As guardiãs das pradarias marinhas estão a ajudar a vida a voltar ao estuário do Sado
Raquel Gaspar fundou o projecto Ocean Alive para recuperar as pradarias marinhas, maternidade e berçário de muitas espécies do estuário do Sado. Com isso, quer também empoderar as pescadoras locais.
Uma caminhada no baixio do Catita, em pleno estuário de Sado, é uma experiência sensorial: o cheiro estuarino faz-se presente, o ruído ritmado de conchas a serem pisadas estimula os ouvidos, o verde vai tomando conta do castanho da areia, anunciando uma pradaria marinha. É este habitat que viemos visitar: a manta verde é formada por folhas estreitas que fazem lembrar relva fina e espalham-se por dezenas de metros. Na maré baixa, quando o baixio fica a descoberto e é possível caminhar por ele sem molhar os pés, as folhinhas da pradaria do Catita ficam abandonadas sobre o sedimento, sem água para lhes dar estrutura. O que permite investigá-las melhor.
“Não estamos a observar algas, estamos a observar plantas”, informa-nos Raquel Gaspar, bióloga marinha, directora e fundadora da Ocean Alive, observando a pradaria. “Uma alga não tem uma raiz, só pode crescer em cima de qualquer coisa, outro organismo, uma rocha, um tijolo. As pradarias não crescem na rocha, as suas raízes crescem como se fossem uma planta em terra, mas o solo no mar é areia e sedimento, o lodo.”
A sebarrinha (Zostera noltei) é a planta que domina a pradaria do Catita. Tal como as suas parentes terrestres, ela produz flores e sementes. A raiz da sebarrinha é um rizoma, que ajuda a propagar-se ao longo do baixio.
Desde 2017 que esta pradaria cresceu de 19 para mais de 27 hectares. É uma boa notícia para Raquel Gaspar. As pradarias marinhas servem de maternidade e berçário, onde peixes, moluscos e crustáceos vêm desovar, e onde os juvenis podem alimentar-se num ambiente mais protegido e com a água mais limpa, já que as plantas filtram os sedimentos e produzem substâncias nefastas para vários tipos de bactérias, afastando-as. Deste modo, a pradaria ajuda a espalhar vida para todo o estuário, aumentando a disponibilidade de alimento não só para os pescadores, mas para outras criaturas, como a população de golfinhos do Sado.
“Os golfinhos alimentam-se de dezenas de quilos de peixe e marisco todos os dias”, diz a bióloga. “Sem pradarias não há golfinhos.”
É este tipo de ligações que asseguram a robustez dos ecossistemas e que estão na frente das discussões na COP16 – a convenção anual das Nações Unidas para a biodiversidade, que se inicia esta segunda-feira e vai até 1 de Novembro, em Cali, na Colômbia.
Um dos argumentos para a protecção dos ecossistemas e de habitats, como as pradarias marinhas, é que estão directamente relacionados com o bem-estar humano, mesmo a milhares de quilómetros de distância.
“Existe um estudo científico que mostra que os juvenis dos bacalhaus que vivem nas pradarias do Norte da Europa têm mais probabilidade de chegarem ao nosso prato, portanto, de serem adultos, quando comparados com os juvenis que vivem em costa aberta. Exactamente por este efeito de terem crescido num ambiente com abrigo, onde são menos predados e onde há alimento em abundância”, exemplifica a bióloga.
Da investigação à acção
Ao longo de duas décadas, Raquel Gaspar investigou a população de golfinhos do Sado, muito vulnerável por ser pequena, com cerca de 30 indivíduos. “Fiz vários modelos em que estudei a sobrevivência das crias, a reprodução das fêmeas. O único cenário em que mostrava a população a crescer era quando as condições ambientais eram mais favoráveis”, explica. Um desses factores passa pela disponibilidade de alimento.
Perante essa descoberta, a bióloga decidiu parar de fazer investigação e colocar as suas energias e paixão na protecção das pradarias marinhas do estuário de Setúbal. Em 2015 fundou o projecto Ocean Alive para a protecção do oceano e, mais precisamente, das plantas aquáticas que formam as pradarias marinhas.
“A Ocean Alive trabalha para proteger as pradarias marinhas, envolvendo as pessoas que delas dependem, como as pescadoras”, explica a bióloga.
O projecto “quer dar o exemplo de como é possível cuidar do ambiente e criar actividades económicas que restauram o mar”, adianta. Esta é uma forma de “valorizar a profissão das pescadoras, a sua sabedoria e criar novas profissões, como educadoras marinhas”.
A cooperativa consegue financiamento através de projectos internacionais, como o projecto Life da União Europeia, ou empresas que podem doar até 3500 euros por ano, como é o caso da Coca-Cola, que apadrinhou especificamente a pradaria do Catita. Há ainda dinheiro vindo dos serviços que a Ocean Alive vende, como acções de educação marinha e de limpeza, e donativos individuais.
Além de monitorizar dezenas de pradarias marinhas da região, mais recentemente a cooperativa está a tentar proteger as pradarias marinhas de Soltróia, Base-ferry e Ponta do Adoxe, na península de Tróia. “O nosso trabalho nestas três pradarias é regular a navegação, envolvendo os decisores e os usuários. Manter o usufruto das pessoas à praia, mas com soluções que não danifiquem a pradaria”, explica Raquel Gaspar.
Um xarroco no alcatruz
De acordo com a literatura científica, o estuário do Sado albergava uma área de pradarias marinhas acima de mil hectares. Esta abundância ficou ameaçada com o desenvolvimento industrial na região e das dragagens feitas no Sado para a construção dos estaleiros, nos primeiros anos da década de 1970, que hoje pertencem à Lisnave.
Animais como o lagarto-gafanhoto-do-mar (Squilla mantis), uma espécie de crustáceo, o búzio-de-bicos (Bolinus brandaris) e o búzio-cagão (Murex trunculus), desapareceram juntamente com uma grande parte das pradarias. “O búzio-de-bicos fazia o pão da mesa de muitas pessoas”, diz Raquel Gaspar, mostrando a importância daquele habitat para a comunidade.
“Na altura em que eu era criança havia muita ostra dentro do rio, havia o búzio-de-bico, havia o búzio-cagão”, recorda por sua vez Sandra Lázaro, pescadora e “setubalense de gema”, que há décadas vai para aquele estuário pescar. Desde 2017 que Sandra Lázaro integrou a Ocean Alive, tornando-se uma das guardiãs do mar, integrando campanhas de mapeamento e monitorização das pradarias marinhas, além de fazer educação ambiental e sensibilização.
A pescadora também veio à visita do baixio do Catita, perto do cais palafítico da Carrasqueira, a cerca de 20 minutos de lancha da marina de Setúbal. Mal chega à zona da pradaria, encontra logo um xarroco, um peixe comum de águas costeiras pouco profundas, dentro de um alcatruz, um pote de barro para caçar polvos.
“Não há um dia que a Sandra não traga uma refeição para casa”, observa Raquel Gaspar. “Agora ainda vai tirar dali uma ostra.” Da superfície do alcatruz, a pescadora raspa o bivalve. “Isto é uma ostra-portuguesa”, diz, mostrando um pouco da vida estuarina que se encontra na pradaria, onde há também caranguejos, chocos, linguados.
Em Portugal, existem três espécies de plantas que formam as pradarias marinhas. Além da sebarrinha, o estuário do Sado contém as outras duas espécies: a Zostera marina e a Cymodocea nodosa. Segundo as contas da Ocean Alive, as 27 pradarias mapeadas pelo projecto somam mais de 190 hectares, longe da realidade de meados do século XX. Mas nos últimos anos, a sua área tem vindo a crescer. Raquel Gaspar suspeita que parte da razão é uma melhoria na qualidade da água do Sado. “Algumas espécies estão a aparecer agora, ao fim de 40 anos, como o búzio-de-bico, o búzio-cagão, os lagartos-do-mar”, diz Sandra Lázaro.
Um cofre de carbono
Apesar dos sinais positivos, no meio da pradaria do Catita continuam a encontrar-se grandes zonas esburacadas onde a sebarrinha não consegue colonizar. Estes buracos são produzidos durante a mariscagem, através de técnicas que a Ocean Alive está a tentar alterar, para evitar o dano das pradarias. É isto que Sandra Lázaro e Raquel Gaspar mostram com a ajuda de uma rede de pesca que as duas esticam.
“Isto é a pradaria”, diz Sandra Lázaro, referindo-se à rede. “Quando lançamos o ancinho para virar a terra, puxamos os rizomas”, continua a pescadora, formando buracos na rede que representam os buracos que vemos entre a pradaria. “Todos estes buracos que estão aqui já foram pradaria. Só que as âncoras dos barcos, os ancinhos, os sachos” danificaram, explica. “As pessoas às vezes não têm o conhecimento do mal que estão a fazer.”
Este esburacamento traz um mal acrescido: possibilita a libertação de muita matéria orgânica, cheia de carbono, que volta a estar disponível no sistema e pode acabar na atmosfera, alimentando o efeito de estufa. Os detritos da água têm tendência a decantar nas zonas da pradaria, que vai acumulando matéria orgânica no substrato. Como há muito pouco oxigénio, esta matéria orgânica não é degradada, e as pradarias marinhas tornam-se um cofre de carbono.
Estima-se que o carbono existente em um hectare deste habitat seja equivalente ao armazenado em 30 hectares de floresta. Este é mais um argumento para a sua protecção e para evitar aqueles buracos.
Raquel Gaspar diz-nos que os pescadores acreditam que a pradaria regenera naturalmente os buracos. Mas estão enganados, é preciso um substrato liso, sem buracos, para o rizoma das plantas colonizar os espaços vazios. É por isso que a função das guardiãs do mar é essencial.
“Nós não fazemos nada com a comunidade se não mudarmos comportamentos e temos de usar os pares para falar a linguagem deles. As pescadoras são muito valiosas na comunicação com a sua própria comunidade”, explica Raquel Gaspar. No Verão, há acções de sensibilização de pescadores e de outros barqueiros, em que as guardiãs falam de um para um sobre os bons e os maus comportamentos que ameaçam as pradarias.
“Desde que se começou a fazer a sensibilização das pessoas que andam à pesca, para eles levarem de volta o lixo, deixou de se apanhar [na natureza] as latas de conserva, as latas de sumos, as garrafinhas de sal”, nota Sandra Lázaro.
Este trabalho, assim como as acções de educação e de monitorização das pradarias, é pago. Embora as actividades e o dinheiro não cheguem para sustentar totalmente as mais de uma dezena de guardiãs – Sandra Lázaro continua a pescar todos os dias –, esta é uma forma de valorizar o lugar social daquelas mulheres, empoderando-as, e de começar a criar profissões cujo retorno seja a conservação de lugares naturais como o estuário do Sado. “Isto para mim é um modelo”, diz Raquel Gaspar. “É muito importante que a sociedade perceba isso.”