Alterações climáticas vão ter influência no risco sísmico, dizem cientistas
O aquecimento global está a derreter as calotas de gelo, fazendo subir o nível do mar. Sismólogos alertam que a água a mais irá pressionar as falhas geológicas, o que pode adiantar ou adiar os sismos.
À medida que se vai compreendendo as dinâmicas da Terra, que envolvem a biosfera, o clima, o ciclo hidrológico e de outros elementos, e a própria geologia do planeta, as várias consequências das alterações climáticas vão sendo destapadas e a complexidade do problema que a humanidade tem vindo a criar agiganta-se. À partida, a relação entre o aquecimento do planeta e os sismos parece inexistente, mas um artigo recente escrito por três investigadores explica como é que um fenómeno pode estar ligado a outro e defende que as alterações climáticas vão influenciar, no futuro, o risco sísmico nas regiões marinhas do planeta.
“Isto é importante porque cerca de 40% da população humana do planeta está a viver em regiões costeiras. Por isso é que achamos que o modelo que agora publicamos é muito importante”, explica ao PÚBLICO Marco Bohnhoff, sismólogo da Centro de Investigação Alemão para as Geociências GFZ, em Potsdam, na Alemanha, e o primeiro autor do artigo publicado recentemente na revista Seismological Research Letters.
O modelo não é difícil de compreender. Já se sabe que o aumento da temperatura média da Terra contribui para o acelerar do derretimento das calotas de gelo e dos glaciares um pouco por todo o planeta. Este derretimento, vindo da Gronelândia, da Antárctida e dos vários glaciares de montanha que se distribuem pelos continentes, já contribuiu para o aumento do nível médio do mar em alguns centímetros.
Esta tendência não vai parar aqui. Estima-se que, até ao fim deste século, o nível médio do mar aumente entre o mínimo médio de 38 centímetros e o máximo médio de 77 centímetros, de acordo com os vários cenários da evolução das alterações climáticas avançados no sexto relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC, sigla em inglês). Esta água a mais, que vai alimentar os oceanos, aumenta o peso e a pressão no fundo do mar e isto não deixa incólumes as falhas geológicas submarinas que produzem sismos, como se explica no artigo, assinado ainda por Patricia Martínez-Grazón, que pertence ao mesmo instituto alemão, e Yehud Bem-Zion, da Universidade da Califórnia do Sul, nos Estados Unidos.
“Postulamos que por um período que pode durar muitas décadas e séculos, esta redistribuição do stress antropogénico vai alterar o relógio sísmico das falhas geológicas a nível individual, provocando um número maior de pequenos e grandes sismos ao activar falhas que já estão muito stressadas devido à carga tectónica [a que estão submetidas]”, lê-se no artigo, onde se refere que o aumento de um metro no nível médio do mar já causa uma pressão suficiente para acelerar fenómenos sísmicos que já estejam perto de ocorrer.
Marco Bohnhoff não tem resposta sobre como enfrentar este futuro desafio, que se soma a todas as outras pressões decorrentes das alterações climáticas, como as ondas de calor e as tempestades mais intensas, mas sugere o óbvio: “Acho que a melhor opção será não emitir mais gases com efeito de estufa, porque isso origina o aquecimento do planeta que, no nosso estudo, causa mais sismos.”
A origem dos sismos
Apesar de ainda não haver provas directas sobre a relação descrita no artigo, até porque a subida do nível médio do mar só recentemente é que começou a acelerar, os investigadores apresentam vários casos que ajudam a compreender o que está em causa.
“Há muitos estudos que tentam compreender os sismos que são causados pela actividade humana”, explica Marco Bohnhoff. “Há casos conhecidos em que mudanças do nível da água em barragens ou reservatórios causaram sismos”, exemplifica. Na Índia, a enchente de certas barragens após as monções está associada a sismos de média intensidade em regiões sem fenómenos sísmicos. “O maior sismo provocado pela barragem de Koyna [no estado de Maharashtra], alcançou uma magnitude de 6,3 resultando em 200 mortes numa região pouco povoada”, refere o artigo.
Este tipo de fenómenos não é uma surpresa para Susana Custódio, sismóloga do Instituto Dom Luiz, da Universidade de Lisboa, que não integrou o trabalho, mas que estuda o efeito das marés nas falhas geológicas. “Concordo sem dúvida que as alterações climáticas, com as alterações ambientais que trazem, tenham um potencial para causar alterações nas taxas de actividade sísmica. Isso faz sentido com aquilo que já vemos no globo. Quando temos alterações ambientais à superfície da Terra, isso tem, muitas vezes impacto nas taxas de sismicidade”, diz ao PÚBLICO, adiantando que o mecanismo descrito no artigo “não é propriamente novo”.
A especialista começa por explicar que os sismos são fenómenos que resultam de forças aplicadas à parte mais externa do planeta, chamada litosfera. A principal causa dos sismos é o movimento das placas tectónicas. “À medida que as placas se movem com movimentos diferenciais, umas em relação às outras – às vezes colidem, às vezes afastam-se, às vezes movimentam-se lateralmente – essas forças vão deformando a superfície da Terra e essa deformação é acomodada em parte por sismos”, exemplifica. O sismo ocorrido ao largo da costa portuguesa, a 60 quilómetros de Sines, na madrugada desta segunda-feira (e que não está relacionado com o fenómeno descrito neste artigo), é um exemplo do que a investigadora descreve.
Ora, esta dinâmica interna pode ser influenciada por fenómenos externos. Susana Custódio dá o exemplo do enorme sismo no Japão que causou o grande maremoto de 2011. Estudos feitos acerca da pressão das marés oceânicas e das marés terrestres (deformações da crosta causadas pela gravidade da Lua e do Sol) na falha que originou aquele sismo mostram que na maior parte do tempo as marés não influenciam a falha, mas tudo muda quando a falha começa a acumular uma pressão suficientemente grande e se aproxima de um fenómeno sísmico. Nesse momento, a actividade sísmica passa a mostrar uma modulação associada às marés. “À medida que estas falhas chegam ao estado crítico, começam a ser mais sensíveis às pequenas variações de pressão impostas pelas marés”, explica a investigadora.
Nesse sentido, Susana Custódio não estranha a hipótese descrita no artigo acerca da pressão exercida pela subida do nível médio do mar. “O que é expectável é que nalguns casos esse fenómeno vai aumentar as taxas de sismicidade e noutros vá diminuir. Agora, onde é que estes fenómenos vão acontecer, aí é preciso olhar com cuidado”, sustenta a investigadora portuguesa, apontando para a necessidade de mais investigação. “Os autores [do artigo] chamam a atenção para a necessidade de monitorizar, modelar e perceber melhor estes fenómenos quantitativamente.”
Adiantar e atrasar o relógio sísmico
Marco Bohnhoff explica que a pressão acrescida do maior volume de água, vindo do degelo, vai ter efeitos opostos consoante a falha geológica existente. Nas falhas distensivas, quando duas placas estão a separar-se, e nas falhas desligantes, onde uma placa se move lateralmente em relação à outra, a pressão a mais da subida do nível médio da água terá a tendência de acelerar sismos que estejam perto de ocorrer. Ou seja, o ciclo sísmico irá adiantar-se.
Pelo contrário, em falhas compressivas, associadas a zonas de subducção, em que duas placas estão a dirigir-se uma contra a outra e uma delas afunda-se (em processos que ocorrem ao longo de milhões de anos), a pressão a mais da água terá tendência a atrasar a produção de sismos. “O aumento da pressão faz com que as duas placas se apertem mais”, diz o investigador, o que adia a ocorrência do sismo. Mas como a pressão continua a acumular-se, o sismo “acabará por ser mais forte”.
Apesar destas tendências, Marco Bohnhoff avisa que não é possível fazer previsões. “Ninguém pode prever a ocorrência de sismos específicos, e nesse sentido o nosso modelo também não ajuda. O que ele propõe é que em média, a subida do nível do mar irá ter um efeito global. Por isso, haverá mais energia libertada por sismos”, diz.
Mas para ajudar a testar aquela hipótese, o investigador e a sua equipa estão actualmente a estudar a sismicidade na região do mar da Mármara, na Turquia, que banha Istambul, onde há ocorrência cíclica de sismos importantes, com uma média de 250 em 250 anos. O último ocorreu em 1766, há 258 anos. Com a ajuda de técnicas de processamento, da inteligência artificial e de machine learning, os cientistas estão a conseguir produzir uma relação entre as marés e a probabilidade acrescida de um grande sismo.
“Sabemos que há mudanças no nível médio do mar de um metro, causadas pelas marés e por tempestades”, descreve Marco Bohnhoff, adiantando que quando o nível médio do mar da Mármara atinge um máximo, o número de pequenos sismos aumenta. “Quando há mais pequenos sismos, a probabilidade de haver um grande sismo é também um pouco maior”, explica, “mais um ou dois por cento comparado com quando o nível médio do mar é menor”.
O objectivo de fundo do investigador é conseguir desenvolver um sistema de previsão de sismos, tal como o sistema de previsão meteorológico que determina probabilidades de vir a haver chuva nos próximos dias: “Isso é algo que não podemos fazer hoje [para o risco sísmico], mas é algo que estamos a tentar estabelecer a partir da nossa pesquisa.”