É o salve-se quem puder no Douro. E quem não encontra solução está a deixar uvas na vinha
É cada um por si, e alguns como tolos no meio da ponte. Com muita uva ainda sem destino, as estratégias dos viticultores dividem-se. Quem pode fazer vinho, faz. Os outros batem a tudo quanto é porta.
O Douro está a atravessar uma crise sem precedentes. Apesar das medidas da tutela para a mitigar — algumas já em curso, outras previstas para os próximos tempos, como noticiou o PÚBLICO há uma semana —, vai uma espécie de salve-se quem puder na região demarcada mais antiga do mundo. Para muita gente, não há outro remédio à vista se não deixar as uvas na vinha. Com o benefício — a autorização de produção de vinho do Porto — reduzido este ano a 90 mil pipas (49,5 milhões de litros), as vendas em queda e as adegas cheias de vinho de vindimas anteriores, as vinhas entenderam, logo neste ano, produzir mais. Vai ser uma boa colheita em quantidade e até em qualidade. O problema é que muitos nem vão colher parte importante dessa produção.
Há quem tenha feito um esforço para aumentar a sua capacidade de vinificação e armazenamento e esteja neste ano a fazer mais vinho — um dos principais fornecedores de inox na região esgotou o stock de cubas que tinha para vender —, com a plena consciência de que assim só está "a empurrar o problema com a barriga", ou seja, a engrossar os stocks nas adegas. Recorde-se que só o Douro enviou 30% (10,5 milhões de litros) da litragem nacional elegível para a destilação de crise do corrente ano.
Há quem tenha optado por não vinificar, precisamente por ter dentro de portas vinho por vender de 2023 e 2022. Há quem esteja a aceitar vender (e quem esteja a propor comprar) a pipa (550 litros) do "excesso" — o vinho que excede a quota do benefício — a 150 e a 200 euros. Nem dá para pagar a jorna a quem vindima, quanto mais um ano de gestão da vinha. E há quem, tendo batido a todas as portas possíveis e imaginárias, não tenha conseguido vender toda a sua produção e tenha as uvas na vinha, à espera de um milagre, e sem saber se para o ano a voltará a granjear. É a maioria.
Corrida ao equipamento
Filipe Correia, sócio da Xisto Azul, recebeu, desde o início da campanha, "uns 40 contactos" do Douro, que representa 90% do negócio da empresa de produtos para a agricultura, enologia e metalomecânica, todos "a pedir capacidade". Sempre que "há excedentes, há mais compra de reservatórios", nota, mas neste ano houve uma verdadeira corrida a este tipo de equipamento.
"Nós temos uma fábrica em Vale de Cambra [no distrito de Aveiro] e produzimos as nossas cubas, sempre por encomenda, mas tínhamos feito stock. E ainda tínhamos um lote de cubas usadas, que estavam encostadas há uns três anos e que só vendemos agora por causa desta crise." Voou tudo nos últimos dois meses. "Aqui, e nos outros [na concorrência] também. Posso dizer-lhe que, se tivesse mais 40 ou 50 reservatórios, vendia-os na boa."
Depósitos entre os 1000 e os 10.000 litros para vinificar uvas que, noutros anos, eram vendidas às grandes empresas da região. Pedro Lencart e Isabel Sarmento ainda foram a tempo de comprar mais quatro cubas, totalizando 6000 litros de capacidade. Produzem vinho e prestam serviços de enologia a terceiros, e precisavam de encaixar aquilo que os seus clientes iam vinificar a mais neste ano.
"Nós aqui na Quinta dos Lagares [Vale de Mendiz, Alijó] produzimos cerca de 100 a 110 toneladas de uvas, mas vinificávamos para nós muito pouco, à volta de 20.000 litros, em números redondos dá 40 pipas. O que vendemos como uva é o restante, 110 pipas. Desse número, este ano, vamos vender menos de 100 pipas. Mas os nossos clientes de prestação de serviços estão a vinificar mais e só não tivemos de comprar mais cubas porque tínhamos armazenamento disponível", contava-nos Pedro há uma semana.
"Como temos capacidade de vinificar e temos armazém, estamos a empurrar o problema com a barriga." Fazem-no "na esperança" de que as medidas adoptadas pela tutela do sector para mitigar as consequências da crise surtam efeito até chegar a altura de vender o vinho de 2024.
"É um pouco para as uvas não ficarem na vinha, e porque já tivemos todos os custos de gestão da vinha durante o ano." E a esse propósito comentava Pedro Lencart que a gestão poderia ter sido outra se o quantitativo de pipas de Porto a produzir tivesse sido decidido mais cedo, "em Fevereiro ou Março". "Com este excesso de uva que veio dos clientes e com a equipa em ruptura, a minha uva ficou para o fim", dizia ao PÚBLICO no passado dia 27, quando ainda tinha "10 a 12 toneladas" de uvas com benefício por vindimar. E dia e meio para o fazer. Na maioria das adegas da região, a recepção de uvas terminava neste fim-de-semana, mas foram muitas as que se viram obrigadas a estender esse prazo. "Conseguimos colocar o quantitativo total, o que é muito boa notícia", actualiza-nos, entretanto, Pedro Lencart, que por estes dias ainda recepciona uvas de um cliente na sua adega.
Na Grape to Bottle, outra prestadora de serviços na área, em Santa Marta de Penaguião, também houve um aumento de capacidade, mas espelhando uma realidade diferente. "Neste ano, houve uma pressão imensa na procura de espaço na minha adega, porque há cada vez mais pessoas que querem criar marcas e fazer um bocadinho de vinho próprio", começa por partilhar Eric Nurmi.
O norte-americano, casado e radicado no Douro, explica que os seus clientes "não têm quintas ou vinhas para gerir, procuram terroirs" específicos e compram, na sua maioria, uva. Não têm portanto custos com a gestão da vinha. Mas contribuem para que na pequena adega da Quinta do Pisco se estejam a quebrar recordes. "Na terça-feira, dia 24, antes das chuvas, processámos mais de 20 toneladas de uva. O normal são umas cinco toneladas. E devemos fechar o ano com 125 toneladas [de uva transformada], mais 10%" do que 2023."
Eric comprou mais duas palotes de 1000 quilos, ideais para fazer microvinificações, e recuperou uma cuba de inox que encontrou perdida num dos armazéns da propriedade. Antecipando a necessidade de capacidade. Mas também ele deixou as suas uvas para o fim. "Ainda tenho 10 toneladas paradas na vinha. Já preenchi o benefício e não tenho a quem vender o resto das uvas. Não têm destino, neste momento. E isso acontece com muita gente aqui na zona. Não têm como vinificar", dizia-nos há dias.
Impressionado com o desespero dos viticultores que lhes bateram à porta, Eric pensava numa forma de os ajudar. "Pediam-me para esmagar as uvas, que levavam embora o vinho. Ok, mas como? Porque os tintos têm de ficar uma semana a fermentar. Estou a pensar numa forma de prensar ou esmagar [as uvas] para eles levarem. Se forem brancas vão à prensa e saem daqui numa cuba para casa. Com os tintos é mais complicado, tinham de ficar aqui uma semana numa palote de 1000 quilos [só tem 12, pelas quais já rodaram 19 vinhos diferentes] e depois [os viticultores] levavam para casa num depósito de água ou assim. Já pensei nisso no ano passado, mas neste ano apareceu muito mais gente a pedir ajuda", partilha. De qualquer das formas, com vinificações agendadas até à última segunda-feira, uva própria ainda por vinificar, "para granel" — "aí, o meu objectivo é apenas cobrir custos" —, e surpresas de última hora, começa "a ficar limitado de espaço". "Estamos a terminar e vamos ficar com a adega completamente cheia. Abrimos as portas a mais um cliente nosso que ia ficar com as uvas na vinha, não tinha a quem as vender. E abrimos a um novo agricultor que nos veio pedir para fazer vinho", disse-nos a meio desta semana.
Quando visitámos a Grape to Bottle, um dos produtores ali 'incubados' já tinha feito a marca dele, preenchido o benefício, tinha feito granel e ainda tinha uva na vinha. "Diz que não vale a pena", conta Eric sobre um caso que se repete onde quer que vamos na região. Outro cliente, diz, foi mais radical: tem vinho em armazém que não consegue vender e decidiu não vinificar neste ano. Ia, em vez disso, tentar vender a uva, o que, apesar de tudo, dizem-nos, é mais compensatório.
Vítor Herdeiro é viticultor e dirigente da Associação dos Viticultores e da Agricultura Familiar Douriense (Avadouriense). Também ele vai ficar com uvas na vinha. Conseguiu colocar 1700 quilos de uva na Quinta do Castelinho, mas a sua produção é de 15 toneladas. "Ficam penduradas. Vou fazer algum vinho para casa, para consumo, com umas pipas antigas que lá tenho, uma de branco e duas de tinto. E o resto vai ficar na vinha. Não tenho vasilhame, 1000 euros para uma cuba de 1000 litros para quê?"
"Uma catástrofe social"
"Vem aí uma catástrofe social", vaticina o dirigente da Avadouriense. "A maior parte" dos associados da associação, prevê Herdeiro, "vai ficar com metade da produção por entregar". "Temos viticultores nessa situação, que vivem exclusivamente da viticultura, e que têm 40 pipas [30 toneladas]."
Vítor falava ao PÚBLICO em Sabrosa, onde tem vinhas, e muito perto da cooperativa local. Como pano de fundo, há uma semana, tínhamos a azáfama de camiões a entrar para deixar a uva dos sócios. E apenas dos sócios. "No ano passado, ainda aceitámos alguns associados novos", explicava minutos depois Natércia Veiga, assistente da administração da adega. Neste ano, como a generalidade das cooperativas no Douro, e mesmo a nível nacional, a de Sabrosa só abriu para os seus associados, 600 no total, e fez mesmo "um estudo dos últimos três anos da entrega de uva de cada associado", para impedir que sócios "entregassem uvas que não eram suas". Houve dois que tentaram, "foram barrados" e serão "penalizados em termos de pagamento".
A cooperativa de Sabrosa vai continuar a pagar "o excesso", que, em 2024, com a redução da produção máxima permitida por hectare decidida pelo Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP), passou a estar limitado às "oito pipas por hectare". E há por isso muito ex-sócio arrependido de ter deixado a adega. "Ainda ontem [quinta-feira dia 26] tivemos aqui gente desesperada." Mas a prioridade é, dizia-nos a responsável, "proteger os associados".
Também as Caves Santa Marta (1100 sócios; já foram 3000), onde o PÚBLICO assistiu à entrada de uvas dos associados, olharam para os últimos três anos e fizeram a média, para impor limites ao pagamento de uva. "Se um sócio quiser meter mais uvas, pagamos um valor inferior", explicou, por telefone, Manuel Cruz, presidente da adega cooperativa que tem quatro anos de Processo Especial de Revitalização (PER) ainda pela frente.
A adega aceita uvas de outros fornecedores, mas também paga menos por elas. "Não temos excedente, precisamos de uvas", justifica Manuel Cruz, que, ao contrário do sentimento na adega de Sabrosa (onde se entende que a proibição de importação de vinho de fora da região, anunciada em Maio, pecou por tardia), critica a medida por entender que cria desigualdades entre regiões. "Não, nós não importámos vinho estrangeiro. Compramos vinho noutras regiões de Portugal, isso sim, para o nosso vinho de mesa, que agora vai ter de ser mais caro. Isto prejudica a região demarcada do Douro, porque nas outras regiões não acontece. O que vai acontecer ao nosso bag-in-box, que representa 40% das vendas das Caves, é que vai ficar mais caro, porque vai ser vinho do Douro, e quem o comprava não fica rico da noite para o dia."
O PÚBLICO ouviu cinco cooperativas — falou também com Régua, Favaios e Alijó, esta gerida pelo grupo Abegoaria e igualmente com um PER — e nessas adegas o preço da pipa de vinho do Porto vai ser paga neste ano entre 900 e 1000 euros e a pipa para vinho com Denominação de Origem Controlada "Douro" (DOC Douro), entre 300 e 500 euros. A maioria das cooperativas olha ao grau alcoólico e paga mais por pipa quanto mais elevado for o grau. Em Alijó, por exemplo, dentro do que vai para DOC Douro, valorizam-se mais as uvas brancas.
Favaios está a terminar um investimento na ampliação da sua adega "que ronda 1,4 milhões de euros", partilha o presidente Mário Monteiro, e "essa parte nova fica pronta agora no fim de Outubro". É um investimento para "para ter mais capacidade de fermentação", mas não necessariamente para poder admitir mais sócios, ressalva. "Os nossos associados têm mais uva, porque houve reestruturação e as vinhas novas produzem mais. Por outro lado, com mais capacidade de fermentação, poderemos aproveitar melhor as uvas que nos entregam. E, claro, no futuro dará capacidade de vinificação e de poder voltar a aceitar novos associados. Mas não agora." Pelo contrário, na cooperativa da Régua (750 sócios), que tem três pólos (além da sede, também em Tabuaço e Armamar), ao contrário do que seria de supor, não houve necessidade de aumentar capacidade, porque havia disponibilidade para vinificar mais. Essa folga permitiu "alugar [espaço e equipamento] a gente que não tinha capacidade de vinificação", explicou o presidente das Caves Vale do Rodo, António Lencastre.
A adega de Favaios não é a única estrutura do género a surgir em plena crise na região. A Sociedade de Vinhos Borges já fez esta vindima no seu novo centro de vinificação e engarrafamento, um investimento para já de 5 milhões de euros, em Sabrosa. E a Abegoaria, que na prática é arrendatária da cooperativa de Alijó e manteve os antigos sócios da adega como fornecedores de uva, está a fechar a cedência de um terreno pela autarquia local em troca de passar para o município uma parte antiga da adega, bem no centro do concelho. “Já queríamos fazer recepção de uva na nova adega na próxima vindima”, disse ao PÚBLICO o seu CEO, Manuel Bio. "Como grupo, estamos a crescer bastante e acreditamos que nos próximos cinco a seis anos conseguiremos duplicar as nossas vendas do Douro [actualmente 1 milhão de garrafas]", justificou o responsável pelo grupo presente em sete regiões vitivinícolas e com vendas anuais de 18 milhões de garrafas.
Contactadas as cinco maiores casas exportadoras, só a The Fladgate Partnership divulgou, sem reservas, os valores que está a pagar pelas uvas aos viticultores. A dona da Taylor's e da Croft diz estar a pagar a pipa de vinho com benefício "entre 1000 e 1200 euros". Questionado sobre se haveria lavradores a receber da sua empresa menos, o seu CEO, Adrian Bridge, notou que estes valores correspondem a "90% do negócio" feito com os viticultores, uma vez que o foco do grupo é comprar uvas para as categorias especiais de vinho do Porto. Para lá das uvas com benefício, a Fladgate está a comprar 50% sobre esse quantitativo, para vinho tranquilo, e paga "entre 500 e 600 euros, dependendo da qualidade". No geral, garantiu, a empresa comprou a mesma quantidade de uvas que em 2023.
Confrontada com uma missiva enviada aos fornecedores de uva a 27 de Agosto, em que dava conta de que em cima do benefício compraria aos agricultores "apenas mais 20% de uvas", a Symington, que só respondeu ao PÚBLICO após alguma insistência, preferiu sublinhar que é responsável "somente [por] 4% das vendas totais de DOC Douro e não está em condições, por si só, de absorver os excedentes crónicos da região". A empresa detentora da Graham's e da Cockburn's tinha dito a este jornal, precisamente no final de Agosto, que não cortaria nas compras feitas aos lavradores. No comunicado enviado aos fornecedores percebia-se que seria mantido o preço no DOC Douro (520 euros por pipa) e que a pipa com benefício seria majorada em 15 euros.
A Symington não quis divulgar o valor dessas uvas: "A tabela de preços para vinho do Porto é complexa, detalhada e personalizada e não estamos disponíveis para a tornar pública." Também não confirmou nem desmentiu a informação que corre na região de que terá destilado 2 milhões de litros na última destilação de crise, limitando-se a "adiantar que o resultado global do processo de destilação se traduziu num prejuízo substancial para a empresa".
Sogrape, Sogevinus e Granvinhos também fazem segredo daquilo que pagam a terceiros pela uva. "A informação em questão constitui segredo de negócio da Sogrape", respondeu a primeira, invocando "razões de observância do enquadramento jurídico concorrencial em matéria da livre formação dos preços no mercado". Já o grupo que tem marcas como Kopke, Calém ou Burmester "tem como política não divulgar preços", alegando que "cada negócio é acordado individualmente com cada um dos seus viticultores". E a Granvinhos diz que "há vários preços, quer para Douro, quer para Porto" e que, "relativamente a 2023, os preços pagos [pelo grupo] mantêm-se", sem especificar os valores do ano passado.
Na adega de Santa Marta de Penaguião, onde a vindima deveria ter terminado no último fim-de-semana, mas em que "nenhum sócio fica com uvas na vinha", ainda se recebeu uvas nesta semana. De fora, ainda assim, ficarão vários viticultores. Não são sócios e, apesar de venderem 'o cartão do benefício' noutros sítios, tentam ali a sorte. "Podemos comprar uvas, mas os viticultores têm de nos trazer a AP [autorização de produção]",sentencia o presidente, Manuel Cruz. Ouvimos em Santa Marta o caso de um fornecedor que se preparava para deixar na vinha "70 pipas" (52,5 toneladas de uva). Fez-nos acreditar nas palavras amarguradas de Vítor Herdeiro. "Agora, em Outubro, depois da vindima e de a folha cair, desafio-vos a vir ver as vinhas cheias de uvas penduradas."