este ano. O Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês disse que a China “cumprirá as suas obrigações, como sempre”.

Em Outubro, os EUA ainda deviam 7,3 milhões de euros ao orçamento principal da UNFCC para 2024, embora tenham contribuído com 2,5 milhões de euros para o seu orçamento suplementar. A China ainda devia 5,6 milhões de euros em pagamentos para o orçamento principal, apesar de ter contribuído com 497 mil euros para o fundo suplementar.

Só que mesmo que ambos os países cumpram as suas obrigações este ano, não deve ser suficiente para tapar o buraco no orçamento global da UNFCC.

É habitual os países atrasarem-se no cumprimento do prazo de pagamento por razões logísticas, por exemplo, se os ciclos orçamentais nacionais não decorrerem num ano civil ou se os pagamentos necessitarem de aprovação legislativa adicional. As eleições nacionais também podem causar atrasos.

A análise da Reuters mostrou que, nos últimos anos, estas questões foram normalmente resolvidas antes de Outubro – e que os atrasos deste ano são de longe os piores da história da UNFCCC, em termos do montante do orçamento global ainda em falta.

Enfraquecer acção

A Reuters falou com mais de uma dezena de diplomatas envolvidos nas negociações climáticas da ONU, bem como com representantes da UNFCCC. A maioria falou anonimamente. Oito dos diplomatas manifestaram preocupação com o facto de a lacuna de financiamento poder prejudicar as negociações climáticas das Nações Unidas, numa altura em que os governos nacionais procuram biliões de dólares em investimentos climáticos.

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A conferência anual que junta os países signatários da Convenção das Alterações Climáticas das Nações Unidas realiza-se este ano em Bacu, no Azerbaijão Aziz Karimov/REUTERS

Os diplomatas enumeraram exemplos, não relatados anteriormente, de como a crise de financiamento já estava a afectar as operações da UNFCCC, tais como forçar o secretariado a prolongar os contratos de trabalho por apenas alguns meses de cada vez, ou dificultar a sua capacidade de financiar as viagens de representantes de nações mais pobres para as negociações sobre as alterações climáticas.

A UNFCCC confirmou à Reuters a existência de um défice de 2,04 milhões de euros no fundo destinado a pagar a centenas de diplomatas para participarem nas negociações sobre o clima, incluindo a cimeira COP29 de Novembro, em Bacu, no Azerbaijão.

O principal negociador climático do Egipto, Mohamed Nasr, afirmou que qualquer enfraquecimento do trabalho realizado pela UNFCCC ao não financiar o seu orçamento significaria "criar espaço para enfraquecer a acção sobre as alterações climáticas a nível global".

“Não se trata apenas de negociar as decisões, mas também da pressão global exercida sobre os líderes para que cumpram”, disse Nasr à Reuters.

Mais responsabilidades, o mesmo dinheiro

Quando os países assinaram o tratado da UNFCCC em 1992, atribuíram-lhe uma tarefa central: facilitar o diálogo intergovernamental e a cooperação na resposta às alterações climáticas. Desde então, estas conversações produziram mais acordos globais, como o de Paris e o acordo COP28 do ano passado sobre a transição dos combustíveis fósseis.

À medida que os países foram aprovando mais negociações e eventos climáticos para a UNFCCC, as necessidades orçamentais do secretariado foram aumentando constantemente. Mas os países têm resistido a aumentar as suas próprias obrigações de financiamento. O resultado desta lacuna é que a UNFCCC se tem tornado cada vez mais dependente de doações voluntárias.

Simon Stiell, o secretário da UNFCC, lamentou que as contribuições financeiras dos países tenham diminuído, enquanto os governos pediram ao organismo da ONU que assumisse mais trabalho. “Esta abordagem tem limites lógicos e humanos”, disse Stiell num discurso em Junho.

Um diplomata disse que a UNFCCC poderia reforçar a sua defesa de um orçamento mais elevado se fosse mais frugal. Por exemplo, negociando com os anfitriões da cimeira das COP taxas de hotel mais baixas para os delegados cuja viagem financia. Outros referiram que o secretariado ainda não põe totalmente em prática as recomendações feitas pelos auditores da ONU, em áreas como a selecção de pessoal e benefícios dos funcionários.

Questionado sobre estas críticas, o porta-voz da UNFCCC disse que o facto de as nações estarem a pedir ao organismo que trabalhe mais representa um “voto de confiança”. "No entanto, quando o financiamento não é aumentado de forma correspondente, e muitas promessas de financiamento não são cumpridas a tempo, isto por si só causa grandes ineficiências, uma vez que é necessário gastar mais tempo na expansão e na realocação dos recursos existentes, numa altura em que muitos funcionários estão já a trabalhar literalmente 24 horas por dia", afirmou.