Os sinais vitais do planeta são claros: “O futuro da humanidade está em jogo”
Entre 35 “sinais vitais do planeta” analisados por uma equipa internacional, 25 estão em “extremos recorde”. O diagnóstico é nítido: “O consumo humano ultrapassa a capacidade de regeneração da Terra.”
“Estamos à beira de uma catástrofe climática irreversível.” As primeiras palavras do Relatório sobre o Estado do Clima 2024: tempos perigosos no planeta Terra, publicado nesta terça-feira por uma equipa internacional de investigadores, deixam claro que o actual ritmo de mudanças no planeta está a aumentar a uma velocidade vertiginosa. “Esta é uma emergência global sem margem para dúvidas. Muito do próprio tecido da vida na Terra está em perigo. Estamos a entrar numa nova fase decisiva e imprevisível da crise climática.”
O relatório, publicado na revista científica BioScience, foi liderado pelos investigadores William Ripple e Christopher Wolf, da Universidade de Oregon, nos Estados Unidos, e contou com a colaboração de outros cientistas de renome, como Naomi Oreskes, da Universidade de Harvard, Michael E. Mann, da Universidade da Pensilvânia, ou Stefan Rahmstorf e Johan Rockström, do Instituto Potsdam para a Investigação do Impacto Climático.
No artigo, os autores analisam 35 “sinais vitais do planeta”, que têm sido actualizados anualmente para acompanhar a evolução das actividades humanas e as respostas climáticas, e observam que 25 destes estão em “extremos recorde”. Podemos começar por um dos números emblemáticos do Acordo de Paris: neste momento, a Terra encaminha-se para um aquecimento de aproximadamente 2,7 graus Celsius até 2100, excedendo em muito o limite de 1,5°C acordado internacionalmente.
Apesar dos diversos compromissos dos países na última década, as emissões anuais relacionadas com a energia ultrapassaram no ano passado, pela primeira vez na história, as 40 gigatoneladas de dióxido de carbono equivalente. Como cantava António Variações, “Vem outro dia e tudo se repete / E vais deixando ficar tudo igual.”
Outros sinais de alarme identificados pelos cientistas são as temperaturas recorde e o aumento do nível das águas do mar, uma aceleração da perda da massa dos glaciares e massas de gelo, assim como um aumento da frequência de desastres relacionados com fenómenos climáticos extremos com impactos que ascendem aos milhares de milhões de euros.
Consumo humano ultrapassa regeneração da Terra
Os impactos observados pelos autores deste Relatório sobre o Estado do Clima 2024 são graves, mas ainda há acções possíveis — e urgentes, alertam. “As alterações climáticas são um sintoma flagrante de uma questão sistémica mais profunda: uma ultrapassagem ecológica [overshoot], em que o consumo humano ultrapassa a capacidade de regeneração da Terra”, escrevem os investigadores.
O primeiro passo recomendado é, por isso, “reduzir drasticamente o consumo excessivo e o desperdício, especialmente por parte dos mais ricos”.
O corte nas emissões de gases com efeito de estufa é urgente, pelo que os cientistas recomendam ainda a definição de um preço global para o carbono, que possa limitar as emissões (em particular nos consumos de luxo) e, ao mesmo tempo, proporcionar financiamento para novas acções climáticas, assim como melhorias na eficiência energética, a par da substituição dos combustíveis fósseis por energias renováveis.
Mudança cultural
“Também precisamos de esforços mais imediatos para proteger, restaurar ou reflorestar os ecossistemas”, apelam os cientistas. Isto passará, além dos esforços em matéria de conservação da natureza, por incentivar mudanças nos sistemas de produção e nos hábitos alimentares, privilegiando alimentos de origem vegetal.
As mudanças têm de ser também culturais. Os investigadores recomendam que a informação sobre as alterações climáticas seja integrada nos currículos em todo o mundo para melhorar a literacia e capacitar os estudantes para a acção.
O reforço da educação e dos direitos das raparigas e das mulheres, benéfico para o desenvolvimento das sociedades, também poderá “estabilizar e reduzir gradualmente a população humana”, uma questão que se torna importante à medida que mais países atingem níveis de desenvolvimento — e de consumo e, consequentemente, de emissões — que desafiam os limites do planeta.
“Num mundo com recursos limitados, o crescimento contínuo é uma ilusão perigosa”, acrescentam ainda os investigadores, que propõem um “quadro económico ecológico e pós-crescimento que garanta a justiça social”.
Nova fase da crise climática
“Estamos a entrar numa nova fase decisiva e imprevisível da crise climática”, alertam os cientistas, no artigo que destaca vários “pontos de não-retorno” climáticos e os chamados “feedback loops”, ou seja, mecanismos desencadeados pelas alterações climáticas que, por sua vez, desencadeiam novas alterações que podem ser catastróficas no planeta.
“Já estamos a meio de uma perturbação climática abrupta, que põe em risco a vida na Terra como nunca aconteceu aos humanos”, afirma William Ripple, docente da Faculdade de Recursos Florestais da Universidade do Estado do Oregon, num comunicado do Instituto Americano de Ciências Biológicas. “O furacão Helene causou mais de 200 mortes no Sudeste dos Estados Unidos e inundações maciças numa zona montanhosa da Carolina do Norte que se pensava ser um refúgio seguro contra as alterações climáticas”, exemplifica o investigador.
A acção humana que causa estes fenómenos parece não ter limites.
A utilização de energias renováveis aumentou em 2023, com o consumo de energia solar e eólica a registar um aumento de 15% em relação a 2022. Contudo, este crescimento nas renováveis deve-se principalmente a um aumento da procura por energia e não ao facto de estarem a substituir os combustíveis fósseis. O consumo anual de combustíveis fósseis, aliás, aumentou 1,5% em 2023, incluindo grandes aumentos na utilização de carvão (1,6%) e de petróleo (2,5%).
Gases em máximos históricos
Com base nas médias globais até hoje, as concentrações de dióxido de carbono e metano na atmosfera estão em máximos históricos. “A taxa de crescimento das emissões de metano tem vindo a acelerar, o que é extremamente preocupante”, descreve Christopher Wolf, que é actualmente investigador na Terrestrial Ecosystems Research Associates (TERA), citado no comunicado da Universidade de Oregon. “O óxido nitroso, um gás potente e de longa duração, também está num nível recorde.”
O número de animais ruminantes, como o gado bovino, ovino e caprino — que produzem gases com efeito de estufa e cuja criação consome muita energia —, tem aumentado em cerca de 170 mil cabeças por dia.
Isto enquanto a perda anual de cobertura florestal aumentou de 22,8 milhões de hectares em 2022 para 28,3 milhões em 2023 a nível mundial, privando o planeta de importantes sumidouros de carbono, além do impacto a nível da biodiversidade.
“Tecido da vida em perigo”
“O futuro da humanidade está em jogo”, conclui o artigo, no qual os cientistas assumem o objectivo de fornecer dados científicos “que inspirem respostas informadas e corajosas, desde cidadãos a investigadores e líderes mundiais”.
“O futuro da humanidade depende de criatividade, fibra moral e perseverança”, completa Christopher Wolf. “Para que as gerações futuras possam herdar o mundo que merecem, é necessária uma acção determinada — e rápida.”
“Uma grande parte do próprio tecido da vida no nosso planeta está em perigo”, alerta William Ripple, ecoando as palavras do relatório. “Esta ultrapassagem ecológica, que implica consumir mais do que a Terra pode repor em segurança, empurrou o planeta para condições climáticas mais ameaçadoras do que o que foi testemunhado até pelos nossos parentes pré-históricos.”