Há mais microplásticos na Terra do que estrelas na Via Láctea. Agora há um bocadinho menos nas praias de Vila do Conde
A segunda edição da Maelstrom Sunset Beach Cleanup, em Vila do Conde, que decorreu no sábado, contou com cerca de 100 participantes. Dos mais novos aos mais graúdos, todos retiraram lixo das praias.
O Verão chegou ao fim e o ser humano deixou um rasto nas praias por onde foi passando. Coube aos mais novos ir atrás dessa pegada de lixo abandonada no tempo estival, mas com um objectivo específico, que exigia um olhar mais fresco: os microplásticos. O desafio foi lançado aos mais novos no dia internacional da limpeza de praias (World Cleanup Day) pelo Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (Ciimar), juntamente com a Câmara Municipal de Vila do Conde, CMIA, Counting Stars e CIMA Research Foundation e cerca 100 participantes prontificaram-se a ajudar a limpar o areal.
Júlia Miranda tem oito anos, mas já tem o futuro bem definido. “Eu quero uma profissão que tenha que ver com ciência e animais. Juntei isso e deu bióloga. Dentro disso, percebi que tinha de escolher uma secção de animais. Como eu gosto muito de animais marinhos, percebi que queria ser bióloga marinha”, conta ao PÚBLICO, de luvas nas mãos, concentrada na missão para aquela tarde: recolher os microplásticos existentes na zona de homenagem às mulheres da seca do bacalhau, perto do estuário de Vila do Conde. O grupo constituído por elementos mais velhos dedicou-se à recolha na praia da Senhora da Guia.
Andreia Lima, de 41 anos, é a mãe da Júlia e soube da iniciativa através das redes sociais. A sugestão pareceu-lhe a indicada para ocupar a tarde de sábado e o entusiasmo da filha foi tal que o convite acabou por ser arrastado à amiga Leonor, de dez anos. Leonor Faria ambiciona ser cientista e explica, enquanto olha atentamente para o areal, que sempre que vai à praia com os pais repara na grande quantidade de lixo que existe. “Há uma zona que é pior do que as outras, porque tem um café perto e as pessoas não têm cuidado com o lixo”, comenta a futura cientista, enquanto explica à amiga que a missão do grupo é a de encontrarem os microplásticos. “São os mais difíceis, porque são muito pequeninos”, completa o pequeno Dinis, de seis anos.
Durante uma hora, os participantes foram distribuídos pelas praias da cidade de Vila do Conde, com o objectivo de recolher o lixo das diferentes praias. “Não se preocupem, se não existir muito lixo, também é bom sinal”, vai dizendo Luís Vieira, investigador no Ciimar. “Nós, juntamente com os miúdos que estão a recolher os microplásticos, vamos tentar que eles, com pequenos guias, identifiquem esses microplásticos, para depois ligarmos isso ao espaço”, explica o investigador, fazendo alusão aos dados revelados no relatório da Agência Europeia de Execução para a Investigação (REA). Até porque o programa não se fica apenas pela recolha do lixo. Após a limpeza, os participantes tiveram direito a jantar, para depois se dedicarem a uma programação lúdica sobre lixo marinho e microplásticos. Seguiu-se um passeio cósmico, dinamizado pela equipa da Counting Stars, onde um grupo de astrónomos e astrofotógrafos proporcionou uma sessão de observação de estrelas.
“Pegando um pouco naquela mensagem da Comissão Europeia – que acho que é bastante preocupante, [pois] existem 500 vezes mais microplásticos no planeta do que estrelas na Via Láctea –, é fundamental mostrar que proteger o ambiente é uma missão de todos nós”, diz Luís Vieira.
O que é o Maelstrom?
O projecto Maelstrom está integrado no Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental da Universidade do Porto e tem como principal objectivo proteger os ecossistemas costeiros, eliminado, reciclando e devolvendo o lixo marinho à cadeia de mercado. É financiado pelo programa Horizonte 2020 da União Europeia e liderado pelo Instituto de Ciências Marinhas do Conselho Nacional de Pesquisa da Itália, tendo a duração de quatro anos.
“Estima-se que 83 milhões de toneladas de plásticos já estejam nos oceanos. A recuperação desses plásticos é uma tarefa árdua e custosa”, afirma-se no projecto. Tarefa essa que é levada a cabo pelo Maelstrom, com duas áreas de avaliação de impacto: uma no rio Ave, em Vila do Conde, e outra na área costeira de Veneza, em Itália. Em Vila do Conde foi criada uma barreira de bolhas, evitando que o lixo chegue ao oceano. Já em Veneza, uma plataforma robótica vai retirar directamente esse lixo do fundo do mar.
Após essa recolha, “serão realizados levantamentos repetidos e dedicados para avaliar a eficiência das tecnologias de remoção, bem como estimar os efeitos de longo prazo nos ecossistemas”, esclarece-se. Em seguida, um robô que funciona através de inteligência artificial separa esses resíduos, fazendo com que estes passem por processos “avançados de reciclagem que permitem que os materiais regenerados entrem novamente na cadeia de suprimentos industrial”. O mote está dado: “Remova. Recicle. Dê um novo uso. Repita.”
O problema continua à deriva
Todos os anos são produzidas milhões de toneladas de plástico e muitos desses milhões vão parar directamente ao oceano. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) alerta que, se o ritmo actual da indústria se mantiver, a quantidade de plástico produzida deverá triplicar até 2060.
Entre 23 e 37 milhões de toneladas de plástico poderão ser escoados para o oceano todos os anos até 2040, segundo o Programa das Nações Unidas para o Ambiente (PNUA). E os problemas não se ficam por aqui. Devido ao seu tamanho (os microplásticos podem ser definidos como plásticos com menos de cinco milímetros de largura e comprimento), estas partículas acabam por ser ingeridas pelos peixes e, consequentemente, chegam aos nossos pratos, causando problemas para a saúde humana.
Mas todas as espécies sofrem com o impacto destes poluentes. Calcula-se que mais de 90% das crias das cagarras (Calonectris borealis), uma ave marinha, já apresentam plásticos no estômago quando deixam os ninhos, tanto em Portugal como em Espanha. Os dados são apontados por um estudo publicado na revista científica Environment International. As conclusões relevam um dos valores mais altos encontrados até hoje, quando comparados com outros valores obtidos noutros estudos com outras espécies.
É, por isso, fundamental que os cidadãos e a próxima geração “assumam um papel activo no combate ao desperdício de plástico”, o principal objectivo do projecto Go Europe – Plastic Pirates, financiado pela União Europeia, refere o mais recente relatório da Agência Europeia de Execução para a Investigação (REA). Essa missão não parece difícil, pelo menos, no que diz respeito à motivação dos miúdos. “É muito fácil captar a atenção dos mais novos. Aliás, muitos deles passam as mensagens nas escolas e depois até tentam, juntamente com os colegas, promover essas mesmas acções dentro das próprias escolas. São eles que muitas vezes dão o exemplo aos adultos para um mundo mais sustentável”, comenta Luís Vieira.
Texto editado por Ana Fernandes