Acordo luso-espanhol sobre caudais do Tejo e Guadiana: agricultores portugueses descontentes

Organizações de agricultores portugueses não se conformam com a cedência de água a Espanha, alegando que o mesmo volume de água está a ser sujeito a um progressivo e imparável aumento da procura.

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Imagem de drone da barragem do Pisão da EDIA, Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do Alqueva, S.A. Nuno Ferreira Santos
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Portugal assegura compromisso com Espanha para caudais diários no Tejo e abre caminho para a tomada de água no Pomarão, e os utilizadores espanhóis que têm acesso à água do Alqueva irão pagar esse serviço nas mesmas condições dos utilizadores portugueses. Estes foram os dois temas principais do princípio de acordo anunciado esta sexta-feira, na sequência do evento comemorativo dos 25 anos da Convenção de Albufeira que reuniu, em Aranjuez, nos dias 25 e 26 de Setembro a ministra espanhola da Transição Climática e Desafio Demográfico, Teresa Ribera, e a ministra do Ambiente e Energia, Maria da Graça Carvalho.

Os volumes diários para os caudais serão agora definidos nas próximas reuniões técnicas entre as entidades portuguesas e espanholas. Mas o resultado final das negociações continua a suscitar reservas e apreensões, sobretudo junto de quem desenvolve a actividade agrícola. Não foi possível alcançar o "ponto ideal", avaliam alguns representantes dos agricultores mais conformados, admitindo as dificuldades de negociar com quem tem as nascentes do seu lado (Espanha). Entre o descontentamento e o conformismo, sobra o aviso de quem espera pelo momento em que o novo acordo seja realmente posto à prova: quando faltar água "é que vão ser elas".

Francisco Palma, presidente da Associação de Agricultores do Baixo Alentejo (AABA), relembra ao PÚBLICO os critérios seguidos até agora na assunção de responsabilidade pelo uso da água represada em Alqueva. “Em Portugal, quando a água não é paga cortam-na ou então cobram-nos juros de 10%. Se eu instalar uma captação ilegal sou sancionado”, nota. E, questionando o rigor que é imposto aos agricultores portugueses, o presidente da AABA contrapõe: "Mas os agricultores espanhóis que têm sistemas e extracção nas margens da albufeira de Alqueva, entre os rios Caia e Cuncos, maioritariamente na região de Olivença, não sofrem qualquer consequência.”

O responsável realça ainda um outro pormenor: os fornecimentos de água a partir de Alqueva continuam a aumentar, mas a cota máxima dos 590 hm3 da água para a agricultura mantém-se inalterada. Porém, constata, enquanto a EDIA aplica medidas de controlo nos consumos, estabelecendo um rácio por cultura, alegando a necessidade de poupar água, “deixa-se que os agricultores precários proliferem, e apesar de não estarem integrados na rede de rega de Alqueva, continuem a ter acesso à água". "E nos blocos de rega confinantes (os que já existiam antes de o Empreendimento de Fins Múltiplos de Alqueva [EFMA] ser construído) “a área de rega continua a aumentar sem qualquer controlo”. Agora vemos a água ir para Espanha, conclui desapontado.

"Quem prevaricou sai beneficiado"

Graça Carvalho afirmou que Espanha não vai pagar a dívida de 40 milhões de euros pelo uso da água do Alqueva nos últimos 20 anos, justificando que "não é possível pagar para trás” e afirmando que “seria impossível reconstruir o passado, porque não foi sequer pedido que isso acontecesse”. Ou seja, concluiu a ministra, foi posta "uma pedra sobre o assunto”. Francisco Palma reage: “Quem prevaricou sai beneficiado [os agricultores espanhóis]”. O representante dos agricultores realça o que considera ser um claro benefício ao infractor, lembrando ainda que, nos acordos estabelecidos com Espanha para a construção da barragem de Alqueva, este empreendimento “é para uso exclusivo de Portugal”.

Mas se forem recolhidas imagens aéreas da região onde os agricultores espanhóis instalaram captações na albufeira de Alqueva, “temos uma verdadeira noção das extensas áreas de regadio que já estão instaladas”, denuncia o dirigente da AABA, instando as autoridades portuguesas e espanholas a fazer um levantamento sobre o número de captações que já existem.

Corrida à água do Alqueva por causa do olival

Esta corrida à água de Alqueva, barragem que continua a ser uma referência pelos elevados níveis de armazenamento de água na sua albufeira, que contrastam com as outras albufeiras no Sul do país e das regiões espanholas da Extremadura e da Andaluzia que se encontram à míngua de água, deve-se à plantação maciça de olival. A monocultura consome menos água do que a esmagadora maioria das outras culturas praticadas nos 130 mil hectares regados pela grande barragem.

Comparando as extensas plantações de olival e as elevadas produções de azeite na região do Alentejo, o presidente da AABA recorda o que se está a passar neste momento com o vinho e antecipa: “[O PÚBLICO] Ainda vai escrever sobre o excesso de produção de azeitona.”

Mais reservada foi a reacção de José Núncio, presidente da Federação Nacional de Regantes (Fenareg), quando instado pelo PÚBLICO a comentar as conclusões divulgadas no evento comemorativo dos 25 anos da Convenção de Albufeira, em Aranjuez. “Há que analisar a documentação à qual ainda não tive acesso, e só então é que estou em condições para me pronunciar.” Mesmo assim, Núncio considera que este “não é um grande momento para negociar” com quem tem as nascentes dos rios partilhados no seu território. “Tenho dúvidas de que se tenha alcançado o ponto ideal” no lançamento de caudais para território através do rio Tejo, reconhece, acrescentando: “Mas se mantiverem o que está já não é mau.”

Também Manuel dos Reis, presidente da Associação de Beneficiários da Obra de Rega de Odivelas, reconheceu ao PÚBLICO que não tem acompanhado as negociações entre os dois países sobre os caudais do Tejo e Guadiana. “Olhe, estou no campo a tratar das minhas culturas”, justificou o agricultor, deixando, contudo, um aviso: “Enquanto houver água é tudo muito bonito, mas quando ela faltar é que vão ser elas”.

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A vice-presidente do Governo e ministra da Transição Ecológica de Espanha, Teresa Ribera (C-D), e a ministra do Ambiente e Energia de Portugal, Maria da Graça Carvalho (C-E), posam para a fotografia de família da cerimónia comemorativa do 25.º aniversário do Acordo de Albufeira (1998-2023), em Aranjuez, Espanha, 27 de Setembro de 2024 MARIO SOHO/EFE

Aumentar controlo dos caudais

Num outro contexto, José Paulo Monteiro, professor na Universidade do Algarve, que já elaborou vários estudos sobre a caracterização das massas de água no Baixo Guadiana, faz um reparo. Assim, diz, por muito clara que seja a Convenção de Albufeira na gestão dos recursos hídricos dos rios partilhados, “se não aumentar o rigor no controlo dos caudais”, nunca se terá uma ideia dos recursos hídricos que são realmente utilizados.

O docente admite que da análise efectuada em 2019, na rede hidrográfica do Baixo Guadiana, verificou-se que as estações hidrométricas “não eram suficientes” para controlar a água captada. Contudo, a realidade presente regista já uma “substancial melhoria” nos sistemas de monitorização comparativamente com o que acontecia há cerca de 20 anos, constata Paulo Monteiro.

A satisfação está patente nos comentários de Paulo Constantino, dirigente do Movimento proTEJO, quando expressou ao PÚBLICO o seu agrado pelas declarações da ministra do Ambiente e da Energia, “ao assumir a existência de um problema de enorme volatilidade dos caudais do rio Tejo com origem em Espanha”. E por destacar a necessidade de que sejam estabelecidos caudais diários que permitam a conservação dos ecossistemas e “a clarificação de que não podem existir momentos de caudais nulos no rio Tejo”, pormenor que a governante portuguesa fez questão de realçar no seu discurso em Aranguez, quando afirmou: “Acabaram os dias de caudal zero no rio Tejo."

O que falta no acordo? Definir caudais ecológicos

Mas, apesar do sentido positivo destas declarações, o movimento proTEJO “teria ficado mais satisfeito se, em vez de caudais diários, se tivesse assumido definitivamente o conceito de caudais ecológicos” que preencha "todas as condições e elimine os problemas causados pelo actual regime de caudais mínimos”, conforme foi “correctamente” enunciado nas declarações da ministra do Ambiente e da Energia.

Reportando-se aos projectos hidroeléctricos de bombagem reversível nas barragens de Alcântara e Valdecañas anunciados pela Iberdrola para o rio Tejo em território espanhol, Paulo Constantino refere que a implementação destas estruturas permitirá à concessionária manter a água em ciclo fechado durante mais tempo. Existirá então uma margem suficiente para libertar a água necessária “a um verdadeiro regime de caudais ecológicos” destinados à conservação dos ecossistemas e ainda caudal suficiente para os usos económicos e de lazer das populações ribeirinhas, salienta o dirigente do movimento proTEJO.

Numa reacção às declarações da senhora ministra do Ambiente e Energia, Maria da Graça Carvalho, proferidas esta sexta-feira em Madrid, a Zero considera que as negociações recentes sobre os caudais dos rios Tejo e Guadiana representam um avanço importante, mas levantam questões que merecem maior atenção e debate público.

E também salienta que “caudais mínimos diários não equivalem a caudais ecológicos”, frisando que a definição de caudais mínimos diários “não reflecte plenamente as necessidades ecológicas”, embora o fim dos "dias de caudal zero" no Tejo possa ser assinalado como um ponto positivo para a protecção do rio e dos ecossistemas que dele dependem, assinala a organização ambientalista.

Embora o acordo seja significativo para o Tejo e Guadiana, a Zero questiona o facto de ele “não abordar outros rios transfronteiriços que também enfrentam pressões hídricas”, como o Douro e o Minho.