“Com o bagaço da uva, fazemos por ano 350 toneladas de matéria orgânica de qualidade”
Quanto mais vivos e diversos forem os solos, mais saudáveis serão. E mais carbono capturarão. Anselmo Mendes está a compostar películas e grainhas para aumentar a matéria orgânica na Quinta da Torre.
Segunda semana de Setembro, de visita à Quinta da Torre, em Monção, em dia de vindimas, a conversa com o produtor e enólogo Anselmo Mendes rapidamente chega ao ponto em que a pergunta que se impõe é: o que tira hoje o sono a quem já experimentou e “inventou” tanto? “O futuro. Estamos muito focados naquilo que podemos fazer na viticultura de modo a não perdermos a tipicidade e a manter a acidez dos nossos vinhos. Já acontece por vezes que termos níveis de acidez comparáveis aos de regiões como o Douro. Isso é uma coisa que nos preocupa bastante.”
Entre outras práticas — como a desponta ou poda em verde, os cobertos vegetais ou o atrasar do ciclo vegetativo da videira a partir da floração de forma a poder vindimar (para já apenas algumas parcelas, e a título experimental) mais tarde, quando as noites estão mais frescas — e projectos na calha (charcas para armazenar a água da chuva, pasme-se o leitor), uma novidade chamou a nossa atenção. Entre duas parcelas, demos com uma enorme pilha de bagaço de uva, resultado já dos primeiros dias de vindima, quer na propriedade de 62 hectares (50 de vinha, tudo Alvarinho) junto ao rio Gadanha, quer nas restantes quintas e parcelas que Anselmo trabalha na região dos Vinhos Verdes. “O composto que produzimos aqui resulta do que trazemos também das outras quintas. Tudo o que nós produzimos nas quintas do Lima está concentrado aqui. Não desperdiçamos nada.”
Este é já o quarto ano em que Anselmo Mendes está a compostar esse bagaço para o aplicar depois nos solos da quinta. No âmbito de uma parceria com o Instituto Politécnico de Viana do Castelo (IPVC), a solução baseada na natureza foi testada na parcela da Rainha e, no primeiro ano, “um ano só de experiência”, foram produzidas “30 toneladas” de composto. “Agora, estamos a introduzir, de forma faseada, entre 20 e 30 toneladas por hectare. E daqui já estamos a levar para a vinha de castas tintas [na Quinta Rabo do Cuco, de onde sai a referência Pardusco e onde Anselmo tem Alvarelhão, Pedral — ou Cainho — e Verdelho Feijão, para além de alguns pés de outras variedades de cor mais aberta, como Rufete, Tinta Francisca e Pinot Noir]. Já fazemos por ano 350 toneladas de matéria orgânica de qualidade.”
Qual o intuito de devolver à terra as películas e grainhas de Alvarinho e de Loureiro (este vindo da sub-região do Lima)? Aumentar o teor de matéria orgânica dos solos, de forma a reduzir a pegada de carbono da cultura e a prescindir da adubação química. “Um solo que está estéril, do ponto de vista físico-químico, funciona para a planta na mesma. Tem a água e minerais. Mas um solo com matéria orgânica já decomposta, com uma maior diversidade de protozoários, minhocas, bactérias, fungos, tem uma influência extraordinária sobre a qualidade da uva e sobre os vinhos”, explica o ‘senhor Alvarinho’.
O projecto com o IPVC — financiado pela Agência Nacional de Inovação, o Bioma era um projecto de mobilizador da cadeia agro-alimentar, bastante extenso e e tinha na compostagem apenas uma das suas dimensões — já terminou, mas a experiência deu, ao que tudo indica, bons resultados, pelo que a prática veio para ficar. De tal forma que Anselmo Mendes até contactou a Adega Cooperativa de Monção para lhe comprar mais bagaço, um subproduto que de outra forma vai para as destilarias da região.
“Como um saldo de deve e haver”
Susana Mendes, engenheira agrícola e irmã de Anselmo, é uma das investigadoras no projecto Bioma. Ao PÚBLICO, explica que, apesar de ainda não haver resultados finais da comparação com as análises iniciais ao solo da parcela da Rainha, já é possível enumerar os efeitos positivos da incorporação do composto de bagaço: “melhoria significativa da estabilidade dos agregados [uma agregação do solo mais favorável ao que se pretende, seja no aporte de água, seja na nutrição da vinha], correcção de pH, e diferenças claras entre os locais em que é aplicado e não é aplicado”.
“Mas, em termos de matéria orgânica, com certeza [haverá melhoria]. Tínhamos um valor de partida na parcela da Rainha que não era muito baixo, era de 2,9%, e temos ideia de que esse valor agora pode variar entre os 3% e os 3,2%”, explica a professora de Ciências Agronómicas e Veterinárias no IPVC e membro da Parceria Portuguesa para o Solo. Os especialistas dizem que “solos minimamente saudáveis nunca deveriam baixar dos 3,5% de matéria orgânica” e alertam que parte da incorporação de matéria orgânica serve apenas para compensar as perdas. “Sabemos que a velocidade a que perdemos matéria orgânica, pela transformação de carbono orgânico em CO2 [dióxido de carbono] — que é o quê? é carbono orgânico volátil, que vai para a atmosfera —, ronda os 2,5% ao ano. Isso é comummente aceite. Os agricultores deveriam ter noção do que perdem, para pelo menos reporem essa perda. É mesmo como um saldo de deve e haver.”
Susana Mendes ressalva que “a vinha nem é das culturas que mais nutrientes exporta” — as folhas caem e ficam no solo e há cada vez mais gente que, como Anselmo, devolve à terra a matéria-prima da poda, por exemplo. Mas, para se ter melhor noção do estado dos solos em viticultura, conta a investigadora que ao laboratório do IPVC chegam “muitas amostras [locais] com 1% de matéria orgânica e até menos” e que “os Vinhos Verdes, no contexto nacional, ainda são das melhores regiões”.
“Se um solo tinha há 20 anos 5% e 6% de matéria orgânica, e neste momento tem 1%, isso significa que se perderam muitas toneladas de CO2 para a atmosfera, que esse solo deixou de reter água e que deixou de ter condições para ter vida — porque os microrganismos, como as bactérias, os protozoários, etc., alimentam-se de matéria orgânica.”
O tema é tão importante que o Politécnico de Viana do Castelo tem outro projecto a decorrer, no âmbito de trabalhos de fim de curso de alunos de Agronomia, com o objectivo de “perceber até que ponto é que a incorporação destes materiais ajuda no arejamento e agregação do solo”. “Um solo compactado é como uma esponja que está apertada”, explica Susana Mendes, que lembra que, muito em breve, será obrigatório na Europa monitorizar a saúde dos solos.
Aquando da nossa visita, a pilha de bagaço ainda era uma amostra do que Anselmo e a família já se acostumaram a ter ali durante a vindima. “Logo a seguir à vindima fazemos umas pilhas, que não têm mais que 1,5 metros de altura, nem mais de 2 metros de largura — e nós já ensaiámos a mexer, a não mexer, portanto, fizemos muitos ensaios —, e depois temos uma tela muito especial para isto — as pessoas antigamente faziam uma pilha e deixavam aquilo lá fora, mas isso não é compostagem — e em Março, quando já está tudo desfeito, pegamos nesse composto e analisamos”, explica o produtor. E? “E, este ano, a matéria-prima [resultante da compostagem] tinha pH 7,9, quase 8, era rica em potássio e em cálcio, com uma humidade muito baixa, portanto, extraordinária.” Essa adubação natural é espalhada na vinha e produtor e investigadores acompanham então a experiência, sem mobilizar o solo.
Se o bagaço for introduzido no solo sem ser compostado, “acidifica o solo”, mas assim, “com pH 8, ainda ajuda a neutralizar a acidez do solo”, nota Anselmo Mendes, que neste momento só trabalha “com fertilização orgânica”. Não junta nada ao bagaço, porque, explica, “o óptimo é a matéria orgânica ter 30 vezes mais carbono que azoto”. O resíduo “doméstico tem muito mais azoto, daí ser preciso juntar coisas com mais carbono”. Aqui, não é preciso mais nada. E nos mostos, nota-se a diferença? Na qualidade, sim, afiança o enólogo. “Como os solos têm um bocadinho mais de matéria orgânica, os vinhos são mais aromáticos, têm mais aquele carácter tiol do Alvarinho.”
Água e sustentabilidade
Na Quinta da Torre, a produção é integrada — “o biológico aqui não é sustentável” — e o produtor está “a concluir a certificação [em sustentabilidade] da ViniPortugal e do Instituto da Vinha e do Vinho”. A preocupação com o futuro da vinha e, claro, do negócio é tal, que Anselmo Mendes já está a pensar, por exemplo, em aprovisionar a água das chuvas — isto para além de ter em todo o lado instalação de rega; foi colocada para regar a vinha nos primeiros anos, “depois disso não tem sido necessária”, mas isso não quer dizer que não venha a ser precisa.
“Estamos a pensar em recolher água no extremo da quinta, na cota baixa. Embora tenhamos imensa água neste momento, pensamos no futuro recolher aí a água da chuva.” No Minho? Perguntámos. “No Minho chove, mas é fora do ciclo. Há mais problemas hídricos no Minho do que propriamente no Douro.”
“Nós temos muita água, mas ela vai toda para o mar. E, com a orografia que temos, com estas linhas de água, não precisamos de fazer albufeiras, mas devemos fazer o aprovisionamento da água. O Minho pode tornar-se um oásis agrícola, num momento difícil. Na Casa de Rodas [em Monção também, numa parceria com a Symington] estamos a reestruturar a vinha e já criámos uma charca este ano. Mais dois anos e estaremos a fazer também aqui [na Torre] uma charca.”
Um dos trabalhadores que o PÚBLICO encontrou a vindimar quando visitou a Quinta da Torre dizia “notar diferenças” consoante o trabalho feito na vinha durante o resto do ano. “Na parte de cima [da vinha], que é mais seca, há mais produção do que aqui, onde há mais folhagem. Lá em cima, há mais quantidade e melhor. Aqui, os cachos não estão tão maduros, porque a folhagem não deixa entrar o sol”, comentava Domingos Barbosa, minhoto de Braga, há 14 anos a trabalhar com Anselmo Mendes. Mas aqui o enólogo e produtor quer evitar escaldões e outros problemas, por isso tem de ser um equilíbrio... “Sim, sim, exactamente.” Já está na reforma, mas “corre por gosto” e para as vindimas do “senhor Anselmo” e para “ganhar algum, que as reformas são pequenas”, lá sai de casa.
Domingos era um dos vários trabalhadores a quem a empresa recorre todos os anos por altura da vindima. Enquanto falávamos, uma máquina terminava mais um turno de vindima mecânica noutra parcela, mais junto ao rio. Anselmo combina as duas. “A máquina à noite é melhor do que a vindima manual de dia, e tanto melhor quanto mais quente for o dia. Permite-nos intervir na hora certa, quando a uva está com equilíbrio, com açúcares e com os ácidos no ponto certo”, explica.
Tiago Mendes é o filho do meio de Anselmo e Fernanda e, na empresa gerida de forma familiar, tem a pasta do marketing e da área comercial. Perguntámos-lhe se é fácil comunicar tudo isto? “Há muita confusão da parte do consumidor hoje em dia”, começa por dizer. E há muito consumidor que liga a “menções” que ganharam muito força nos últimos anos como “o bio”, só porque sim.
“Os nossos rótulos não têm qualquer tipo de menção. E, quando nós falamos em produção integrada, quem está no meio valoriza isso, mas em geral o consumidor não. Às vezes tenho clientes que perguntam: isto é orgânico ou biodinâmico? E, se não for um desses, parece que já não é um produto verde. Então, às vezes, é um bocadinho difícil de comunicar [o que fazemos]. Mas o selo da sustentabilidade da ViniPortugal vai ser importante, porque é uma coisa a nível nacional e porque será valorizada, por exemplo, nos mercados nórdicos.”
Há um ano, a família abriu o enoturismo, com um centro de experiências — inclui uma adega com uma prensa medieval e cubas de inox modernas reservadas à vinificação de experiências e coisas especiais; no mesmo espaço é ainda possível perceber as diferenças entre as oito tipologias de solo existentes na propriedade (Anselmo Mendes começou a estudar os solos da quinta em 2008, é desse conhecimento que nasce o vinho Parcela Única, e nunca mais parou de o fazer) —, provas várias e cinco suítes que nasceram da transformação das antigas cortes dos animais.