Meteorologistas lutam contra a enxurrada de desinformação durante a ameaça de Milton
O furacão Milton confirmou que, além da força do vento ou da chuva ininterrupta, há outro factor que está a pôr pessoas e bens em risco: a desinformação e as teorias de conspiração nas redes sociais.
John Morales já viu todo o tipo de condições climatéricas extremas nas suas quatro décadas como meteorologista. Mas quando ele descreveu a massa vermelha que rodopiava no seu ecrã durante a previsão do furacão Milton, na segunda-feira, a sua voz quebrou. “É um furacão incrível, incrível, incrível”, disse Morales, o conhecido meteorologista-chefe da NBC6 em Miami, nos EUA. “Caiu...”, disse ele, depois fez uma pausa para olhar para baixo e suspirar pesadamente antes de olhar novamente para a previsão.
“Baixou 50 milibares [unidade de pressão atmosférica] em dez horas”, continuou Morales com voz trémula, descrevendo aos telespectadores o poder daquele que seria provavelmente o furacão mais forte a atingir esta parte da Florida em mais de um século. “Peço desculpa”, disse Morales mais tarde sobre a sua demonstração de emoção que se tornou viral. “Isto é simplesmente horrível.”
Na quarta-feira de manhã, o furacão Milton estava a aproximar-se da costa oeste da Florida. Quando atingisse a costa, um embate previsto para o final de quarta-feira ou início de quinta-feira, esperava-se que Milton trouxesse ventos fortes, de 230 km/h, e desencadeasse uma tempestade que podia atingir a terra a uma distância de entre três a quase cinco metros. O furacão surgia numa altura em que a população do estado disparou, com os 3 milhões de habitantes da região de Tampa no seu caminho.
O pior exemplo de desinformação
Vários meteorologistas e cientistas do clima disseram ao The Washington Post que passaram décadas a alertar para o facto de as alterações climáticas poderem conduzir a fenómenos meteorológicos extremos como o de Milton. Mas a luta pela divulgação de informação num ambiente mediático fragmentado tem sido agravada por um fluxo agressivo de desinformação, afirmam.
“Esta é, de longe, a pior desinformação [para um] evento climático que já vi na minha carreira”, disse Katie Nickolaou, meteorologista da WLNS, afiliada da CBS, em Lansing, Michigan. “Por causa de Helene, há muitas pessoas que agora querem fingir ser especialistas ou pessoas que, como eu disse, se fazem passar por meteorologistas.”
Nickolaou acredita que as redes sociais se tornaram um ambiente hostil para os cientistas. Na página de Facebook do meteorologista, na terça-feira, um utilizador “recomendou o assassinato de pessoas para parar estes furacões” – o que Nickolaou entendeu como uma referência à teoria da conspiração de que o governo ou os meteorologistas estão a controlar os furacões. “Pensei: 'Vocês estão a brincar comigo?'”, disse Nickolaou.
Morales, cujo momento de emoção em directo se tornou viral, acrescenta que ainda está a absorver algumas das críticas que recebeu depois de ter feito a reportagem sobre o furacão Helene no mês passado. “Algumas pessoas disseram que as minhas previsões sobre a devastação do Helene eram exageradas”, afirmou. “Outros chamaram-me militante do clima, dando a entender que eu estava a embelezar todos os potenciais impactos do Helene para promover uma agenda.”
John Morales, fundador da ClimaData, defende que é um desafio alertar as pessoas sobre eventos climáticos extremos quando elas acreditam tão profundamente nas suas próprias experiências vividas. “Há um peso enorme em pensar: 'Bem, eu vivo aqui há 30 anos e nunca aconteceu nada do género'”, justifica. “É da natureza humana pensar assim, mas essa mentalidade tem custado muitas vidas ao longo dos anos.”
Meteorologistas cansados das palhaçadas
Na terça-feira, a onda de desinformação levou a Casa Branca a tentar corrigir o rumo no Reddit, uma plataforma de comunicação social. O nome de utilizador u/whitehouse partilhou uma fotografia do Presidente Joe Biden a realizar um briefing sobre a preparação do furacão Milton e, em publicações separadas nos subreddits da Carolina do Norte e da Geórgia, partilhou detalhes sobre a resposta da administração e da Agência Federal de Gestão de Emergências ao Helene.
“A Casa Branca também garantirá que as nossas informações sejam partilhadas em subreddits maiores, como o r/politics, onde podemos corrigir a desinformação”, afirmou um funcionário da Casa Branca numa declaração na terça-feira.
Especialistas locais e nacionais estão a exortar as pessoas a terem cuidado com o local onde obtêm informações sobre fenómenos meteorológicos extremos. Recomendam que se afaste das redes sociais e confie nos profissionais do Centro Nacional de Furacões e nas suas mensagens.
Uma alegação falsa frequente que Katie Nickolaou descreveu como perigosa é a de que o Milton é um furacão de “categoria 6”, quando a escala atinge o máximo na categoria 5. Ela teme que as pessoas que vejam esta afirmação não levem os futuros furacões de categoria 5 suficientemente a sério.
Nickolaou disse que uma espreitadela nas conversas de grupo com outras pessoas da sua área revelaria “muitos meteorologistas muito cansados”.
“Tenho enviado mensagens a amigos com quem andei na faculdade, com quem trabalhei anteriormente nesta indústria, e estamos todos perplexos com a quantidade de palhaçadas que acontecem nas redes sociais, que é uma frente com a qual não tínhamos de lidar antes”, alerta.
Teorias da conspiração alimentadas pelas redes sociais
Katie Nickolaou vê uma ligação entre a desinformação sobre o Milton e as atitudes anticiência que floresceram durante a pandemia do coronavírus. “A mudança está relacionada com os perigos de lidar com a pandemia, e essa desconfiança estendeu-se a outros domínios científicos”, afirmou. “Está a espalhar-se a crença generalizada de que os cientistas não sabem do que estão a falar e que estão a esconder coisas.”
Nas últimas décadas, as redes sociais permitiram a disseminação instantânea de desinformação, muitas vezes proveniente de fontes obscuras. As plataformas de redes sociais também permitem que os utilizadores lucrem com a criação de mensagens com elevado envolvimento, o que promove um ambiente em que o “isco de envolvimento” pode ofuscar a informação de qualidade.
Onde tudo começou
Quaisquer que sejam as motivações para semear agora a desinformação sobre o clima, o ambientalista e jornalista Bill McKibben é inequívoco sobre onde tudo começou: com a indústria dos combustíveis fósseis.
“A primeira coisa a dizer é que a desinformação sobre as alterações climáticas não existiu desde o início”, disse McKibben. Quando escreveu The End of Nature, o seu livro de 1989, que é considerado o primeiro a abordar o impacto humano nas alterações climáticas para um público geral, o Presidente George H.W. Bush falou em combater o “efeito de estufa” com o “efeito da Casa Branca”.
O presidente republicano encarou as alterações climáticas como um desafio a ser resolvido pela inovação americana, mas Bill McKibben refere que o alinhamento das grandes petrolíferas com doadores políticos influentes, como os irmãos Koch, tem alimentado continuamente falsas narrativas sobre alternativas energéticas sustentáveis aos combustíveis fósseis.
“Está muito longe de [o governador da Florida Ron] DeSantis, em Maio, banir a frase 'mudança climática' dos estatutos do estado da Florida dizendo: 'Eu não sou uma pessoa do aquecimento global'”, lembra McKibben.
Há esperança?
Bill McKibben tem esperança de que as pessoas possam mudar de opinião – quer sejam persuadidas pelo Pentágono, pelo Papa ou pela experiência pessoal. “Algumas pessoas acabaram de ver bem perto delas as florestas a arder e os rios a transbordar das margens e aperceberam-se: Os cientistas tinham razão”, diz.
John Morales, o meteorologista de Miami, acrescenta que, embora os dados mostrem que os negacionistas do clima constituem apenas uma pequena percentagem da população dos EUA, a sua voz é muito alta. Preocupa-o o facto de aqueles que acreditam em teorias da conspiração estarem a tornar-se vulneráveis a condições meteorológicas extremas ao não tomarem as precauções necessárias. O especialista também está preocupado com a forma como a disseminação de desinformação torna mais difícil para os serviços de gestão de emergências comunicar as suas mensagens sobre como proteger vidas e propriedades.
Morales disse ao The Post que se exaltou no ar na segunda-feira devido a uma combinação de “angústia” sobre a forma como os fenómenos meteorológicos extremos se estão a tornar mais graves, a sua empatia para com as pessoas cujas vidas estavam prestes a ser destruídas pela tempestade e a sua frustração com a resposta inadequada do mundo à crise climática.
“Durante mais de 20 anos, temos vindo a comunicar sobre as alterações climáticas, dizendo às pessoas que, se não fizermos algo a este respeito, vamos assistir a mais fenómenos meteorológicos extremos”, afirmou. “Agora, é tudo demasiado real. Aqui está. Hoje, a crise climática está em cima de nós.”