Chuva forte após incêndios pode contaminar águas e causar enxurradas
Previsão de chuvas fortes para os próximos dias é uma notícia boa para o combate ao fogo, mas pode oferecer riscos de contaminação de linhas de água, de erosão e de enxurradas, dizem investigadores.
O Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) está a prever para os “próximos dias” a possibilidade de “precipitação forte” em zonas do país “que ficaram vulneráveis após os incêndios recentes”. É o caso dos distritos de Aveiro, Porto, Braga, Viana do Castelo, Viseu, Vila Real e Bragança, para os quais foi mesmo emitido um aviso amarelo de chuva, que, para já, está em vigor até ao início da noite de sexta-feira.
A mesma chuva que é boa para o combate ao fogo pode oferecer riscos, dependendo da intensidade e da duração da precipitação. As cinzas e partículas em suspensão na atmosfera vão ser levadas pela água pluvial, podendo infiltrar-se no solo, consoante a permeabilidade do terreno, ou serem arrastadas para os rios e as albufeiras, o que pode afectar os ecossistemas fluviais e até, em última instância, a qualidade da água para consumo humano, explica ao PÚBLICO Francisco Ferreira, professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa.
“Estes sedimentos que são arrastados e depositados em linhas de água podem continuar a constituir, ao longo do tempo, um risco de toxicidade, se tenho uma chuvada grande e tenho toda a camada superficial [dos solos] a ir-se embora, que vai sendo arrastada até perder velocidade e ficar lá retida com implicações futuras para o próprio abastecimento de água...”, refere o docente, que também é presidente da associação ambientalista Zero.
Francisco Ferreira recorda que, tanto em Portugal como noutros países, já houve situações em que as estações de águas tiveram de intensificar o tratamento para retirar estas partículas cujo potencial de toxicidade é maior. Os compostos que possam estar nessas linhas de água, sobretudo as superficiais, podem oferecer risco não só para a saúde humana, mas também para os seres vivos aquáticos. E se comermos peixes oriundos desses rios, por exemplo, as substâncias nocivas que possam estar presentes nesses animais são transmitidas através da cadeia alimentar.
As cinzas podem ter compostos muito diversificados, até porque a matéria ardida varia: nos incêndios que Portugal testemunhou esta semana, ardeu muita floresta, mas também algumas casas, armazéns e os objectos que estes espaços continham. “Nestes casos, podemos ter compostos mais complicados e que podem representar um risco maior – como por exemplo o benzeno, que é carcinogénico”, refere Francisco Ferreira.
“A toxicidade das cinzas e a mobilidade de materiais perigosos (incluindo metais e metalóides como o arsénio, o crómio e o cádmio) são particularmente altas em incêndios que ocorrem na interface florestal-urbana, onde se queimam infra-estruturas residenciais, comerciais e industriais”, observa Francisco Ferreira.
O que se pode fazer, agora, para minimizar estes riscos? Francisco Ferreira sublinha que, se tivéssemos pela frente mais dias de tempo seco, poderíamos apostar na construção de barreiras capazes de evitar a erosão e o arrastamento das cinzas usando, por exemplo, os próprios troncos ardidos.
“Mas com a previsão de chuvas fortes já para esta sexta-feira e sábado, não temos tempo de intervir e vamos ter estes problemas a manifestar. É por isso mesmo que este acompanhamento que é feito pela Agência Portuguesa do Ambiente, mas também pelas estações que gerem o tratamento de água para consumo público, vai sem dúvida ter um cuidado maior para garantir que não existem problemas”, afirma.
Erosão e risco de enxurradas
Devido aos incêndios, existem agora “muitíssimos hectares de terreno que não têm nenhum tipo de cobertura” e que, em muitos casos, se situam em “vales muito declivosos”, pelo que há um risco significativo de chuvas intensas arrastarem consigo “uma imensa quantidade” de pedras, solo e cinzas.
O problema mais imediato pode verificar-se nos cursos de água, alerta a geógrafa Maria José Roxo, docente da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, que explica ao PÚBLICO que a prioridade da Protecção Civil e dos municípios deve ser “ver qual é o estado das linhas de água, se há obstruções”, para prevenir consequências negativas de eventuais enxurradas.
“Muitas vezes as linhas de água passam por debaixo de vias de comunicação que têm aqueles tubos de escoamento mal dimensionados. E às vezes essas condutas estão obstruídas”, exemplifica. “As equipas de protecção civil dos municípios têm de ter planos de emergência para este tipo de catástrofes, portanto deviam ir para o terreno sobretudo analisar como estão as linhas de água”, aconselha.
A geógrafa diz que “podem acontecer” derrocadas nos terrenos afectados pelos incêndios – agora “desprotegidos” e “desnutridos” por ausência de matéria orgânica –, mas afirma que este não é o momento de intervir nesses locais, antes o de prevenir maiores estragos. “Quando temos uma encosta, ela acaba numa linha de água, que pode ser de pequena ou grande dimensão. Vai haver movimentos nas encostas, rolamento de pedras, arrastamento do solo e da matéria orgânica. Tudo isso vai ter aos rios. E quanto mais intensa [a chuva], mais rápida a deslocação da água nas encostas.”
Maria José Roxo chama a atenção para a possibilidade de assoreamento das barragens. “Não limpámos barragens” durante o período de seca, critica. Agora há o risco de “uma imensa quantidade de materiais” ficar presa nas albufeiras. Além disso, “esta erosão dos solos tem como consequência não termos, num futuro próximo, uma esponja que absorve água e que permite ter aquíferos bons e água de boa qualidade.”
Intervenções “têm de ser muito bem pensadas”
O que pode acontecer nos próximos dias é que a chuva, se for intensa, torne ainda mais pobres solos que já não eram particularmente ricos. Explica a geógrafa da Universidade Nova que este tipo de precipitação “tem aquilo a que chamamos um factor de erosividade grande”, o que significa que, ao tocar no solo, “a gota abre uma espécie de cratera” e os materiais à superfície do solo deslocam-se com muita facilidade.
“Isto é um sério problema porque vai dificultar a regeneração do ecossistema de forma natural e também dificultar a reflorestação”, alerta. E o problema “agrava-se” com intervenções nos terrenos, como retirar madeiras ardidas ou colocar troncos nas encostas para impedir derrocadas. “Essas intervenções têm de ser muito cautelosas e têm de ser feitas por pessoas que percebam o que estão a fazer. Têm de ser muito bem pensadas”, acrescenta.
Melhor seria que “chovesse suavemente” para que a vegetação recomeçasse rapidamente a aparecer, criando um novo coberto vegetal que permitisse, então, uma regeneração dos terrenos e posterior reflorestação.
Maria José Roxo acredita que “aquilo que aconteceu foi catastrófico para todos nós, porque a floresta é um bem comum” que “produz oxigénio, produz água, produz solo, produz biodiversidade.” Com os incêndios, “perdemos matéria orgânica e perdemos uma coisa fundamental para todos nós: o carbono que estava sequestrado no solo e o carbono armazenado na floresta e nos matos.”
Mas é de opinião que a reflorestação futura não se pode fazer de forma isolada e “tem de ser muito bem equacionada em relação às características geográficas dos locais”, porque o clima não é igual em todo o país, a morfologia dos terrenos também não, assim como a ocupação humana. Problematiza: “Como é que eu posso ter manchas contínuas que passam de concelho para concelho, como é que eu posso ter casas envolvidas pela floresta? Isto é equacionar o território de uma forma sistémica com uma base geográfica forte.”