Tanto ao mar, tanto à terra: Um roteiro para comer, beber e amar Sesimbra
Sesimbra é sinónimo de praia, mas também de abundância – de pão de forno a lenha, de queijo de ovelhas de pasto, de vinhos que fogem ao rebanho e do “melhor peixe do mundo”. Que mais pede o Verão?
“É preciso saber não o estragar”, diz o mestre da grelha, sem tirar os olhos daquilo que está a fazer. O pronome refere-se ao peixe e o estrago é fácil, quando não se domina a arte da brasa. O homem, de idade avançada, gere o seu assador com rigor de engenheiro, numa das ruas tortas e estreitas do centro de Sesimbra. Os braços tisnados pelo sol e pelo calor dos tições denunciam uma vida anterior como pescador, e as boas horas que agora passa diante do fogo.
Aterra-lhe uma gaivota ao lado e ele partilha a riqueza, manda-lhe uma sardinha, que o pássaro engole de bico aberto, cabeça levantada, em três segundos. Atira outra, que leva o mesmo tratamento, e o bicho logo levanta voo. Quem cresceu longe do mar precisa de perguntar: O que vai a gaivota fazer de seguida? “Vai levá-las para o ninho, para alimentar as crias”, responde o homem. “Aquilo tem uma baba que desfaz tudo, o peixe sai já moído.” E as espinhas? “Até as espinhas.”
Deve ser por isso que é uma ave incomestível, atira este ignorante. “Quem diz?”, corta o homem a direito, com um sorriso ladino. “Muita gaivota comi eu, no tempo da fome.” Fica a dúvida: história para enganar turistas ou testemunho sincero?
À distância de várias décadas, numa terra onde o perfume do peixe fresco se confunde com o cheiro do mar, custa a imaginar fome – diante de águas tão férteis, rodeadas de serra que também dá pasto, vento que alimentava moinhos de cereal e solo de onde brota boa fruta e bons hortícolas. Fernando Costa, que pertence a outra geração e a outra ponta do concelho de Sesimbra, confirma. “Felizmente, nunca tive de comer gaivota, mas houve tempos em que isso era comum, sim.” Ele que, tal como Carla, sua mulher e sócia no restaurante Mania do Peixe, cresceu num contexto onde “faltava muita coisa” e teve de começar a trabalhar na restauração aos 13 anos. “Não fomos nós que escolhemos – esta vida é que nos escolheu a nós.” De caminho, sentar-nos-emos à mesa com Carla e Fernando. Mas fiquemos por Sesimbra, para já.
Mar generoso, mesa farta
Vivemos tempos diferentes, felizmente. Na Sesimbra de hoje, desagua-se com o sentido no mar. Seja pela praia ou pelos prazeres da mesa que o seu peixe e demais riquezas proporcionam. E nem é preciso ser muito afortunado para comer bom peixe na vila que se gaba de ter o melhor do mundo. Por 8 euros (talvez um pouco mais em época alta) se come uma dose justa de sardinhas na Tasca do Isaías, com o valor acrescentado da tipicidade.
Importa sublinhar que “tasca” é título, e não “conceito” comercial. O serviço é informal, a sala é apertada e buliçosa e a cozinha fica na rua, uma espécie de showcooking sem fogo-de-vista, diante da esplanada de mobiliário dobrável. A ementa é curta, essencialmente focada no peixe fresco na brasa – salongo, sargo, choco, espadarte e besugo são alguns dos candidatos à grelha – e não há café nem multibanco, mas também não há pressa. “Sente-se e coma primeiro, depois já vai levantar dinheiro”, tranquiliza o patrão. Conselho de amigo: chegar cedo e evitar os fins-de-semana, já que não aceitam reservas e a espera é tão garantida como a qualidade da comida.
Na eventualidade de não se querer esperar, ninguém ficará à míngua em matéria de peixe, com a quantidade de casas que fazem do assador altar. Sem ter de andar muito, encontra-se bom peixe e marisco, incluindo arrozes, caldeiradas e cataplanas, no Filipe e no O Velho e o Mar – a título de exemplo.
Já quem pretender fugir aos clássicos sem abrir mão da vista para a praia encontrará porto seguro no O Batel, a aventura mais recente dos donos do Zagaia – casa que não leva sequer cinco anos e já se tornou um farol da cozinha autoral na região. No comando executivo de ambas as cozinhas está Paulo Carvalho, um dos três sócios, que se fez cozinheiro na Casa Mateus, outra instituição local, e depois esteve oito anos em Lisboa com Kiko Martins, onde ganhou “bagagem a criar cartas e a abrir restaurantes”.
O Batel nasceu da necessidade de servir os clientes que tinham de recusar no Zagaia, onde têm apenas 24 lugares – “e no Verão servimos 100 refeições por dia”, afiança Paulo. A isso juntou-se a vontade de estar mais próximo do mar e de ter uma esplanada. E a inquietude de Paulo também terá tido a sua influência, já que, embora mantenham o estilo – cozinha moderna de matriz portuguesa e forte inclinação marítima –, aqui optaram por “uma abordagem mais bistrô, fusão ibérica, incluindo algumas carnes”. Claro que há pontos de contacto entre os dois restaurantes, e o ceviche peruano (que, no dia, calhou ser de corvina) com puré de batata-doce, um dos pratos mais procurados, é disso exemplo. Mas O Batel nasceu para diferenciar-se do “irmão”. A carta é, desde logo, mais curta, mas competente e apetrechada.
As ostras do Sado são uma bomba de frescura, com sucessivas camadas de sabor graças à junção de maçã verde, gengibre, salicórnia e aquachile de pepino. O camarão-tigre, uma excepção ao perfil territorial da casa, brilha com apenas molho de manteiga, malagueta, alho tostado, coentros e um ovo frito a ligar tudo isto à terra. E o arroz de polvo situa-se entre a paella e o arroz de forno, um prato cheio de cremosidade e reconforto, enriquecido de sabor com lascas de presunto ibérico e aioli de pimentão fumado.
E das sobremesas, apenas três, ganha especial protagonismo a versão própria do crème brûlée, que parece pensada para adoçar dias de Verão, pela espuma de goiaba e lima kaffir, frescura para equilibrar a densidade do creme, que, como se costuma dizer dos vinhos, tem final de boca longo e persistente. Sair daqui feliz não será coisa rara.
Dos 0 aos 220 em 30 minutos
Para quem não pensa com o estômago, Sesimbra é sobretudo sinónimo de praia. E da felicidade de dias longos, passados, presentes ou futuros, entre o areal e o mar tranquilo, ideal para famílias com crianças. Isto nos quase dois quilómetros de areia branca que, na verdade, são duas praias – a da Califórnia, a nascente, e a do Ouro, a poente. Se a ideia for encontrar sossego, isso já implica sair da vila, pelo lado do porto de abrigo, e avançar um par de quilómetros pela estrada de terra, para achar o trilho íngreme que leva à praia da Ribeira do Cavalo.
Também se poderá encontrar algum sossego subindo pelo emaranhado de ruas antigas da vila. Sesimbra está airosa, com ruas arranjadas, património de cara lavada, murais que evocam a tradição piscatória e muito do edificado reabilitado – incluindo uma inauguração recente, o Centro Cultural Costeiro, no mesmo largo acanhado onde já se encontrava, desde o século XIX, o Grémio Cezimbrense, cuja programação cultural abrange as várias artes, nomeadamente a música, mas também comédia stand-up, tertúlias, histórias infantis e exposições de pintura. Depois do mar e da mesa, vale sempre a pena ir espreitando o que lá se passa.
Outro passeio que enriquece qualquer roteiro é a subida ao castelo de Sesimbra. Havendo vontade de trocar os chinelos por botas de caminhada, são 30 a 40 minutos a subir, para vencer um desnível de 220 metros (de carro, é coisa para 10 minutos). Felizmente, há cafetaria com esplanada no topo, para recuperar o fôlego. A subida pode justificar a visita ao centro interpretativo, à igreja intramuros e à alcáçova, mas é pela vista que aqui se vem parar. Sobre a praia, em primeiro plano, mas também em redor, sobre a muralha de serra que rodeia a vila – e que é também uma das suas fontes de riqueza.
Pão, pão, queijo, queijo
Falemos dessas riquezas. Se for sábado ou domingo, quem entra em Sesimbra pela N378 – aquela que passa pelo festim de bóias e insufláveis da icónica Loja da Mariazinha – encontrará a papinha toda feita na Moagem de Sampaio. Em redor deste núcleo museológico há um mercado de produtos locais todos os fins-de-semana, das 09h às 13h. Lá se encontra frutos e vegetais da época, a tradicional farinha torrada, o queijo da Azoia e o pão caseiro de forno a lenha que virou marca registada.
As padarias resistentes no concelho são ainda em número considerável. Há até um website dedicado ao assunto, onde estão listadas 17 padarias de fabrico tradicional, a maioria espalhada no triângulo Santana/Alfarim/Azoia. Cada cabeça sua sentença, e cada sesimbrense terá o seu favorito, mas nenhum forasteiro se deve meter no campeonato sobre qual o melhor pão. A solução é pedir recomendações e confiar.
Por recomendação da chef Nikita Polido, do restaurante Celmar, a estrada leva-nos à padaria de Avelino Martelo Marques, cujo posto de venda é um postigo discreto, a meia dúzia de passos da N377, na aldeia de Caixas. Não vale a pena ir com a pretensão de fazer conversa, que o senhor Avelino, de 80 anos, não é pródigo na paciência para explicar aquilo que faz. “Olhe, ponho a farinha!”, e mais não diz. A atenção está onde mais importa – na massa, na lenha, na temperatura do forno. E em servir os clientes habituais, que atende até às 13h. O pão, esse está à altura da expectativa.
Para dar-lhe bom uso, há que tomar a direcção do Cabo Espichel e, mais ou menos a meio caminho, encostar na Azoia. É aí que Sabino Rodrigues produz os seus queijos de ovelha, “uns oitocentos por dia”, estima, entre fresco, requeijão, amanteigado e um curado que pode ir até mês e meio de cura. A seu encargo tem um rebanho com 600 cabeças, boa parte da raça autóctone saloia. “São as melhores para fazer queijo”, explica. “Enquanto outras dão dois litros por ordenha, a saloia dá meio litro – mas mais gordo, com menos soro, portanto mais queijo por menor quantidade de leite.”
Apanhar Sabino por aqui pode não ser fácil, até porque aquilo de que ele mais gosta é de andar com as suas ovelhas pelos pastos que rodeiam o Cabo Espichel. Mas nada se perde – colado à queijaria está o minimercado Novo Regresso, que também pertence à família, e lá se pode comprar queijos, assim como o tal pão local, vinhos da região e tudo o resto que se pode encontrar numa loja deste tipo – incluindo, na devida época (Setembro/Outubro), a maçã camoesa, também ela uma tipicidade do território.
“Um palco maravilhoso”
Além de tudo isto, este chão generoso também dá uvas. E que uvas. É certo que dificilmente se associará Sesimbra a vinhos, e esse é um dos motivos por que importa fixar o nome Herdade do Peru.
O caminho para chegar à casa grande da propriedade, já dentro de portões, é longo e pode até parecer uma desvantagem. Até que o palacete setecentista surge ao fundo de uma alameda arvorada, primeira impressão promissora, e, posto o primeiro pé fora do carro, se constata a ausência de ruído que perturbe os doces sons do campo. Afinal, os quatro quilómetros de terra batida que ficaram para trás criam uma barreira que deixa o mundo exterior bem longe. Para dar uma noção de escala, basta este número: 350 hectares.
E não chegámos ainda ao elemento mais marcante. É preciso entrar no palacete – decorado como aquilo que é: uma casa de família, cheia de memórias entre a profusão de obras de arte – e sair do outro lado, para encontrar a verdadeira essência do sítio. Um jardim à francesa, no plano seguinte a mancha de bosque e de vinhas e, lá ao fundo, sem obstáculos que perturbem a vista, o maciço da serra da Arrábida. “Um palco maravilhoso sobre esta serra linda”, introduz João Brito e Cunha, proprietário de tudo isto desde que comprou a familiares seus em 2016.
A história da ligação de João a este vasto pedaço de terra começou com o seu avô Manuel, que comprou as várias parcelas dos Foros do Peru – para isso, conta, “teve de fazer 126 escrituras” –, recuperou a casa da ruína, plantou vinha, reconstruiu a adega. João, que era um de 50 netos, há muito que tinha planos para a herdade.
“Desde os meus 5, 6 anos que dizia, ‘Esta casa um dia vai ser minha’.” Começou com 30 hectares e, compra a compra, foi reconstruído o puzzle da obra do avô, do qual restam ainda 100 hectares na mão de irmãos e primos. O mesmo aconteceu ao recheio da casa, que João e os filhos têm vindo a reagrupar, através de compras em leilão. Questionado sobre quanto tempo levou a juntar tudo, é o filho João Maria que responde: “Ainda não terminámos.” Com um indisfarçado sorriso de satisfação, anunciam que acabam de comprar mais uma das casas da propriedade, para expansão da oferta de alojamento.
Para já, a Herdade do Peru dispõe de sete suites, de diferentes configurações e dispostas em torno de um pátio calcetado, que aproveitam o espaço das antigas oficinas da herdade. Em comum têm a abundância de luz natural, com janelões a fazer de parede do fundo, um pequeno pátio privativo, minipiscina de imersão e a decoração, que junta elementos clássicos, mobiliário exótico, antiguidades e rusticidade chique. Sob a mesma abordagem, há ainda a Casa dos Netos, de seis quartos – que junta às comodidades uma sala de jogos e tem a particularidade de ter servido de poiso a Madonna, a propósito de uma sessão fotográfica para a revista Vogue Italia, em 2018 – e, com outros tantos, a Casa Sant’anna, mais afastada do centro nevrálgico do Peru.
Para não falar da eventualidade de abrir os espaços privados da casa grande. “Já cheguei a ceder o meu quarto para alojar convidados”, conta João Brito e Cunha. É que, importa notar este detalhe, a empresa tem na organização de eventos uma das suas principais actividades, nomeadamente casamentos, que lhes tomam a quase totalidade dos fins-de-semana mal os dias começam a aquecer. João Pedrosa, director-geral da Herdade do Peru, não faz a coisa por menos: “Isto é o Ferrari dos casamentos.” A comparação não é descabida. E não chegámos ainda à mesa de provas.
Os vinhos surgiram como um passo lógico. “Para retirar valor desta terra que amamos”, explica João Brito e Cunha, que tem também produção de cortiça e azeitona e criação de gado black angus, e faz questão de vincar não ser especialista em vinhos.
Desde o início, foi assumido o propósito de não fazer mais do mesmo que já se fazia na região. Para cumprir esse fim, nos 14 hectares de vinha em modo biológico – replantados, na sua maioria, em 2015 – crescem uvas de arinto, verdelho e alvarinho nas brancas, e, nas tintas, syrah, touriga nacional, merlot e cabernet sauvignon. E entrou aquilo a que Brito e Cunha chama “sorte”, palavra que lhe sai frequentemente durante a conversa, a par de “humildade” e “decoro”, que ostenta como um mote de família. “Tenho a sorte”, afirma, sobre a enologia, “de ter o Jorge Rosa Santos, o Rui Ferreira Lopes e o António Figueiredo”. Isto além de ter na viticultura Pedro Oliveira, “que tem um amor fantástico pelas vinhas. Sem ele isto não seria possível.”
Os vinhos, esses são equilibrados e elegantes, com a seriedade que o porte senhorial do palacete impõe, porém convidativos, aptos a uma casa que se fez anfitriã por vocação. Para prová-los, além da mesa posta diante da tal vista memorável sobre a Arrábida, pode-se sempre elevar a fasquia com almoços vínicos à mesa da família, visitas às vinhas a cavalo ou de buggy, ou passeios de barco a partir do Portinho da Arrábida. É fácil sentirmo-nos bem-vindos por aqui.
Felizes acasos
Não fazer mais do mesmo também parece ser o mantra de Cristina Antunes, advogada que trocou o seu lugar ao sol em Paris pelas vinhas soalheiras da Quinta dos Arcos, no limiar da União das Freguesias de Azeitão.
Foi por meio da advocacia que os vinhos lhe entraram na vida. Entre os seus clientes tinha a associação francesa e a internacional de sommeliers, com quem se foi interessando por este mundo. “Com eles provei muitos vinhos muito bons”, recorda. “Como não consigo comprá-los, por serem inacessíveis, decidi fazê-los.” Mas não foi só essa fasquia estratosférica que a trouxe à Quinta dos Arcos.
Dizer que o seu projecto é ambicioso é dizer pouco. Na propriedade de 77 hectares que comprou em 2013 quer ter uma casa de alojamento local com 19 quartos, dois restaurantes, lagar de azeite, retiro para escritores e, o verdadeiro motivo que a trouxe de volta a Portugal, trabalhar com jovens adultos com autismo. Isto a par de tudo o resto – o vinho, a cortiça e a azeitona de “mais de duas mil oliveiras”, com a qual pretende trazer o azeite de volta a Azeitão.
A questão do autismo é central na vida de Cristina, desde que o seu filho Harold foi diagnosticado, aos 3 anos. Fez todos os cursos que conseguiu, leu tudo o que pôde e, ao cabo de muito procurar e perguntar, apercebeu-se da falta de infra-estruturas para adultos com esta condição em França. Assim como se apercebeu do efeito que o campo tinha sobre o seu filho. “Aqui, ele está muito feliz. Mexe na terra, dá passeios, esta calma dá-lhe felicidade”, sublinha, ao volante do todo-o-terreno, por entre um bosque de sobreiros, azinheiras e oliveiras. Harold acompanha a visita, e é visível tudo o que a sua mãe acaba de dizer.
Por entre esta mancha de bosque mediterrânico, espalham-se 13 hectares de vinha em vias de certificação como produção integrada. À excepção do moscatel, a escolha de castas, que contou com ajuda dos tais sommeliers franceses, foge ao arranjo habitual da região – cabernet sauvignon, cabernet franc e merlot nas tintas, e a branca sauvignon blanc.
A segunda peculiaridade dos vinhos da Quinta dos Arcos nasceu de um acaso. “No início, não tínhamos produção suficiente para fazer cubas de tinto, então comprámos ânforas para experimentar.” O primeiro lote, meio a medo, foi para consumo próprio. “Ficámos apaixonados! As castas que temos dão-se muito bem com ânforas.” Resultado: metade da produção será nesses recipientes, mal entre em funções a nova adega, projectada por Rodolphe, o outro filho de Cristina, que é arquitecto e a acompanha na gestão da propriedade.
O segundo acaso deu-se na sequência de uma catástrofe: com o escaldão de 2018, perderam a colheita. Contudo, as videiras voltaram a dar fruto e, por Dezembro desse ano, tinham nova safra, na qual descobriram o fungo botrytis cinerea. O tal que, com as condições certas, permite fazer vinhos de colheita tardia. Calhou-lhes em sorte que o vinho ficou realmente bom – e hoje, os late havest são uma parte considerável do portefólio da casa. “Afinal, nós não decidimos nada”, nota Cristina, com uma certeza: “Se sem nada conseguimos fazer estes vinhos, com condições conseguimos melhor. Queremos atirar ao tecto, não é assim tão difícil.”
O melhor peixe do mundo
Fernando Costa também atira ao tecto, mal nos sentamos à mesa do Mania do Peixe, no Meco. No copo, verte o Trois Atlântico, um dos seus brancos de eleição no que toca aos vinhos da região, companhia magistral para o desfile de maritimidades que se segue: lapas, sapateira, “pipocas” de polvo, concha de camarão gratinada, pica-pau de atum, sopa de santola. E não saímos ainda do capítulo das entradas.
O Mania do Peixe é um projecto familiar de Fernando e Carla, sua mulher, que trabalham juntos há uns bons anos. Estão aqui há 12, mas antes já tinham tido outra casa na Aldeia do Meco, na altura mais focada na comida italiana. Aqui, com tanto mar de frente, não poderiam senão virar-se para peixe e marisco, que também têm que ver com as suas raízes. Cresceram ambos ali perto e são amigos de pescadores e mariscadores, além de haver um familiar que tem uma traineira e lhes garante fornecimento, tanto para o restaurante como para a peixaria que acabam de abrir em Azeitão.
O restaurante fica num socalco sobre a praia, com vista directamente virada para o mar, com o pôr-do-sol ao centro. Luz é coisa que não falta a esta sala que, junto com a esplanada, senta 80 pessoas. À entrada, são as bancas que chamam a atenção: bruxas, ostras, berbigão, amêijoas. Voltado para a sala, outro expositor exibe a apanha do dia, que pode trazer imperadores, pregados, douradas, corvinas de tamanhos impressionantes. De anzol ou de arte xávega, sempre que possível. “Vêm com a espinha mais intacta, e a carne também”, explica Carla.
A política de produto local aplica-se tanto ao mar como à terra, com legumes de produtores locais, queijos de Sabino Rodrigues, pão da Azoia. E à lagoa de Albufeira, outra riqueza local, quer como praia (que rivaliza com a do Ouro e a da Califórnia em condições para pais com filhos pequenos), quer como fonte de alimento. De lá vem mexilhão, amêijoa, berbigão, mas, afiança Fernando, “é excelente tudo o que cresce naquelas águas, até sardinha e carapau lá vai”.
Quer Carla, quer Fernando, falam com paixão de tudo o que vem das águas de Sesimbra, que, repete ele várias vezes, têm “o melhor peixe do mundo”. “Ele é bom em todo o país, mas aqui é diferente.” Porquê? “Pela maneira como é tratado. Os barcos saem com baldes de gelo, e o peixe é posto em água salgada gelada. Ele chega à lota e ainda vem ‘vivo’, até no cheiro se nota a diferença.”
Se o assunto for a grelha, a nobreza da matéria-prima dispensa invenções. Mas há que puxar também a brasa aos pratos de tacho, como a massada à pescador, copiosa em pedaços de corvina e tamboril, cotovelinhos al dente e um caldo substancial, avivado com hortelã em abundância.
Em querendo continuar a pairar, pedem-se as farófias da Avó Zé, e termina-se a refeição nas nuvens. É nesse momento que tudo se desliga e as férias começam a sério.