Após duas semanas de chuvas intensas, os céus do Rio Grande do Sul, no Brasil, finalmente clarearam na terça-feira, tornando ainda mais óbvios os estragos materiais provocados pelas cheias. Ainda está longe o tempo da reconstrução: o sofrimento humano é de difícil cálculo – 148 pessoas morreram na sequência das cheias – e mais de 530 mil habitantes ficaram desalojados. Mas já há uma certeza entre os especialistas: nada poderá ser reerguido como se não houvesse uma crise climática em curso.
“Esta reconstrução do Rio Grande do Sul terá de ser pautada pelo olhar da adaptação à mudança do clima. A região sul do país e toda a bacia do rio Prata são apontadas pelos especialistas como uma área que vai ter fragilidades com eventos associados à pluviosidade. Isto quer dizer que não adianta repetir as cidades da forma como elas eram”, explica ao PÚBLICO a urbanista brasileira Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima.
Opinião semelhante tem Henrique Evers, gerente de desenvolvimento urbano da organização sem fins lucrativos World Resources Institute (WRI na sigla inglesa) no Brasil. “Temos de reconstruir considerando os regimes de chuva, seca e ondas de calor do futuro. Se a gente não reconstruir considerando esses novos cenários, a gente vai ter uma nova destruição assim que as novas infra-estruturas estiverem prontas”, avisa o geógrafo.
Sueli Araújo, que presidiu ao Instituto Brasileiro do Ambiente (Ibama) até 2018 – quando Jair Bolsonaro foi eleito Presidente do Brasil –, recorda a existência de um relatório de 2015, pedido pelo Governo da altura – então liderado por Dilma Rousseff –, que já indicava que a região do Rio Grande do Sul estava exposta a fenómenos associados à pluviosidade intensa.
Por outras palavras, o documento produzido em 2015 já estimava o que testemunhamos agora, refere Suely Araújo: seca hidrológica no Norte do Brasil e chuvas intensas no Sul no país; sendo que estes fenómenos extremos são impulsionados pelas alterações climáticas. Embora a tragédia do Rio Grande de Sul seja considerada “histórica”, não faltam exemplos de outros fenómenos extremos no país. Em 2023, por exemplo, houve uma seca descomunal na Amazónia e registaram-se derrocadas em encostas na Mata Atlântica.
“Agora mesmo estamos com um problema de seca no Pantanal mato-grossense. Os climatologistas estimam que este ano ocorra novamente uma seca [a exemplo do ano retrasado]. Tudo isto está interligado, são fenómenos que têm conexão entre si”, explica Suely Araújo ao PÚBLICO, numa conversa telefónica a partir de Brasília.
Fazer diferente
Após a tragédia, como reconstruir para evitar novas tragédias? Será necessário, segundo os dois especialistas ouvidos pelo PÚBLICO, garantir que as construções ficam ainda mais afastadas do que estavam das margens dos vários rios e do lago Guaíba. E que as cidades sejam lugares permeáveis, garantindo ainda uma “priorização absoluta do transporte público”.
“Com a mudança do clima, as áreas de preservação permanente previstas hoje pela lei terão de ser aumentadas, porque o que está previsto é claramente insuficiente tendo em conta o volume de água no rio Guaíba. Isto é uma discussão técnica muito necessária”, diz Suely Araújo.
Henrique Evers subscreve. “Não vamos repetir os erros os erros do passado – por exemplo, a ocupação na frente de rio vai ter de recuar, a ponte vai ter de ser mais alta e a ocupação nas encostas já não vai ser possível”, exemplifica o especialista da WRI Brasil.
O geógrafo destaca, contudo, a importância de haver neste momento um compromisso entre a urgência e a perfeição. Num mundo ideal, as novas construções seriam ecológicas, pensadas ao pormenor e planeadas envolvendo membros da comunidade nas mais variadas fases do processo. Só que o Rio Grande do Sul precisa de responder com celeridade ao sofrimento humano de milhares de famílias – uma emergência que obrigará a uma reconstrução apressada.
“Temos uma urgência de reconstruir seja a casa onde as pessoas moram, as cidades que foram destruídas ou as infra-estruturas, os serviços que estão comprometidos, tudo tem de ser feito o mais rápido possível. Não será possível fazer a ecocidade que nós desejaríamos, eu sei que não será possível — vamos ter de encontrar aquele ponto óptimo entre o fazer logo e o não fazer igual ao passado”, diz Henrique Evers.
Os centros urbanos têm de estar mais permeáveis, a exemplo da lógica das cidades-esponja na China. Tanto Suely Araújo como Henrique Evers criticam a obsessão com a impermeabilização das cidades, “como se fossem piscinas”, fazendo com que a chuva não seja absorvida pelo chão.
Henrique Evers afirma que Porto Alegre e outros centros urbanos do Rio Grande do Sul, a exemplo da maioria das cidades, reproduz um modelo hidrófobo – ou seja, de horror à água, expelindo-a em vez de permitir a lenta absorção da chuva pelos solos. E, ironicamente, foi esse mesmo modelo de cidade-poluidora que contribuiu para enchermos a única atmosfera que temos com carbono, sublinha o geógrafo.
“Construímos as nossas cidades num modelo que nega, doma e combate a natureza. É um modelo de hidrofobia. A gente canaliza e tampa os rios, impermeabiliza os solos, controla ou extingue as árvores, avança sobre os corpos de água com aterros. É imperativo: temos de fazer diferente”, avisa Henrique Evers, numa chamada telefónica com o PÚBLICO a partir de Porto Alegre.
Suely Araújo concorda que o desinvestimento na adaptação não é um problema do Rio Grande do Sul nem do Brasil – é mundial. “Mas agora essa mudança vai obrigatoriamente ter de acontecer: a crise climática já está a acontecer e nós temos de reduzir a emissão de gases com efeito de estufa”, refere a urbanista.
Golpe no sector agro-pecuário
O sector agro-pecuário, sendo um sector muito importante no Rio Grande do Sul, sai também bastante fragilizado destas cheias. Há na imprensa brasileira referências à perda de gado, de áreas de cultivo e alfaias agrícolas. As enxurradas das últimas semanas também provocaram um grande empobrecimento dos solos, roubando-lhes os nutrientes necessários à agricultura.
“Há relatos de que a terra foi literalmente lavada e que há locais onde o que se vê é a rocha. Num estado que depende da agricultura, isto é um grande desafio que terá de ser enfrentado de imediato”, diz Suely Araújo.
A especialista do Observatório do Clima explica que o Rio Grande do Sul é um “estado com um historial de degradação ambiental na área rural” e que “será necessário fazer um intenso trabalho de restauração de campos nativos, tendo atenção ao que se fez no passado, e isto significa em parte mudar a economia do estado”, numa referência ao “intenso desmatamento”.
Estas eventuais mudanças, contudo, enfrentam, segundo a mesma fonte, uma grande resistência por parte dos partidos políticos que representam os interesses do sector agro-pecuário, que é “um pilar da economia brasileira”. Suely Araújo diz haver uma força grande da chamada bancada ruralista, que faz uma pressão constante, segundo descreve, para que a legislação ambiental seja flexibilizada, sem garantir a sua aplicação.