Depois da morte da sua mulher, Henrique tornou-se um homem amargo. Já quase nem sai da sua casa em Odemira e parece não querer conviver com ninguém. Mas um sobreiro na sua propriedade começa a atrair, aos poucos e poucos, muita gente, incluindo pessoas de outros países que chegam ao Alentejo para trabalhar em estufas. “Xó daqui, que isto não é uma esplanada”, chega a exigir Henrique, zangado, enquanto os novos habitantes se vão sentando à sombra da árvore. No meio da sua indignação, é o próprio sobreiro que acaba por unir as diferentes culturas.
Intitulada A Natureza do Coração, esta história foi escrita por Valério Romão e faz parte da nova edição do projecto de banda desenhada Histórias à Sombra do Montado, que foi desenvolvida pela Ronha – Associação Cultural, sediada na vila de Colos, no concelho de Odemira. Na última semana, começaram a ser distribuídos, gratuitamente, pelas ruas do concelho exemplares desta banda desenhada, que também pode ser descarregada online através do site do projecto (historiasasombradomontado.pt). Lá, contam-se histórias sobre a riqueza e o declínio desta paisagem, pontuada por sobreiros e azinheiras, que se estende pelo Alentejo.
A ideia para este projecto começou quando Hugo Tornelo e Rita Gonzalez decidiram sair de Lisboa e comprar, em 2018, um terreno no concelho de Odemira que tinha, na sua maioria, montado. Os dois ficaram logo com vontade de fazer algo por aquele território e decidiram que iriam criar uma iniciativa que homenageasse esse ecossistema.
Assim surgiu, em 2022, a primeira edição do projecto de banda desenhada Histórias à Sombra do Montado, que teve financiamento de cerca de 30 mil euros, do programa Garantir Cultura, criado pelo Ministério da Cultura e o Ministério da Economia. Nessa edição, as histórias tinham como principal cenário o montado e eram contadas pelos escritores Afonso Cruz, Ana Margarida de Carvalho, Luís Afonso e Ana Bárbara Pedrosa. As ilustrações foram de Marta Teives, Joana Afonso, João Maio Pinto e Nuno Saraiva. Centenas de exemplares foram distribuídos em farmácias ou cafés. “São histórias em que se percebe o impacto que o sobreiro tem no território”, diz ao PÚBLICO Hugo Tornelo, que tem coordenado o projecto. Também a primeira edição pode ser descarregada no site do projecto (historiasasombradomontado.pt). Nesse seguimento, em 2023, foi criada a associação Ronha.
O mote da segunda edição é o mesmo, mas traz novas histórias. Juntaram-se ao projecto os escritores Afonso Reis Cabral, Filipa Martins, Joana Bértholo e Valério Romão. Os desenhos são de Bernardo Majer, Joana Mosi, Patrícia Guimarães e Ricardo Baptista. Todos eles estiveram três dias no concelho de Odemira para fazerem a sua pesquisa e se inspirarem. “Foram buscar temáticas que tocam as pessoas. É um espelho do território”, considera Hugo Tornelo, sem querer desvendar muito as histórias. Todas acabam por ser diferentes e tanto se pode ler sobre o encontro de culturas no Alentejo, como sobre o declínio do montado.
Um ecossistema a preservar
Neste momento, estão a ser distribuídos 6000 exemplares destas histórias em banda desenhada pelo concelho. Se na primeira edição o município de Odemira tinha sido parceiro de distribuição, nesta nova versão acabou por ser o grande financiador, com 20 mil euros. “O montado de sobro é parte indissociável do imaginário do Alentejo rural e sereno, mas é muito mais que isso. O sobreiro é peça central no ecossistema do concelho de Odemira”, assinala, em comunicado, Hélder Guerreiro, presidente da Câmara Municipal de Odemira. “A valorização deste património, através de uma expressão artística como a banda desenhada, é sem dúvida uma mais-valia para o nosso território.”
Um dos objectivos deste projecto é também alertar para a conservação do montado. Como tal, no final das duas edições das histórias em banda desenhada há uma lista de boas práticas para a regeneração do montado de sobro. Uma das dicas refere-se ao aumento da absorção e infiltração de água. Para que isso aconteça, indica-se que devem ser construídas barragens e charcas para o armazenamento de água da chuva ou que devem ser feitas sementeiras directas com culturas de cobertura, para que se aumente a capacidade de infiltração de água no solo.
O montado ocupa uma extensa área em grande parte do Alentejo, assim como uma área significativa da Beira Baixa interior e da serra algarvia. Portugal terá um total de 736 mil hectares deste ecossistema, de acordo com o projecto Histórias à Sombra do Montado. As espécies que dominam a paisagem são o sobreiro (Quercus suber), a azinheira (Quercus rotundifolia), o carvalho-cerquinho (Quercus faginea) e o carvalho-negral (Quercus pyrenaica).
Há vários anos que a área de montado entrou “em recessão”, de acordo com o Livro Verde dos Montados (editado em 2013 pelo Instituto de Ciências Agrárias e Ambientais Mediterrânicas da Universidade de Évora). A densidade das árvores tem vindo a diminuir e a mortalidade das espécies nesse ecossistema aumentou.
O Histórias à Sombra do Montado acaba por ser também uma forma de salvaguardar este ecossistema, ora não fosse um dos seus parceiros o projecto Life Montado-Adapt, que tem como mote a adaptação dos montados em Portugal e Espanha e como grande objectivo a sua preservação face às consequências das alterações climáticas. “Queremos que seja uma plataforma em que se fale da importância do montado a vários níveis”, afirma Hugo Tornelo sobre as bandas desenhadas, que pretendem chamar a atenção para o declínio do montado e das más práticas nesse ecossistema.