A água que vestimos na roupa que usamos

Neste gesto quotidiano e rotineiro que é cobrir o corpo, quantas vezes nos questionamos sobre quantos litros de água levamos vestidos na roupa que decidimos usar?

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É próprio da nossa rotina diária escolher a roupa com que nos apresentamos a cada dia, cravando nessa escolha o simbolismo identitário, que nos distingue de todos os nossos interlocutores. Escolher a roupa que vestimos diariamente é mais do que um simples gesto. É uma declaração de identidade. É um ato sociológico que todos os dias repetimos, consciente ou inconscientemente. Neste gesto quotidiano e rotineiro que é cobrir o corpo, quantas vezes nos questionamos sobre quantos litros de água levamos vestidos na roupa que decidimos usar?

O impacto da produção de vestuário na disponibilidade de água potável tem sido alvo de inúmeros estudos e debates. É uma preocupação global, cujos efeitos nocivos, para as pessoas e para o ambiente, importa travar e reverter. Estamos longe de atingir um justo equilíbrio entre a produção de vestuário e a poluição por esta gerada, em especial na água.

O nosso tempo caracteriza-se por complexas interligações e (inter)dependências. O desenvolvimento mundial está dependente das nossas escolhas, individuais e políticas. As desigualdades globais são escandalosas, mas permanecem invisíveis. O acesso à alimentação, à saúde, à educação, à água potável, à energia, entre tantos outros, permanece vedado a milhões de pessoas, por mais elementar que seja para a sua sobrevivência. O recente relatório “Crimes da moda: gigantes europeus da moda ligados ao algodão sujo no Brasil”, desenvolvido pela Organização Não Governamental Earthsight, indica que grandes marcas retalhistas estão associadas a crimes ambientais e sociais, entre eles corrupção, exploração laboral e desflorestação ilegal, e denuncia uma realidade com consequências globais que não pode ser ignorada.

O vestuário é um direito, inscrito no artigo 25.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A moda é uma indústria, geradora de tendências, muitas vezes segregadoras de classes sociais. Sabe-se que a indústria da moda é das mais poluentes do mundo. De acordo com a Organização das Nações Unidas, este setor é o segundo mais poluente, estando apenas atrás da indústria petrolífera. E a indústria é, cada vez mais, “fast”, tendo já atingido a ideia de ​ultra-fast-fashion. O ciclo de produção e consumo é exagerado e desnecessariamente rápido, com consequências sociais e ambientais críticas, num ciclo vicioso de desperdício e descarte difícil de conter.

Se analisarmos a cadeia de produção e fabrico do algodão, fibra mais utilizada no fabrico de vestuário, percebemos o seu impacto social e ambiental, em particular na água. Por norma, o algodão é cultivado em zonas áridas, o que, muitas vezes, interfere com a quantidade de água disponível para consumo humano. Ao mesmo tempo, para produzir uma única t-shirt de algodão, são necessários mais de 2500 litros de água. Sabemos, também, que os produtos químicos utilizados são imensamente tóxicos, contaminando a água e todo o ecossistema que por lá vive. A fase de fabrico e acabamento têxtil representa 20% da poluição industrial global da água.

Além disso, para o acabamento e tingimento de têxteis, são necessárias até 200 toneladas de água por uma tonelada de tecido tingido. É uma equação cujo resultado é desequilibrado e preocupante, sobretudo se multiplicarmos tudo isto pela quantidade incalculável, e dispensável, de roupa produzida diariamente. À vertiginosa produção ultrarrápida de roupa está associada a ideia de um estilo de vida também ele rápido, efémero e descartável. O que hoje é “trendy” amanhã já é “old-fashion”. Se olharmos com seriedade para a raiz desta forma de viver, cabe-nos questionar se tudo isto nos é necessário.

A relevância deste debate amplifica-se quando consideramos os esforços globais para combater as mudanças climáticas e as violações dos Direitos Humanos, sociais e ambientais em toda a cadeia de bens produzidos, como os discutidos nas anuais Cimeiras do Clima das Nações Unidas ou no Parlamento Europeu, com a recente aprovação da Diretiva sobre Dever de Diligência das Empresas em matéria de Sustentabilidade. Nestes debates internacionais, vários países, onde Portugal se inclui, comprometem-se com metas ambiciosas para a sustentabilidade ambiental e social.

Nestes fóruns, debates sobre financiamento climático, transição energética e ações climáticas mais ambiciosas destacam a necessidade urgente de reformas em todos os setores, inclusive na indústria da moda. Portugal, alinhado com os objetivos de neutralidade carbónica até 2050 e com o fomento à economia circular, espelha o movimento global em direção a práticas mais sustentáveis, ambiental e socialmente. As discussões da COP e no Parlamento Europeu enfatizam a responsabilidade compartilhada de governos, indústrias e consumidores na promoção de estilos de vida mais sustentáveis, servindo de lembrete de que a indústria de produção de vestuário deve também seguir este caminho.

O caminho para lá chegar é árduo, e tão longo quanto a nossa indiferença e inação, mas isso não nos impede de olharmos para o futuro com vontade de o alterarmos. Muitas marcas já estão a trabalhar para tornarem a indústria do vestuário e da moda menos poluente. Através do uso de produção eco-friendly, da reciclagem de materiais e até mesmo de tecnologias inovadoras que permitem a redução do consumo de água, a slow-fashion está a dar os primeiros passos. Há uma preocupação crescente com a ética na produção de algodão e, consequentemente, de roupa.

A responsabilidade não está apenas do lado dos produtores e das marcas. Os governos e as organizações internacionais têm a responsabilidade de continuar a trabalhar para colocar este tema na agenda política, criando regulamentação clara que monitorize as práticas industriais e que favoreça a proteção dos direitos sociais e ambientais.

A nós, cidadãos, cabe-nos a busca de informação fiável e rigorosa; cabe-nos questionar as práticas dominantes; e agir em consequência, individual e coletivamente. E, pelo menos uma vez, façamos o exercício de calcular a quantidade de água que temos pendurada nos nossos armários, escondida na roupa que usamos. Seremos indiferentes ao resultado do cálculo?

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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