Plantas europeias ameaçadas devido ao declínio de animais que dispersam sementes

Estudo da Universidade de Coimbra publicado na Science calcula que 30% dos animais que dispersam sementes estão em declínio na Europa. Crise dificulta a resposta das plantas às alterações climáticas.

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Toutinegra-de-barrete-preto a comer um fruto da tramazeira Joan Egert
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As alterações climáticas vão obrigar cada vez mais as espécies a encontrar novas regiões para habitarem. Para as plantas com sementes, fixadas no território, essa migração terá de ser feita de geração em geração, uma semente de cada vez. Mas muitas dessas espécies vegetais dependem de animais para transportarem e dispersarem as suas sementes na paisagem. Agora, um estudo sobre o continente europeu, liderado por portugueses, mostra que 30% das plantas nativas estudadas tem parte dos seus animais dispersores ameaçados ou com populações em declínio.

O artigo sobre o estudo foi publicado nesta quinta-feira na prestigiada revista Science e revela também que se desconhece quais são os animais que dispersam as sementes de 74% das espécies de plantas. Ou seja, mesmo no continente onde há uma maior tradição na investigação científica, ainda há um longo caminho para se ter uma visão completa da biodiversidade e das interacções que a sustentam.

“Avaliar uma comunidade tendo em conta o estatuto das suas interacções é um indicador mais sensível da sua saúde”, explica ao PÚBLICO Sara Mendes, investigadora a terminar o doutoramento do Centro de Ecologia Funcional (CEF) da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra e primeira autora do artigo.

A dispersão de sementes é uma das interacções existentes num ecossistema, tal como é a polinização e a predação de plantas, se pensarmos apenas nas relações entre animais e vegetais. No caso da dispersão, este fenómeno permite que uma semente de uma árvore seja depositada por animais a metros ou quilómetros de distância da sua origem.

No caso do medronho, o fruto do medronheiro, que não pode ser levado pelo vento, o transporte feito por animais que o comem evita que a semente caia perto da sua árvore mãe, nasça à sombra dela e seja obrigada a competir pelos nutrientes com as suas sementes irmãs. Por outro lado, ao serem levadas para longe, as sementes do medronheiro podem colonizar áreas destruídas, como zonas incendiadas, ou novos habitats.

Muitas aves e mamíferos comem frutos, como as bagas, mas não destroem as suas sementes, excretando-as com os dejectos que deixam noutros locais. Os mamíferos também podem levar com eles frutos pequeninos que têm ganchos e se agarram ao pêlo, dispersando-os de um modo completamente diferente. Já as formigas carregam para o seu formigueiro sementes como as do tojo, que têm um revestimento alimentício, e que depois podem rebentar e crescer.

Mas todos estes modos de transporte de sementes e os seus agentes de dispersão estão submetidos a um regime cada vez maior de distúrbios, quer seja devido à fragmentação de habitats causada pela urbanização crescente e pela agricultura, quer pela construção de estradas, que cortam os ecossistemas ao meio, ou por causa dos incêndios florestais cada vez mais violentos, ou ainda devido às alterações climáticas. O novo estudo, que olha para a Europa como um todo, é apenas um dos capítulos da tese de doutoramento de Sara Mendes, que se dedicou a estudar justamente o impacto daqueles distúrbios na dispersão das sementes pelos animais.

“A Europa é um continente muito fragmentado, é muito difícil para um animal andar pela paisagem. Se é um problema para os animais, também é para plantas, porque as plantas não têm forma de andar sozinhas. Ou dependem do vento ou de animais. Muitas delas dependem só de animais”, explica ao PÚBLICO Ruben Heleno, investigador principal no CEF, orientador de Sara Mendes e último autor do artigo da Science, assinado ainda por mais quatro investigadores do CEF, um da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, e ainda outro da Universidade de Bristol, no Reino Unido.

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O fruto do medronheiro tem de ser transportado por animais Ruben Heleno

“Como na Europa estamos a perder animais, temos menos texugos, doninhas, aves, raposas, [queremos saber] que consequência é que isso tem para as plantas. Uma das grandes questões é como é que as plantas conseguem fugir às alterações climáticas? Precisam de animais para as levar. Então, fomos ver como estão essas populações de animais”, adianta o biólogo.

Mais de três séculos de documentos

Para isso, Sara Mendes fez uma pesquisa na bibliografia onde eram referidas as espécies dispersoras e as espécies de plantas nativas europeias em documentos publicados entre 1660 e 2023, em 26 línguas diferentes. Se a análise tivesse sido reduzida apenas a documentos de língua inglesa, perdia-se “30% da informação”, salienta a investigadora. Ao todo, a bióloga analisou 50.000 publicações, incluindo artigos científicos, livros, informação publicada em contextos não científicos, bases de dados, relatórios e comunicações pessoais, num trabalho que demorou mais de três anos.

Das 2248 espécies de plantas com sementes que podem ser dispersas por animais (23% de todas as espécies de plantas com sementes nativas no território europeu), Sara Mendes só encontrou informação concreta e válida acerca de 398 animais que dispersam 592 espécies vegetais nos nove biomas europeus definidos: alpino, árctico, atlântico, boreal, continental, das estepes, do mar Negro e mediterrânico e da planície da Panónia.

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Um gaio-comum com um fruto no bico Ruben Heleno

Para as restantes 1656 espécies vegetais (o tal valor de 74%), a investigadora não encontrou qualquer informação sobre os agentes que dispersam as suas sementes. “Temos uma forte tradição científica na Europa; quando se pensa em descobrir alguma coisa nova é preciso ir aos trópicos, quando na verdade há muita coisa para se descobrir aqui”, diz a investigadora.

Ao todo, existem 5030 interacções entre os 398 animais e as 592 plantas, já que um animal pode ser dispersor de sementes de várias espécies de plantas e, ao mesmo tempo, as sementes de uma planta podem ser dispersas por diferentes espécies de animais.

Depois, a partir da informação da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, sigla em inglês), a equipa usou o estatuto de conservação das espécies animais dispersoras e das espécies vegetais para avaliar a saúde das interacções. Quando um animal dispersor tinha um estatuto de conservação ameaçado ou a sua população estava em declínio, então era colocado na categoria de “preocupação alta” e as interacções com as espécies de plantas de que faz a dispersão eram também de “preocupação alta”, isto porque estão em risco.

Assim, das 398 espécies de animais dispersores, 33% caem na categoria de “preocupação alta”, 49% caem na categoria de “preocupação baixa” e 18% caem na categoria de “não avaliado”, dado não se conhecer o estatuto de conservação destes animais. No caso das 592 espécies de plantas, 6% estão na categoria de “preocupação alta”, ou porque estão ameaçadas ou porque estão em declínio, 27% estão na categoria de “preocupação baixa” e 67% das espécies vegetais não foram avaliadas em relação ao seu estatuto de conservação. Esta é mais uma dimensão do desconhecimento patente que o estudo revela.

Em “maus lençóis”

A partir daqueles números, a equipa avaliou as interacções entre animais dispersores e plantas nativas. “Descobrimos que 2% das interacções foram classificadas com [a categoria de] preocupação muito alta, 29% [com a] de preocupação alta, 36% [com a] de não avaliadas e 33% [com a] de baixa preocupação”, lê-se no artigo. As interacções de “preocupação muito alta” são aquelas em que tanto o animal como a planta que interagem estão na categoria de “preocupação alta”.

“Os nossos dados mostram que a maioria das espécies de plantas nativas (n=357; 60%) tem pelo menos um [animal] dispersor que é de preocupação alta e um terço [das plantas] (n=190; 32%) tem pelo menos metade dos seus dispersores avaliados nessa categoria [de preocupação alta]”, refere-se no artigo. “Os esforços de conservação devem, primeiro, concentrar-se nas interacções de preocupação muito alta, que podem ser perturbadas primeiro.”

Ruben Heleno explica que uma planta que fica sem os seus animais dispersores não se vai extinguir de um momento para o outro, porque as sementes que caem no chão continuam a germinar, mas fica em “muitos maus lençóis”, admite. “Se há um incêndio, e desaparece tudo, as plantas só voltam para lá se os animais as levarem. Se ficarmos sem animais, as plantas deixam de conseguir andar de um lado para o outro e não recuperam”, adianta. “Um terço dos animais dispersores está ameaçado. Nós achamos que isto é muito grave”, constata.

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Fruto da camarinha Ruben Heleno

Uma forma de avaliar a importância do serviço ecológico que os animais estão a fazer é dar uma dimensão económica ao seu trabalho. A nível do território português, seria necessário um trabalho humano com um custo anual de 23 milhões de euros para se realizar o que os animais fazem em termos de dispersão de sementes, segundo os cálculos que a equipa de Ruben Heleno fez.

Para o biólogo, este trabalho de dispersão tem de ser valorizado e tem de estar incluído nas políticas de conservação. “No caso de espécies cinegéticas, alguns tordos são caçados. Os nossos decisores políticos têm de saber que, ao matar um tordo, estamos a matar um dispersor de sementes, e um dispersor que transporta sementes por centenas de quilómetros”, exemplifica Ruben Heleno.

Se, nas últimas décadas, a dimensão do trabalho dos polinizadores e, mais recentemente, a aposta na renaturalização foram ganhando importância nas questões de conservação, o investigador espera agora que a importância da dispersão de sementes ganhe terreno. “Tem de haver políticas orientadas para estudar quem é que dispersa as plantas”, diz o biólogo, apontando para o universo de plantas nativas cujos dispersores são desconhecidos. “Toda a natureza depende dessa diversidade e interacções, é difícil perceber a causa real de perder uma espécie se não sabemos com quem ela interage.”