Merlin Sheldrake: “Quanto mais se estuda o mundo vivo, mais se percebe que viver sozinho não é uma opção”
Os fungos resolvem problemas, manipulam organismos, reciclam nutrientes que voltam aos ecossistemas. Em A Vida Secreta dos Fungos, Merlin Sheldrake faz destes seres a malha onde estamos entretecidos.
Da caça às trufas aos cogumelos mágicos, da simbiose dos líquenes à admirável fermentação das leveduras, A Vida Secreta dos Fungos: Como Constroem o Mundo, Mudam o Nosso Presente e Moldam o Futuro (Editorial Presença) vai revelando ao leitor como é que os fungos estão infiltrados e conformam o mundo vivo, e também de como nos tocam, nos transformam e nos obrigam a repensar relações. “Os fungos estão em toda a parte, mas é difícil vê-los. Estão dentro de nós e à nossa volta. Mantêm-nos e a tudo de que dependemos”, descreve Merlin Sheldrake, autor do livro, logo na introdução.
O biólogo e micólogo britânico estudou fungos micorrízicos numa floresta tropical no Panamá, durante o doutoramento, mas o seu livro é uma tentativa de alcançar – tal como uma hifa de um fungo em crescimento – as várias extremidades que este reino da vida ocupa nos ecossistemas, nos nossos imaginários e até no potencial que tem para ajudar-nos a resolver alguns dos problemas mais prementes da actualidade, como a poluição.
O título original da obra, Entangled Life: How Fungi Make Our Worlds, Change Our Minds and Shape Our Futures, traz à tona uma ideia cara a Sheldrake, o da vida entretecida, enredada, numa conversa entre compositores e decompositores, de simbioses e competições, em que nenhum organismo existe ou prospera no vácuo. “[Na biologia], temos que pensar muito mais sobre relações e desenvolver ferramentas para olhar para as relações e interacções”, diz o autor, numa entrevista por videoconferência. “Isso leva-nos a uma visão mais holística do mundo, em que nem sempre é possível compreender o mundo dividindo-o em partes cada vez mais pequenas.”
No início do livro diz que os fungos mudaram a sua forma de ver o mundo. Como?
De várias maneiras. Os fungos recordam-nos da interconexão do mundo vivo. Eles formam redes vivas que incorporam o princípio básico da ecologia, que é a relação entre os organismos e os seus ambientes, e entre organismos e outros organismos. Eles mostram que não é necessário ter um cérebro para resolver problemas complexos. Por isso, ajudaram-me a afrouxar as minhas suposições centradas no cérebro. Os fungos ensinam que toda a vida é um processo. O mundo vivo não é feito de coisas, mas de processos que se desenrolam no tempo. E os fungos recordam-me disso porque têm uma forma bruta, muito aberta. Não existe um plano corporal. Não há sentido em falarmos de uma forma adulta do fungo. Devido à sua exploração contínua e aberta, eles mostram que toda a vida é um processo e não algo fixo. Eles revelam muito acerca dos ciclos do mundo vivo. No mundo vivo nada é desperdício, devido à sua capacidade de decomporem e transformarem a matéria.
O que são os fungos?
Os fungos formam um reino da vida, uma categoria de organismos mais ampla tal como a dos animais ou das plantas. Há muitas formas diferentes de ser um fungo. Eles não fazem fotossíntese como as plantas. Portanto, precisam de encontrar alimentos e comê-los. Os fungos tiveram muitos papéis na história da vida, eles são brilhantes em estabelecer relacionamentos com outros organismos. Muitas dessas relações fúngicas, simbióticas, alteraram as possibilidades disponíveis para a vida e para a evolução na Terra.
Um grande exemplo é a relação entre fungos e plantas. Os fungos simbióticos ajudaram os antepassados das plantas a saltarem da água para a terra, crescendo dentro e ao redor de suas células e agindo como se fossem um sistema radicular durante dezenas de milhões de anos, até as plantas desenvolverem as suas próprias raízes. Portanto, toda a história da vida na Terra que se seguiu só existe devido a esta surpreendente relação. Eles são decompositores prodigiosos, com uma capacidade incrível de decompor e recompor as substâncias, como a madeira. Sem a actividade dos fungos, não teríamos o ciclo de nutrientes que sustenta grande parte da vida.
Um dos temas que atravessa o livro são as redes de micélio dos fungos, que conectam as árvores e até podem transportar bactérias, qual o seu papel?
As redes de micélios são a forma pela qual os fungos se alimentam. Os fungos não colocam o alimento dentro do seu corpo, eles colocam o corpo dentro do alimento e o micélio é uma forma eficaz de fazer isso. Quando estão a explorar o ambiente, procuram nutrientes e, quando os encontram, proliferam dentro dos nutrientes. Eles ajudam a criar solo decompondo a matéria orgânica, como a madeira ou cadáveres de animais. Depois de o solo ser criado, as redes de micélio ajudam a estabilizá-lo. Além disso, também se comportam como sistemas circulatórios dentro do solo, movendo nutrientes de um lugar para outro. As redes fúngicas também fornecem um sistema de transporte para outros organismos, como as bactérias.
Fala-se muito da wood wide web, onde as árvores de uma floresta estão conectadas entre si através dos micélios, trocando nutrientes e talvez outro tipo de informação. Mas no seu livro, e enquanto micólogo, focou-se nos fungos e nos micélios, que são também criaturas com agência. O que muda acerca do nosso entendimento da wood wide web quando se pensa a partir do ponto de vista dos micélios e não das árvores?
Muitas coisas mudam. A wood wide web é uma metáfora usada por alguns para transmitir a ideia de que as plantas e os fungos podem viver em redes sobrepostas compartilhadas, onde um fungo se pode conectar a mais do que uma planta e uma planta a mais do que um fungo. Mas a wood wide web é uma metáfora vinda da informática e, em geral, supõe-se que as plantas são os routers da rede e os fungos equivalem aos cabos que conectam os routers à rede. Isso é muito limitante porque faz com que os fungos pareçam passivos, já que apenas estabelecem as ligações entre as plantas.
Por isso, gosto de inverter a perspectiva e pensar nos fungos como partes activas do sistema, porque são organismos com vida própria, com agendas evolutivas próprias. Eles têm muito controlo sobre o sistema, sobre como o material se movimenta nas redes. Eles podem redireccionar o material e são responsáveis por forragear alimentos no solo. Ao pensar no sistema do ponto de vista dos fungos é mais fácil entender como, em algumas situações, os fungos podem mover nutrientes entre as plantas. Se pensarmos nisso do ponto de vista da planta, temos a pergunta: porque é que essa planta fornece nutrientes à outra, um potencial concorrente? Mas do ponto de vista do fungo, como precisa das plantas para fornecer energia na forma de açúcares e gorduras, faz sentido ter mais do que uma planta parceira e, potencialmente, ajudar a manter todas as parceiras vivas.
Aborda o potencial e a limitação de analogias, como quando se compara o micélio ao cérebro humano, para fazer novas perguntas e elaborar novas teorias sobre esta área da ciência. Enquanto biólogo, como vive essa tensão?
Quando usamos a linguagem, estamos a usar metáforas e analogias. Não acho que seja possível optar por usá-las ou não as usar. Grande parte dos cientistas lida com fenómenos que não se podem observar directamente com os sentidos. Por isso, precisamos de metáforas e analogias para verter esses conceitos em formas com as quais possamos trabalhar com a nossa imaginação. Esses conceitos, analogias e metáforas podem funcionar como uma espécie de andaime que dá suporte para pensar e construir hipóteses. Portanto, são muito importantes.
Mas acho essencial recordar que devemos tentar não confundir as nossas metáforas e analogias com a verdade, com o que realmente está a acontecer. Acho que também é importante usar uma variedade de metáforas e analogias diferentes, porque elas podem alimentar-nos de formas diferentes. Gosto de ter uma dieta equilibrada de narrativas e de usar metáforas e analogias como ferramentas que se podem ter numa caixa. Mas acho que há um problema quando nos esquecemos de que estamos a usar metáforas e analogias e consideramos as nossas histórias como verdades absolutas. E também temos um problema quando não usamos uma gama suficientemente ampla de metáforas e analogias, porque dessa forma limitamos a nossa compreensão do mundo vivo.
Refere que existe uma falta de investimento que se faz no estudo da micologia. Se tivesse dinheiro à vontade, que tipo de pesquisa queria ver realizada?
Temos conhecimento sobre uma boa parte das coisas fora de série que os fungos podem fazer, mas não sabemos muito sobre como eles fazem aquilo que fazem. Portanto, gostaria de ver muito mais trabalho sobre como os fungos processam a informação. Há muitas pesquisas que, para observarmos, para vermos em detalhe, conduzimo-las no laboratório. Mas os fungos comportam-se de uma forma muito diferente no laboratório. No entanto, é muito difícil estudar o que eles estão a fazer no solo. Portanto, são necessárias novas tecnologias e novas maneiras de obter imagens de fungos para que possamos entender melhor o que eles estão a fazer lá fora, no ecossistema movimentado do mundo.
Neste momento estamos a enfrentar três grandes crises ligadas ao planeta: a perda da biodiversidade, as alterações climáticas e a poluição. Como é que os fungos podem ajudar?
Os fungos micorrízicos, que vivem dentro e ao redor das raízes das plantas, situam-se no ponto de entrada de carbono no solo, e o solo é uma grande residência para o carbono. Os fungos fornecem nutrientes às plantas e as plantas fornecem energia aos fungos na forma de compostos que contêm carbono, como açúcares e gorduras. Portanto, as plantas estão a empurrar o carbono para as suas redes fúngicas. Essas redes agarram no carbono e parte dele é libertado e entra no solo, e a outra parte é usada para o crescimento das redes. Assim, os fungos estão a estabilizar o carbono no solo. Se pudermos aproveitar o poder desses fungos micorrízicos para colocar carbono no solo e mantê-lo lá, então haverá muitas formas de ajudar a lidar com os problemas das alterações climáticas. Isso pode passar por algum tipo de gestão do solo, de agricultura e gestão das florestas.
Os fungos sustentam tanto da biodiversidade global e desempenham um papel tão integral em toda a biosfera... Mas não se ensina muito sobre isso. Apesar de formarem um dos reinos da vida, eles não recebem a atenção merecida que um reino deve merecer e estão, em grande parte, ausentes dos programas de conservação. Se começarmos a incluir os fungos nesses programas, poderemos pensar, do ponto de vista dos fungos, sobre como conservar ou restaurar os ecossistemas.
Os fungos são feiticeiros da química. Há alguns poluentes que podem decompor. Alguns fungos podem viver em petróleo bruto, alguns podem decompor hidrocarbonetos poliaromáticos e alguns podem decompor alguns plásticos. Se encontrarmos formas de redireccionar alguns desses fluxos de resíduos poluentes para biorreactores de fungos, com as condições certas, os fungos poderão ser capazes de transformar os resíduos em algo menos venenoso e prejudicial, ou até mesmo em algo útil – essa seria a situação ideal.
O livro aborda vários tipos de colaborações associadas aos fungos e o título original traz esta ideia de vida entretecida, vida enredada. Quão entretecida é a vida?
A vida está completamente entretecida, não há maneira de qualquer organismo existir isoladamente. Quanto mais se estuda o mundo vivo, mais se percebe que viver sozinho não é uma opção. Nós, por exemplo, temos microbiomas dentro e ao redor do nosso tubo digestivo, temos micróbios que vivem na nossa pele e na fronteira dos nossos orifícios, e não conseguiríamos fazer o que fazemos sem eles. Muitas bactérias têm pequenas bactérias no seu interior. Até mesmo os vírus grandes podem ter vírus menores dentro deles. A vida é uma relação e a relação é a menor unidade de análise do mundo vivo. Portanto, vivemos num mundo de interdependência e troca íntima e recíproca. É uma espécie de grande orquestra de organismos que trabalham juntos para criar o que chamamos de vida.
Mais da metade dos minerais que existem no planeta foi produzido por organismos vivos em algum momento no passado. Por isso, até mesmo muito do que consideramos pertencer ao domínio da geologia é, na verdade, [fruto de] um fenómeno biológico. O ambiente terrestre não é apenas uma espécie de pano de fundo passivo para a vida dos organismos vivos, ele é em si mesmo criado por organismos vivos e os organismos vivos continuam a viver nesse mundo que já foi criado por organismos vivos.
Fala que a biologia é inerentemente ecologia, dado que cada organismo é em si um mundo de organismos e as suas relações. Em que medida é que isso transforma o estudo da biologia?
Torna muito mais difícil usar o conceito de individualidade de uma forma irreflectida. Temos que pensar muito mais sobre relações e desenvolver ferramentas para olhar para as relações e interacções. Isso leva-nos a uma visão mais holística do mundo, em que nem sempre é possível compreender o mundo dividindo-o em partes cada vez mais pequenas. Temos de pensar em como essas partes estão a trabalhar juntas de formas potencialmente surpreendentes e imprevisíveis.
Como começou o seu fascínio por fungos?
Sempre me interessei pelo mundo vivo. O meu pai é biólogo e incentivou-me a mim e ao meu irmão a interessar-nos pelas muitas vidas que se manifestavam ao nosso redor. Quando era pequeno, ajudava o meu pai no jardim. Agarrava no lixo da cozinha e despejava-o na pilha de compostagem. Meses depois, ajudava a retirar o solo produzido para colocá-lo nos canteiros de flores. Questionava-me: “Como era possível que as cascas de banana e de laranja se transformavam em solo?” O meu pai explicou-me que isso acontecia porque existem organismos, como os fungos, que são capazes de transformar a matéria de um estado para outro. Isso pareceu-me um superpoder extraordinário, ainda me parece. Essa foi uma das razões para começar a pensar sobre fungos e micróbios. Mas o meu estudo formal sobre os fungos só começou na universidade, quando iniciei o meu doutoramento em ecologia tropical e escolhi estudar as relações entre os fungos micorrízicos e a floresta tropical. E quanto mais se descobre sobre os fungos, mais se quer aprender, eles são infinitamente fascinantes.
Qual é o seu fungo favorito, neste momento?
Tenho estado muito interessado nas bufas-de-lobo [no inglês, puffballs]. Tenho aprendido muito sobre estes cogumelos e como diferentes sociedades tradicionais os têm usado para fins medicinais.
A partir de exemplares do seu livro, fez crescer cogumelos e produziu bebidas alcoólicas com ajuda de leveduras. Há qualquer coisa de performativo, artístico e até ritualístico nesses gestos. Que tipo de expansão é que essas acções lhe proporcionam e em que medida é que o aproximam dos fungos?
Gosto de me relacionar com os fungos e de interagir com os fungos vivos, é uma forma de me aproximar da vida fúngica e de pensar sobre o que é que eles necessitam num determinado momento, de como é que se pode fornecer as condições de que precisam para prosperar. No caso do meu livro, achei que seria engraçado comer as minhas palavras e foi divertido todo o processo de cultivar fungos nele. Mas também queria colocá-lo de volta para os ciclos metabólicos que vêm descritos nas suas páginas. Foi uma forma de oferecer o livro de volta aos fungos, que originaram o tema do livro. E pareceu-me uma forma importante de me recordar de que as nossas palavras e as nossas acções ocorrem num mundo onde os fungos existem há muito mais tempo.
É incrível trabalhar com fungos e fermentação. Quando se fermenta algo, estamos a trabalhar com grandes populações de micróbios que ascendem e desaparecem sob o peso uns dos outros. E isso é um pequeno resumo de como grande parte da vida ocorre. O que é bom na fermentação é que se pode sentir sabores diferentes tendo em conta o sistema meteorológico dos químicos que estão numa determinada jarra de fermentação. Acho que essa é uma forma de entender o tanto que o mundo é criado a partir dos organismos que participam na vida.