O lince-ibérico já não está em perigo. Qual é o segredo desta história de sucesso?
População de linces-ibéricos não pára de crescer e, há dez dias, a espécie deixou de estar classificada como “em perigo”. Técnicos dizem que envolver a comunidade é uma peça-chave para a conservação.
Quando técnicos portugueses e espanhóis se reuniram em 1998, em Santiago de Compostela, para analisar os censos do lince-ibérico (Lynx pardinus), a conclusão não poderia ser mais preocupante: o felino selvagem estava à beira da extinção. Após duas décadas de esforço conjunto para a conservação deste animal emblemático da Península Ibérica, os resultados estão à vista: a população não pára de aumentar e, há dez dias, a espécie deixou de estar classificada como “em perigo”. O que está por trás deste caso de sucesso?
Francisco Javier Salcedo Ortiz, coordenador do projecto Life Lynx-Connect, que liderou a acção transfronteiriça de conservação da espécie, explica ao PÚBLICO que uma das “chaves do sucesso” foi conseguirem reunir diferentes entidades e grupos à volta do lince-ibérico. “Isto permitiu que todos se sentissem parte do projecto, se sentissem importantes e lutassem por um objectivo comum: proteger o lince-ibérico”, explicou Javier Salcedo Ortiz numa videochamada com o PÚBLICO.
O êxito do projecto, portanto, resultaria da sua natureza colectiva e reticulada. Por outras palavras, não bastam biólogos, veterinários e tantos outros excelentes técnicos a trabalhar sozinhos para salvar o Lynx pardinus. É preciso articular com universidades, empresas e políticos. E é essencial envolver a comunidade, sensibilizando caçadores, agricultores, proprietários florestais, criadores de gado e alunos.
“Eu próprio andei [mascarado], com uma cabeça de lince enfiada até aqui [ao pescoço] num teatro em Mértola para sensibilizar as crianças. O público do primeiro ciclo é o mais ávido e o que mais bebe a mensagem, passando-a depois aos pais e aos avós. As crianças dizem mesmo: ‘Não se pode fazer mal aos linces’”, conta ao PÚBLICO João Alves, técnico do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e coordenador do programa de reintrodução do lince-ibérico em Portugal.
O trabalho deu frutos. O lince-ibérico já esteve classificado como “em perigo crítico” de extinção na Lista Vermelha elaborada pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, sigla em inglês), passando em 2015 para “em perigo”. No dia 20 de Junho deste ano, foi anunciada a nova mudança de estatuto de conservação, desta vez para “vulnerável”. São boas notícias, mas a espécie continua em risco.
De espécie incómoda a protegida
Ao longo das últimas décadas, o panorama sociocultural em Portugal e Espanha parece ter acompanhado, com maior ou menor atraso, o estatuto de conservação da espécie. Em 1953, por exemplo, durante a ditadura do espanhol Francisco Franco (1892-1975), foram criadas as Juntas Provinciais para a Extinção de Animais Nocivos e Protecção da Caça. Estas estruturas permitiam, por lei, a eliminação de linces-ibéricos, entre outros carnívoros, que eram então vistos como uma peste pelos caçadores.
Hoje é crime matar um lince-ibérico. Os caçadores deixaram de poder obter a pele desta espécie protegida, mas perceberam que os felinos selvagens possuem uma importante função ecológica: regulam a população de carnívoros mais pequenos, como raposas e mangustos, espécies que os caçadores tendem a ver como rivais na competição por coelhos.
“Houve uma profunda mudança de mentalidades. Hoje os caçadores vêem o lince-ibérico como um aliado. O lince era antes perseguido e morto. Hoje é não só respeitado como valorizado positivamente, as pessoas consideram um privilégio poder partilhar o seu quotidiano com esta espécie”, afirma Francisco Javier Salcedo Ortiz.
À boleia da conservação do lince-ibérico na Península Ibérica, prosperaram ainda serviços ligados ao ecoturismo, dos pequenos hotéis aos restaurantes, passando pelos guias turísticos e outros produtos associados à espécie ou ao seu habitat. “Muitas comunidades vêem a presença do lince-ibérico no território como uma maior possibilidade de gerar rendimento”, acrescenta o responsável espanhol.
O felino bonito e o lobo mau
A conservação do lince-ibérico tem outro ponto a seu favor: a beleza. É um felino gracioso, com ar altivo, que se distingue dos gatos domésticos por, entre outras características, a presença de “barbas” e “pincéis” de pêlo preto nas orelhas. “Que felinos tão lindos... É pena não poderem ser domesticados. Se isso fosse possível, estaria na primeira linha para ter um deles,,,”, lia-se num comentário de um leitor a uma notícia do PÚBLICO.
“Claro que as características físicas do lince ajudaram na campanha [de sensibilização]. Repare: nós não temos notícia de em algum momento o lince ter atacado pessoas. Uma campanha destas com o lobo não teria os [mesmos] resultados, teria de ser feito de outra maneira, porque em termos históricos, desde a escola primária, temos a história do lobo e do Capuchinho Vermelho, em que o lobo come a avozinha”, afirma João Alves.
O técnico do ICNF frisa, contudo, que os lobos só atacam humanos numa situação extrema, se se sentirem ameaçados ou estiverem a proteger as crias. Ainda assim, no imaginário colectivo dos humanos, o lobo continua a simbolizar o perigo, ocupando um território marcado pelo medo. Nos produtos culturais, o lobo está tão estigmatizado que a sua designação inclui muitas vezes um adjectivo pejorativo: mau.
Enquanto o lince-ibérico é um animal bonito, acarinhado por muitos, Pedro Prata, líder da associação da Rewilding Portugal, nota que o lobo-ibérico (Canis lupus signatus) continua a enfrentar muitas “barreiras sociológicas”. Em causa está a forma como a sociedade reage a ataques, que vai desde a perseguição directa, através do furtivismo (caça direccionada) ou da utilização de venenos, à indirecta, ou seja, como as pessoas reiteram um discurso negativo acerca de um animal que temem.
O director executivo da Rewilding Portugal acredita que o lobo-ibérico se tornou o “carnívoro mau da fita” e que, como resultado, esta resistência sociocultural dificulta tanto a campanha mediática como os esforços de conservação.
“Passámos a olhar para o lobo como o bode expiatório de todos os problemas. O lobo-ibérico está mais ameaçado do que o lince-ibérico. O lobo-ibérico precisaria agora não só de uma campanha mediática semelhante, mas também de uma estratégia de conservação séria. Este caso de sucesso do lince-ibérico mostra que conseguiríamos o mesmo resultado com outras espécies, porque o conhecimento técnico existe”, argumenta Pedro Prata.
Não há dados actualizados relativamente à população de lobo-ibérico em Portugal. Segundo o último censo nacional, realizado entre 2002 e 2003, estima-se que haja aproximadamente 300 lobos no país, distribuídos por 63 alcateias. O lobo-ibérico (Canis lupus signatus) constitui uma subespécie de lobo-cinzento.
A população de linces-ibéricos na Península Ibérica continua a crescer. O censo total em Portugal e Espanha alcançou os 2021 indivíduos em 2023, incluindo 722 crias nascidas no ano passado. Em 2022, o valor registado foi de 1668. Em apenas três anos, a população ibérica da espécie Lynx pardinus duplicou, segundo o ICNF.
Primeiros passos em Portugal
João Alves recorre a uma analogia para descrever o caso de sucesso da recuperação do lince-ibérico: é como uma maratona por estafetas. “A conservação não é uma corrida de velocidade, é uma maratona e é feita por estafetas. Há uns técnicos que iniciaram a prova e haverá outros que darão continuidade até chegarmos à meta”, compara o biólogo do ICNF.
“O primeiro registo” desta história de recuperação, recorda João Alves, remonta ao tal encontro de Santiago de Compostela, realizado em 1998 — um seminário ibérico no qual estiveram presentes os técnicos Margarida Fernandes, Helena Ceia e Luís Roma Castro, e em que ficou óbvio que Portugal e Espanha tinham de envidar esforços para salvar o Lynx pardinus.
O declínio populacional do lince-ibérico estava, em parte, associado à escassez da sua principal presa, o coelho-bravo (Oryctolagus cuniculus), com consequência de doenças virais, da caça e do abandono das práticas agrícolas tradicionais. “Os linces podem comer quase qualquer animal, desde fêmeas de veado até ratos, mas em torno de 80% da sua dieta são coelhos. Então, se não há coelhos, não há linces”, explica Francisco Javier Salcedo Ortiz.
A degradação, perda ou fragmentação dos territórios favoritos da espécie (matagais e bosques mediterrânicos) também contribuiu para que os censos chegassem a números tão baixos no início desde século.
O projecto Life+Iberlince, parcialmente financiado pela União Europeia, procurou não só reequilibrar as populações de coelho-bravo, mas também proteger e restaurar o habitat do lince e reduzir as mortes causadas pelos humanos. O Life+Iberlince consiste num programa de conservação iniciado em Espanha em 2002 e que, em futuras edições, se estenderia a Portugal, a exemplo do que acontece agora com o Life Lynx-Connect.
Em Outubro de 2004, tem lugar uma cimeira ibérica, também em Santiago de Compostela, na qual os dois governos se comprometeram a investir na recuperação da espécie. “É o primeiro documento político dos dois países que prevê um trabalho conjunto mais intenso, planeado e organizado para salvar o lince-ibérico”, diz João Alves numa videochamada com o PÚBLICO.
Cinco anos mais tarde, em Outubro de 2009, Portugal inaugura o Centro Nacional de Reprodução do Lince-Ibérico, em Silves. A aposta na reprodução em cativeiro surge como solução quando os técnicos constatam que o habitat natural já não era suficiente para inverter a tendência de declínio da população. Nesse ano, Espanha compromete-se a ceder até 17 linces-ibéricos para a unidade algarvia, uma vez que o país não contava com indivíduos.
“Não havia linces em Portugal. Os técnicos chegaram à conclusão que a população só estava na Andaluzia, na serra Morena e no Parque Nacional de Doñana, em Espanha, e o os censos indicavam números inferiores a 100. Os indivíduos avistados na serra da Malcata no final dos anos 1970 e início dos anos 1980 – e que, de resto, justificaram que aquela zona fosse classificada como reserva natural – já eram exemplares dispersantes, foram desaparecendo e, na transição do século, o lince-ibérico já era considerado provavelmente extinto em Portugal”, explica João Alves.
O técnico do ICNF frisa a importância do advérbio “provavelmente” quando o assunto é extinção: “Só um trabalho de acompanhamento continuado, ao longo de 40 anos, sem nenhum vestígio [fezes do animal], permite dizer que está extinto”. No caso português, como este estudo por quatro décadas nunca aconteceu, não é possível dizer que o Lynx pardinus esteve alguma vez extinto no país.
Ao longo dos últimos 14 anos, mais de 400 linces-ibéricos nasceram em centros de reprodução e foram reintroduzidos em áreas seleccionadas de Espanha e de Portugal (Algarve e Alentejo). Mais de 200 indivíduos estão à solta em Portugal, todos acompanhados à distância graças às coleiras com tecnologia de rede LoRa (radiofrequência de longo alcance, mas com um consumo relativamente baixo de energia).
Uma das funcionalidades previstas pelo dispositivo, em testes desde Março pelo ICNF e pelas Infra-estruturas de Portugal, é alertar os motoristas que usem a aplicação Waze para a proximidade de linces-ibéricos. Os atropelamentos constituem a principal causa de mortalidade não natural desta espécie de felinos selvagens. O objectivo é que, após tamanho esforço para a recuperação da espécie, mais nenhum Lynx pardinus perca a vida por atravessar uma estrada.
Erosão genética
Em termos populacionais, quantidade nem sempre é sinónimo de qualidade. “No último ano, o crescimento está a ser exponencial, a espécie está a crescer a um ritmo de 20% ao ano”, afirma Francisco Javier Salcedo Ortiz. Se, por um lado, os técnicos de conservação celebram a recuperação demográfica do lince-ibérico – ainda que a categoria de “vulnerável” continue a ser preocupante –, por outro, continuam apreensivos com a baixa diversidade genética da espécie.
“Em Doñana, quando começámos, havia tão pouca diversidade genética que todos os linces eram iguais, o que significa que aquela população tinha um problema genético evidente. O trabalho no centro de reprodução permite-nos agora optimizar o perfil genético”, afirma o responsável espanhol, referindo-se à reserva natural andaluza.
À medida que a diversidade genética aumentou, graças a um trabalho criterioso de reprodução em cativeiro, subiu também a resistência a doenças. E até os padrões da pelagem começaram finalmente a variar na paisagem do Parque Nacional de Doñana, em Espanha, refere Salcedo Ortiz.
João Alves conta que, em 2009, quando Espanha seleccionou 16 linces progenitores para serem enviados para o Centro Nacional de Reprodução do Lince-Ibérico, em Silves, houve um enorme cuidado para que “não fossem irmãos uns dos outros”. O acasalamento entre indivíduos demasiado próximos do ponto de vista genético pode diminuir a resistência a doenças, deixando a espécie ainda mais vulnerável.
Em Portugal, até agora, a reprodução dos linces-ibéricos tem sido “eminentemente quantitativa”, define João Alves. Quando estamos à beira da extinção, a preocupação dos técnicos consiste em distanciar-se o máximo possível de uma situação de irreversibilidade. Agora, à medida que os números começam a subir – e que a própria unidade em Silves começa a ceder indivíduos que já perderam a capacidade reprodutora, como os dois indivíduos que passarão este ano a viver no Parque Biológico de Gaia –, chega-se a um patamar em que a qualidade é preferível à quantidade.
“Nós tentámos reproduzir em cativeiro o máximo que conseguimos, quer em Portugal, quer em Espanha, mas se calhar daqui a mais dois ou três anos passaremos a fazer uma reprodução apenas de nível qualitativo. A gestão das populações naturais será uma intervenção qualitativa ao nível genético. O que é que isso significa? Nós controlaremos os acasalamentos dos centros de reprodução, escolhemos um macho e uma fêmea o menos aparentados possível”, explica o técnico do ICNF.
Quando questionado sobre os próximos passos, Francisco Javier Salcedo Ortiz avisa logo que há bastante trabalho pela frente. “Ainda há muito trabalho a fazer. Nós recuperámos o lince-ibérico do ponto de vista demográfico, mas pelo caminho houve uma grande erosão genética. Temos no horizonte um estado de conservação favorável e, para isso, temos de continuar a criar novas populações – oito, neste caso – e chegar a um total de 1100 fêmeas reprodutoras”, ambiciona o coordenador do projecto Life Lynx-Connect, que deverá estar concluído até 2026.