A Conferência da Biodiversidade das Nações Unidas (COP16) começa na segunda-feira em Cali, na Colômbia, e caminha sobre os ombros de gigantes, sucedendo à cimeira de 2022 onde foi aprovado o histórico Quadro Global de Biodiversidade de Kunming-Montreal (GBF, na sigla em inglês). Dois anos depois, Portugal chega de mãos praticamente vazias: muitas reuniões e contributos em processos europeus, mas nenhum plano em cima da mesa.
Há uma série de pontos acordados na COP15, em Montreal, que deveriam ser concretizados até à COP16. Continuam em falta a revisão da Estratégia Nacional da Conservação da Natureza e da Biodiversidade 2030 (ENCNB 2030), publicada em 2018, e o respectivo Plano de Acção Nacional, que devem ser alinhados com o GBF.
Em resposta ao Azul, o ICNF esclarece que a revisão da ENCNB 2030 – “o chapéu sob o qual se encontram todas as dimensões preconizadas no GBF” – “ainda está em curso”. Este “processo complexo” está a ser apoiado pelo Centro de Estudos e Desenvolvimento Regional e Urbano (CEDRU), “num investimento de 35 mil euros”. O contrato foi firmado em Novembro do ano passado.
Já o Plano de Acção para a Biodiversidade, que resultou de um “processo participado” no qual estiveram envolvidas várias entidades, chegou a ser aprovado em 2022 e foi submetido à tutela em funções pelo Fórum Intersectorial, mas não foi tornado público, confirma o ICNF. Entretanto, com o acordo alcançado sobre o Quadro Global de Biodiversidade, é possível que o documento tenha de ser revisto para reflectir as novas metas – mas, desde então, não houve notícias do mesmo.
“Ainda não entregámos o TPC porque não está completo”, resume Francisco Ferreira, presidente da associação Zero. O que é que falta? “Entregar e, mais ainda, garantir que não se trata apenas de um documento, mas que tenho algo substancial do ponto de vista da acção.”
Portugal, infelizmente, não destoa do resto: mais de 80% dos países não deverão cumprir o prazo estabelecido pelas Nações Unidas para apresentarem novos compromissos em matéria de natureza antes da cimeira da biodiversidade COP16 na Colômbia, de acordo com o jornal britânico The Guardian.
Renaturalização dos rios
Apesar de não levar o trabalho de casa fechado, Portugal tem avançado nalgumas frentes.
Em resposta ao Azul, o gabinete da ministra do Ambiente e Energia, Maria da Graça Carvalho, indica que “a renaturalização dos rios foi assumida por este ministério como um dos principais objectivos da actual tutela na área da biodiversidade”. “Sinal desse compromisso”, lê-se, “são as obras já aprovadas e outras em curso ou à beira do seu lançamento.”
Nas últimas semanas, a ministra do Ambiente e Energia deu “luz verde ao financiamento de intervenções em mais 12 rios, entre os quais o Sado, o Mondego e o Homem, totalizando agora quase 342 quilómetros” intervencionados. O Governo pretende chegar aos 500 quilómetros até 2030, cumprindo assim as metas da Lei do Restauro da Natureza, que entrou em vigor em Agosto deste ano e procura assegurar a recuperação de 20% dos ecossistemas degradados até 2030.
Áreas marinhas
No que toca à conservação das áreas marinhas, as conquistas são mais modestas. Portugal foi uma das 40 nações que assinaram o Tratado do Alto-Mar em Setembro do ano passado, mas o compromisso internacional para salvaguardar pelo menos 30% dos oceanos até 2030 não foi ainda ratificado.
Após anos de conversa entre câmaras, associações, empresas e cidadãos dos municípios de Albufeira, Lagoa e Sines, o Governo anterior tinha aprovado a criação do Parque Natural Marinho do Recife do Algarve – Pedra do Valado, mas foi a Graça Carvalho que coube finalizar os pormenores e inaugurar o parque, em Agosto deste ano. Foi a primeira área marinha protegida criada pelo país nos últimos 25 anos, e dependeu da criação de um mecanismo de compensação financeira destinado aos pescadores das comunidades que operam nessa área.
A tutela promete manter o ritmo de expansão. “O Governo da República irá apoiar a decisão do Governo Regional de constituição de novas áreas marinhas protegidas, permitindo salvaguardar 30% do mar dos Açores e aumentar significativamente a área protegida nacional”, acrescenta ainda o ministério.
Dúvidas nas eólicas offshore
Francisco Ferreira, da associação Zero, nota que o atraso em matéria de classificação de áreas marinhas é particularmente preocupante. Há casos em que “já foram feitos todos os estudos”, como as pradarias marinhas na foz do Sado ou a região de Tróia, mas as zonas não foram classificadas como Zonas Especiais de Conservação. “Sabemos onde pôr a prioridade”, sublinha o investigador.
“A cada ministro do mar que chega, relembramos o que foi feito, mas a coisa nunca anda”, lamenta Bianca Mattos, analista de políticas públicas da Associação Natureza Portugal (ANF/WWF). “Não é preciso sair do zero, já existe trabalho feito.”
A especialista chama ainda a atenção para o processo de definição das áreas de aceleração de energias renováveis marinhas, onde, ao contrário do diálogo que houve em matéria de áreas terrestres, as ONG não têm sido consultadas. Nos planos que servirão de base aos leilões das eólicas offshore, os polígonos indicados para a exploração coincidem, em algumas partes, com áreas protegidas, uma situação que ainda não foi esclarecida pela tutela.
Protecção terrestre insuficiente
Em 2023, durante a Conferência do Clima das Nações Unidas, o Governo de António Costa anunciou que Portugal deveria “cumprir, já em 2023, a meta que tinha fixado para 2026 de termos 30% do território como área protegida”, antecipando também para 2026 o prazo para proteger 30% das áreas marinhas.
Contudo, para as ONG, as contas não batem certo. Nesse balanço das áreas protegidas feito no ano passado, passaram a ser incluídas áreas que não conferem, na realidade, protecção jurídica restritiva aos territórios, como é o caso das Reservas da Biosfera e dos seis Geoparques Mundiais da UNESCO, ou dos sítios da Convenção Ramsar (convenção sobre as zonas húmidas de importância internacional).
Aliás, Portugal está neste momento a braços com dois processos da Comissão Europeia por não ter cumprido a Directiva Habitats, ao falhar na designação de 61 “sítios de importância comunitária” como zonas “especiais de conservação” e não ter adoptado ainda as medidas de conservação necessárias para esses sítios.
Actualmente, apenas 22,4% do território está coberto por áreas protegidas por legislação nacional ou designadas no âmbito da Rede Natura 2000, nomeadamente Zonas Especiais de Conservação (ZEC) e Zonas de Protecção Especial (ZPE).
“A protecção efectiva não existe”
Bianca Mattos, da ANF/WWF, nota que é importante questionar os números, mas há acima de tudo a questão qualitativa. “O resto é inquestionável: a protecção efectiva não existe nessas áreas.”
A especialista relembra o sinal negativo enviado pelo Governo português com o voto a favor da proposta da Comissão Europeia para enfraquecer o estatuto de conservação de protecção do lobo. “O voto de Portugal não ia fazer diferença, a ministra podia ter mantido a palavra que deu à ONG”, lamenta Bianca Mattos.
Já para o presidente da associação Zero, há um desafio que pode ser ainda maior do que chegar a 30% de área protegida: o compromisso do GBF sobre as áreas de protecção estrita, que requerem um elevado grau de protecção. “Essa é uma das metas mais complicadas para nós”, reconhece Francisco Ferreira. Actualmente o país tem áreas muito pequenas sob protecção estrita, encontrando-se longe dos 10% do território requerido pelo GBF.
Negociações
A COP16, em Cali, coincide com as datas da discussão da proposta de Orçamento do Estado para 2025 no Parlamento, “onde o Governo estará com todo o seu elenco governativo”, pelo que a ministra do Ambiente e Energia, Maria da Graça Carvalho, ficará por Portugal. O país será representado apenas pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), informou a tutela.
Se na COP15 foi alcançado um acordo para as metas para 2030, nesta COP16 procurar-se-á “alcançar um acordo sobre um plano mais concreto para alcançar essas metas”, descreve o ministério em resposta ao Azul. “Um plano mais concreto para alcançar essas metas passa, sobretudo, pela implementação e pela responsabilização das partes envolvidas neste processo”, pormenoriza, por sua vez, o ICNF.
O ICNF tem já participado em “várias reuniões comunitárias” com outros Estados-membros, trazendo os seus contributos para a preparação desta COP. “Portugal tem colaborado activamente na construção da posição da União Europeia” no que toca à conservação da biodiversidade marinha e costeira, com um representante nacional no trabalho sobre “as novas modalidades para a identificação e modificação de áreas marinhas biológica e ecologicamente significativas (EBSA)”, que deverá ver uma decisão na COP16.