É, com certeza, uma casa transmontana. E há muito bom vinho à mesa
Em Trás-os-Montes não há um perfil único de vinho, embora existam castas identitárias. Mas há um desejo comum: atrair o mundo para o potencial da região.
"Tentamos preservar a privacidade das pessoas, mas recebemo-las como fazemos com os nossos amigos", diz Áurea Gonçalves. E assim nos sentimos à mesa dos diferentes projectos que visitámos em Trás-os-Montes. Em todo o lado, mesa posta e franca, a fazer lembrar a letra de Uma Casa Portuguesa — e encontrámos na região belíssimos vinhos e uma grande surpresa nos brancos —, com um twist: para além de vinho e pão, há sempre enchidos e queijos sobre a mesa. E há uma grande, grande, riqueza por explorar. Na enorme multiplicidade de microclimas (e de perfis de vinho), nas vinhas velhas, na altitude e na atitude do receber.
Alerta para início de conversa. Estão aqui sugestões para passar uma semana inteira na região. Ou ir e regressar várias vezes. E com calma, porque alguns sítios distam uns dos outros 30 minutos a uma hora. Já são vários os produtores de vinho que têm uma oferta consistente de enoturismo, alguns têm novidades fresquinhas. Tal como noutras regiões vitivinícolas do país, essa outra actividade está a despontar em Trás-os-Montes.
Há mais Vidago para além da água
Rumemos a Vidago, sub-região de Chaves, onde, ali a meia distância entre as duas, Amílcar Salgado se virou para o vinho para preservar tradições. "Isto já foi a maior zona vitícola de Trás-os-Montes, há uns 100 anos, não é preciso recuar mais." Na Quinta de Arcossó, a visita não podia ser mais personalizada. Começa no exterior, com um passeio de pick-up, pelos 20 hectares de vinha, rodeados por bosques frescos, e até ao alto da quinta, de onde se espia o Tâmega e a vizinha Espanha. Amílcar explica a região e as suas condições edafoclimáticas para a seguir esmiuçar aquilo que mais interessa aos visitantes. No nosso caso, as vinhas velhas — explicou-nos como recuperou umas e como noutras seleccionou o material vegetativo para plantar estreme o que queria. Depois, na adega, prova-se de tudo, directamente das cubas e das barricas. Riesling, Tinta Francisca, Pinot Noir, Rufete, Bastardo, Baga, Tinta Amarela, Boal ("ou Sémillon") em colheita tardia... Tanta coisa boa, que uma pessoa perde-se.
É "o terceiro produtor mais antigo de Trás-os-Montes", diz-nos, e só trabalha com uvas e vinhos próprios. Tem "aí umas 12 referências", mas, e para se perceber a experimentação que caracteriza Arcossó, basta olhar ao número de vinificações que Amílcar fez em 2023: 28. "Quem prova estes vinhos prova este sítio." Que está prestes a ganhar uma infra-estrutura mais profissional. Por debaixo dos nossos pés, está pronta uma cave nova, gigante e fresca, para o armazenamento dos vinhos e, quiçá, para um almoço no Verão; à superfície, uma sala de provas de verdade. "Até ao Verão, vai nascer aqui uma sala de provas, com esta vista, e ligação à cave. Mas eu queria manter esta prova aqui na adega." Deve!
Perto de Vidago, é famoso o cozido de Eufrásia Almeida (por marcação; preço médio 30 euros), na Casa de Souto Velho, embora no restaurante que ela e o marido, Osvaldo, têm junto à praia fluvial em Anelhe haja mais para experimentar, tanto quanto uma terra boa pode dar à mesa. Até vinho — o Encostas de Volfrâmio, branco e tinto, nasce em 2 hectares de vinhas ali a uns 300 metros. Do fumeiro — alheira, salpicão, presunto de porco bísaro, chouriço de abóbora, linguiça, bucheira, sangueira... — aos míscaros, passando pelas hortaliças e pelas frutas que Eufrásia trabalha em compotas, é quase tudo produção própria na casa agrícola que o casal construiu onde antes havia "mato, tojo, sobreiros e calhau". Vale bem a pena o desvio.
Chegámos à tardinha à aldeia do Seixo. Manuel Nobre, antigo quadro de topo da Águas de Portugal, quase uma vida no estrangeiro e sete línguas no currículo, reformou-se em 2010 e voltou à terra para recuperar a antiga casa de família, que transformou em turismo rural. Espera-nos no pátio, junto à adega do século XVIII, que também reabilitou e aumentou, para nos guiar pela propriedade e pelas suas memórias de outros tempos. "Nasci aqui, esta era a casa da família. Toda a gente foi embora. A aldeia é pequena mas chegou a ter 200 pessoas, hoje tem aí umas 25."
Diz que nunca sentiu que tivesse vocação para a agricultura, mas percebe-se que se orgulha das melhorias que, em pouco tempo, ajudou a conquistar para a aldeia, como "o saneamento público", a "água potável e com pressão", o calcetamento de caminhos ou os trilhos na floresta. Também levou para o Seixo gente de fora. E continuará a levar, já que o projecto da Casa Grande do Seixo (quartos entre 75 e 100 euros, no Verão) crescerá com a inauguração, por estes dias, de quatro apartamentos turísticos na aldeia.
Defeito de profissão, em qualquer parte vê o potencial aproveitamento das águas que ali abundam. Fala-nos da água que corre para o mar na ribeira da Oura, que corta a meio a sua área de vinha. "Podia aproveitar-se." Em 3 hectares, a uns 400 metros de altitude, tem 50% de castas brancas (Viosinho, Arinto e Chardonnay) e 50% tintas (Touriga Nacional, Syrah e Alicante Bouschet), de onde faz os vinhos Erbon ("Nobre" ao contrário). É Manuel quem guia os hóspedes pela propriedade, que é pet friendly e tem um espaço para caravanas, e Nélia Canha quem os mima dentro de casa. Jantámos com eles como quem é da casa. De manhã, a desembaraçada madeirense só lamentou que visita tivesse ocorrido antes de a piscina exterior abrir. Por esta altura, já funciona. E, para quem lá for depois do Verão, é apontar: nas vindimas o ponto alto é a lagarada que o produtor faz "praticamente todos os anos".
Junto ao Rabaçal
Em Valpaços, a Encostas de Sonim tem novidades engarrafadas e outras edificadas. Hélder Martins e Dina Pessoa já tinham ali uma bela sala de visitas e um museu, mas como são "criativos" queriam mais. Esse mais é uma ampliação, com mais uma sala, onde nascerá uma garrafeira vertical, e um "rooftop", que o casal também conta inaugurar até ao Verão. "As pessoas sobem daquela zona do inox [na visita à adega] e chegam lá acima e dão com o terraço", guia-nos, entusiasmado, o pai de Dina, Fernando, que foi quem meteu a família nessa aventura de produzir vinho.
São 9 e meia da manhã, mas fazendo jus à fama dos transmontanos Dina espera-nos com enchidos e queijos sobre a mesa, para não provarmos de estômago vazio. Uma pequena amostra do que ali servem nos almoços regionais (entre 25 e 35 euros e há opção vegetariana, calma; suplemento de vinhos 5 a 20 euros — o mesmo valor das provas "soltas"), que fazem por marcação e onde não faltam os milhos com costelinhas e fumeiro, mas também há 'modernices' como os mirtilos biológicos de uma produtora local ou os pastéis de nata de castanha. Nos vinhos, é entusiasmante perceber como da vinha centenária ainda saem novidades. O produtor lançou recentemente o seu primeiro branco de vinhas velhas, "aquilo que caracteriza a região", nota Dina, de 2019, e o vinho "esgotou logo". A boa notícia: por estes dias chega ao mercado o 2020.
Perto de Sonim, são motivos de interesse a ecovia do Rabaçal, os lagares rupestres que a autarquia de Valpaços quer promover ainda mais através da criação de uma rota turística e a Casa do Vinho, um centro interpretativo criado pelo município. Na região foram descobertos vários lagares rupestres, mas só no concelho há para cima de 120. Na freguesia de Santa Valha, onde fica a Quinta do Salvante, um dos produtores transmontanos com vinho de lagar rupestre, há três dezenas destes lagares escavados na rocha pelos romanos. E precisamente junto à ecovia foi feito o Calcatorium de 2018, produção que juntou várias entidades públicas e abriu portas a que a região pudesse certificar este tipo de vinho.
Ainda na sub-região de Valpaços, segue-se uma voltinha pela propriedade de Telmo Moreira, advogado e outro apaixonado por esse "património que são as vinhas velhas", um animado jantar com a sua família e lugar para um sono reparador na sua Quinta das Corriças. "Quando recebo as pessoas, pergunto sempre se têm tempo. Tempo para perceberem como é que há uma criatura que não quer deixar morrer isto [20 hectares de vinhas velhas, que resolveu 'engarrafar' a partir de 2008]", diz-nos Telmo. Temos, sim. Ir às Corriças é perceber, por exemplo, o que torna singular o Tinta Amarela deste produtor. Para começar, o facto de o "blend [na vinha] ser único". A casta está plantada de um e do outro lado de uma ribeira que ali corre, de um lado há xisto, e "tudo o que é a flora do Douro", e do outro os solos são graníticos e tudo o resto mais transmontano.
É por isso que Telmo diz que "as pedras da adega falam". A quinta fica "no estrangulamento de duas placas tectónicas continentais" e esse encontro de mundos distintos está lá, na fachada da adega, para quem o quiser ver. Vemos a correr a adega, que já nos esperam à mesa. Há queijo de leite de ovelhas próprias, azeite das oliveiras da quinta, fumeiro, claro, "chícharos" (feijão-frade) com batata alourada e posta de vitela e o vinho da casa (atenção aos brancos também, feitos com Viosinho, Códega de Larinho, Gouveio, Rabigato...), para uma tertúlia singela e franca. É sempre assim, a família costuma juntar-se à mesa com os hóspedes e há música, porque o vinho "é partilha" e "tem musicalidade". "Nada se passa aqui sem nos ficarmos a conhecer." Visita às vinhas e à adega com prova a partir de 15 euros por pessoa. Quarto duplo a partir de 50 euros e os jantares vínicos a partir de 30 euros.
De Macedo de Cavaleiros a Mogadouro
Meia hora de estrada e estamos em Valle Pradinhos, uma casa agrícola com produção de vinho desde 1913, actualmente gerida por Maria Antónia Mascarenhas, a quinta geração da família à frente dos destinos da propriedade fundada por Manuel Pinto de Azevedo. Ao todo, 550 hectares de terras agrícolas e florestais em Macedo de Cavaleiros, 48 são de vinha e 77 de olival, "tudo bio", diz-nos Mara Lopes, comercial da empresa e quem recebe o turismo. Ali encontrámos uma estratégia que parece ser comum a mais produtores: a plantar vinha nova, que seja de brancos. No caso, 6,7 hectares de Gewürztraminer, Riesling e Malvasia Fina.
"Estamos a apostar mais nos brancos porque a produção é pequena, um terço dos 48 hectares de vinha que temos são brancos", justifica Mara, enquanto nos dirigimos à casa principal para provar o portefólio do produtor (as provas começam nos 20 euros). Com bom tempo, as provas podem ser nos jardins da casa ou na mesa de pedra à sombra das figueiras que vimos junto à Vinha da Coelha. Na mesma vinha há um pombal, um de quatro, que Maria Antónia Mascarenhas quer recuperar e transformar numa sala de provas. Mas, por agora, a prioridade têm sido os vinhos e a modernização da adega, onde há obra recente e um alambique histórico, que ainda labora e de onde saem aguardentes bagaceiras que "estagiam durante dez anos". A destilação dura um mês e acontece no final de Outubro, início de Novembro. "É engraçado quando recebemos visitantes nessa altura. Querem andar a provar."
Uma hora no carro e voltaremos a ter apetite quando chegarmos a Mogadouro, sub-região do Planalto Mirandês ("a sair das Arribas do Sabor e a entrar no Planalto Central" e a "zona de Trás-os-Montes e do país com a maior área de vinhas velhas"). Apesar de a maior vinha da Wine Indigenus ficar junto ao castelo, é na freguesia de Castelo Branco que Cristiano Pires e Rute Gonçalves têm uma casa moderna e bem decorada com quatro quartos duplos (a noite custa 250 euros; associar um almoço regional com prova de vinhos fica em, pelo menos, mais 40 euros por pessoa). E foi lá que conhecemos Áurea, a mãe de Rute, que numa frase capturou o espírito da hospitalidade transmontana, enquanto comíamos com a família e ouvíamos um casal amigo, luso-francês e de mão prendada para a cozinha, falar do potencial turístico dos Lagos do Sabor, ali bem perto.
Cristiano e Rute são filhos da terra, mas ele esteve sempre ali, cresceu na agricultura e anda "sempre no campo", ela cresceu por Lisboa e mais tarde rumou a Inglaterra onde trabalhou como enfermeira especialista. Há dez anos, ainda antes de os seus destinos se enlaçarem, Cristiano desafiou o pai a engarrafar com marca própria. Entretanto, Rute queria regressar mas por cá não lhe reconheciam a especialidade. Já gostava de vinhos, mas "era só enófila", conta. Tirou um mestrado em Enologia, em Vila Real, e em 2017 começou a tocar o negócio para a frente com Cristiano. É ela quem assina os vinhos Terras de Mogadouro, a par do experiente Francisco Gonçalves, o mesmo dos vinhos Mont'Alegre (e, já agora, da Taverna do Mercado e da Casa da Avó Chiquinha, que deverá reabrir nos próximos dias com os quartos remodelados e uma área de bem-estar com vistas para o vale do Cávado; provas a 15 euros e quartos a 83 euros).
Nos 70 hectares de vinha que gerem hoje (30 dos quais plantados em 2023), Rute e Cristiano têm castas autóctones mas também algumas estrangeiras, entre elas a branca Gewürztraminer ("fomos os primeiros a plantar e até há pouco tempo éramos os únicos a ter a casta") e a tinta Pinot Noir. "Gostamos de mostrar a versatilidade de Trás-os-Montes. E a facilidade com que essas castas, de clima frio, se adaptam bem à região", explica Cristiano. Não são os transmontanos que dizem que quem não nasce ali dificilmente se adapta?
Produtos da terra em mesa Michelin
À imagem daquelas afamadas variedades internacionais, também Teresa Vaz, natural de Santa Maria da Feira, vingou em terras transmontanas. Braço direito do produtor Jorge Ortega Afonso (o "JOA"), está em Parada, Bragança, há cinco anos. Na Casa do Joa tem as 'pastas' da enologia, da viticultura e do enoturismo. "Vou levar-vos a duas vinhas, nós não temos tudo num sítio só. Temos várias parcelas espalhadas." No meio das ervas (ui, o que foi de falatório na aldeia começar a deixar crescer vegetação na vinha), desfia a história, que se repete um pouco por toda a região.
Há uns 15 anos, Jorge, que sempre viveu em Lisboa e apenas ia a Parada de férias, apercebeu-se "que havia muita gente a arrancar vinhas com subsídios da União Europeia" e percebeu o tesouro que a aldeia corria o risco de perder. Conquistou os mais velhos e salvou vinhas que andam "entre os 120 e os 180 anos". Ao todo cuida de "6 ou 7 hectares", que já não vêem herbicida desde 2020 e onde o foco é agora a conservação de solos, nomeadamente através das tais plantas de cobertura, semeadas ou espontâneas, num trabalho conjunto com o Politécnico de Bragança.
Já na adega, um edifício de 2017 erguido sobre paredes velhas como as vinhas, Teresa diz-nos que a comunidade ajuda sempre que pode e já não contesta a forma de trabalhar do produtor. "No início ainda havia muito a cultura do 'todo o bago dá sumo', hoje já há selecção e já ouvimos a frase 'não, estas o Jorge não quer." Na Casa do Joa, "Um cibinho com amigos" custa 29 euros por pessoa e a experiência mais completa 99 — inclui uma visita que pode durar quatro horas e dá direito a provar tudo o que há na adega. Jantares vínicos (a comida vem d'O Tardego, na aldeia vizinha de Coelhoso), e provas verticais são outras possibilidades.
Para terminar em grande, sentámo-nos à mesa do G, de António e Óscar "Geadas" Gonçalves, que têm pratos novos e cada vez mais vinhos transmontanos na carta. Sabendo do nosso programa, António, que tem a gestão da pousada e é o escanção do restaurante, resolve trazer-nos referências que ainda não conhecíamos. E, sem surpresa, surpreende. Com belíssimos vinhos brancos — a confirmar o potencial da região nesta matéria —, sem um perfil único, todos diferentes, de projectos como a Menina d'Uva, os 'Sarotos' (Arriba Wine Company) e até a Santa Casa da Misericórdia de Valpaços, que faz o original Valpaço-Lo-Velho, "um grande vinho que ninguém conhece". É de 2016 a colheita que está no mercado e isso também impressiona. Num restaurante com estrela Michelin, onde "95% a 90% do serviço de vinhos é harmonização", construir uma garrafeira em que "mais de 50% ou 60% dos vinhos são regionais" é obra — eles próprios tem um vinho 'da casa': o Manicómio. Boa. E bem sucedida, pelos vistos: "90% dos vinhos que abro aqui no restaurante são de Trás-os-Montes".
Enquanto nos dá a provar azeites da Terra Quente e da Terra Fria — estamos na segunda —, apresenta os cuscos e o galo capão, uma das novidades do novo menu Graça Morais, ou explica o projecto que faz chegar à mesa o maravilhoso pão de trigo Barbela que Óscar está a recuperar em parceria com a Moagem do Loreto, António repete que a vontade dos irmãos foi sempre "dar a conhecer o terroir transmontano e os [outros] grandes e diferentes projectos que existem na zona". Apontámos uns quantos nomes. Vamos voltar.