HortaFCUL: há 15 anos que este projecto alimenta uma comunidade
Em 2009, um grupo de estudantes começou uma horta voluntária de permacultura na Faculdade de Ciências de Universidade de Lisboa. Desde então o projecto cresceu e foi criando uma comunidade.
Há um charco, um patamar de terra batida e um caminho coberto de folhas que nos aproxima de uma confusão feliz de pequenas plantas, arbustos e algumas árvores. Situada num canteiro ao pé do edifício C2 da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), a Hortinha, com os seus 170 metros quadrados, pode ser saboreada com os cinco sentidos. O espaço já foi um pequeno relvado, mas em 2009 um grupo de estudantes transformou-o numa horta. Hoje, é um bosque comestível com várias opções: cresce boldo com que se pode fazer chá, há fisális que produzem bagas comestíveis, louro para cozinhar, uma cerejeira.
“Esta é uma das poucas cerejeiras de Lisboa que dá cerejas”, assegura Florian Ulm, biólogo alemão de 37 anos, durante a primeira de duas visitas que o PÚBLICO fez ao lugar.
O bosque comestível é uma das portas de entrada para a HortaFCUL, um projecto idealizado por estudantes daquela faculdade onde se aplica os princípios da permacultura. Iniciada na Hortinha, com o aval da direcção da FCUL, a iniciativa foi se expandindo de uma forma orgânica e ganhando um lugar naquela instituição de ensino. Hoje, há uma minifloresta, duas bio-ilhas, a horta solar e o Permalab, um laboratório de permacultura com horta, estufa, centro de compostagem, e que passou a ser a base deste projecto.
Embora produza alimentos e tenha alterado vários espaços exteriores da FCUL, a iniciativa ganhou uma importante dimensão social, juntando alunos e investigadores daquela instituição, e outras pessoas vindas de fora que desejam pensar e fazer actividades regenerativas ao nível da agricultura e da natureza num contexto urbano.
“É um laboratório com uma forte componente experiencial do ponto de vista científico, mas sobretudo de experiências sociais, que são bem mais invisíveis num contexto de uma faculdade de ciências. É também uma comunidade”, sublinha ao PÚBLICO David Avelar, de 42 anos, biólogo formado na FCUL e uma das pessoas que fez nascer o projecto. O investigador pertence ao Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Climáticas (cE3c), da Universidade de Lisboa, que alberga a HortaFCUL enquanto infra-estrutura de investigação.
Tanto David Avelar como Florian Ulm, também do cE3c, são guardiões da HortaFCUL, um termo oficial usado para os que estão envolvidos, participam nas sessões, desenvolvem ideias para o espaço e trabalham regularmente nele. A iniciativa é aberta a qualquer pessoa, que à medida que se envolve poderá tornar-se guardiã. Não há hierarquias dentro da HortaFCUL e o trabalho é voluntário. Num contexto citadino onde há uma grande densidade populacional, mas também muito isolamento, “estes projectos cumprem um papel fulcral para uma sociedade saudável”, defende David Avelar, numa conversa por telefone. “Aqui ocorrem o que chamo de encontros improváveis. À volta de uma alface há encontros de gente de idades diferentes, géneros diferentes, estratos sociais diferentes, que depois derivam em projectos”, relata o biólogo.
Na passada sexta-feira, comemoraram-se 15 anos de vida da iniciativa com uma festa que reuniu guardiões no activo (cerca de 15) e antigos guardiões, além de amigos próximos. A lista de 78 pessoas para o evento mostra o crescimento do projecto. Mas um relatório publicado este ano, que olha pela primeira vez para os resultados da HortaFCUL de uma forma sistemática e quantitativa, avaliando tanto os efeitos da transformação dos espaços verdes da faculdade, como o valor social que foi tendo, oferece a verdadeira dimensão do seu impacto na comunidade. Ao todo, mais de 5000 pessoas estiveram em 84 workshops e cursos desde 2010, além das dezenas de apresentações e conversas, festa e encontros, visitas guiadas e eventos virtuais que ocorreram e onde participou mais gente.
“A principal missão deste projecto é a produção e a disseminação de conhecimento. Não nos interessa produzir toneladas de alimentos. Mas é para mostrar que é possível, que não podemos ter medo de experimentar”, diz ao PÚBLICO António Vaz Pato, de 24 anos, biólogo formado na FCUL e guardião, durante a visita. “Imagina que existe um projecto destes em cada freguesia de Lisboa, seria brutal”, avança o biólogo, que é o primeiro autor do novo documento, assinado por vários guardiões da HortaFCUL. A produção do relatório foi apoiada pelo cE3c. Intitulado Viver o desenvolvimento sustentável: um projecto universitário de permacultura como fornecedor de serviços do ecossistema, o documento serviu de gatilho para a visita.
O caminho da verdade
Cada espaço da HortaFCUL tem a sua particularidade. A Hortinha, sendo o lugar mais antigo, viu a sua vida transitar de produção hortícola para um bosque onde podem entrar tanto plantas autóctones como não autóctones. O charco, numa das extremidades espaço, torna o lugar especial. Um toldo inclinado e em zigue-zague desvia a água da chuva para o charco.
“É outra hipótese de poder mostrar todo o ecossistema que existe dentro de água, a cadeia trófica, toda esta rede entre o fitoplâncton, o zooplâncton”, conta ao PÚBLICO Tiago Silva, biólogo e consultor na área da sustentabilidade, principal responsável pela criação daquele corpo de água. O ex-aluno da faculdade de 43 anos também é um guardião e esteve envolvido na criação da HortaFCUL.
Tiago Silva e David Avelar frequentaram um curso de permacultura prático de alguns meses entre 2005 e 2006. Este sistema desenvolvido pelos australianos Bill Mollison (1928-2016) e David Holmgren (n. 1955), durante a década de 1970, vai buscar princípios da ecologia para pensar a agricultura, o enriquecimento do solo e a renaturalização de paisagens num contexto de sustentabilidade e de resiliência. O encontro com a permacultura “foi revolucionário”, admite David Avelar. “Fazia-me todo o sentido do ponto de vista teórico”, acrescenta. “Os padrões e relações encontrados na natureza são muito sustentáveis. A permacultura mimetiza esses padrões no planeamento de habitats humanos. Dá um enquadramento, propõe éticas.”
Na altura, os espaços verdes da FCUL eram relvados pouco arborizados, um “deserto verde”, caracteriza Tiago Silva, numa conversa nas instalações do Permalab. “Porque é que não podíamos ter com o mesmo consumo de água outras coisas além da relva?”, questiona. Os dois biólogos mais um grupo de estudantes resolveram perguntar à direcção da faculdade se poderiam iniciar uma horta a partir dos princípios da permacultura.
“Era importante que o espaço fosse mais do que uma exposição de técnicas de permacultura, fosse algo que pelo menos reflectisse sobre o papel do ensino superior na sociedade, que é um espaço aberto à reflexão, às perguntas, a tentar percorrer o caminho da verdade”, refere Tiago Silva. Algo que também foi sendo feito através da investigação realizada na HortaFCUL, que já alimentou doutoramentos e mestrados. “Para nossa surpresa, passados 15 dias tínhamos um e-mail a dizer que o projecto ia para a frente”, recorda.
Hoje, existem plantas de 61 espécies perenes a viverem na Hortinha. A única sobrevivente do tempo anterior ao projecto é uma buganvília que, entretanto, cresceu e já atingiu o primeiro varandim do edifício C2. “Houve um dia em que a buganvília estava enorme e tomaram a decisão de a encaminhar para o C2. A ideia é que um braço da horta entrasse na FCUL”, adianta António Vaz Pato, explicando o simbolismo do gesto.
Num placar afixado junto à Hortinha estão os três princípios éticos da permacultura: cuidar da Terra, cuidar das pessoas e partilhar os excedentes. A partilha de excedentes pode ser desde “bens materiais, como alimentos e espaços, como bens não-materiais, como conhecimento, experiência, tempo”, lê-se no site da FCUL sobre o projecto.
De lixo a tesouro
Saindo da Hortinha e atravessando a rua entra-se na FCULresta, a minifloresta criada em 2021 usando o método Miyawaki – referência ao botânico japonês Akira Miyawaki (1928-2021), autor do método. A técnica recorre ao uso de uma grande quantidade de sementes para acelerar a cobertura do solo com novas plantas, protegendo-o. Ao contrário da Hortinha, a FCULresta é formada apenas por plantas autóctones.
Há um caminho que atravessa aquele espaço de 300 metros quadrados. Quem desce a FCULresta, parte da região com flora associada ao Sul de Portugal, preparada para um clima mais seco, com espécies como o sobreiro e a palmeira-das-vassouras – a única palmeira autóctone europeia –, e vai depois passando por espécies habituadas a maior humidade e frio, como o sabugueiro e o carvalho-alvarinho. Pelo meio, encontra-se a alfarrobeira, o medronheiro, o sanguinho-das-sebes, o pilriteiro, num recanto que conta com 46 espécies perenes, segundo o relatório.
As folhas que recheiam o caminho são provenientes da própria faculdade e ajudam a alimentar o solo de nutrientes. “Os resíduos produzidos na FCUL são valorizados desta forma”, explica António Vaz Pato. As cascas de laranjas e borras de café produzidos no bar vão para a compostagem, assim como o material vegetal que sobra da gestão dos jardins. Entre 2016 e 2023, foram produzidas 47,95 toneladas de composto, segundo o relatório.
Mas mesmo outro tipo de material que a faculdade deita fora vai sendo aproveitado, como uma grande carpete que se transformou no jardim vertical da pequena cozinha do Permalab. “O lixo de uns é o tesouro dos outros. Praticamente todos os materiais usados para fabricar a estrutura vieram dessa reciclagem”, adianta António Vaz Pato.
Para se chegar ao Permalab é necessário contornar vários edifícios da faculdade, situada já perto do Campo Grande. Pelo meio, passa-se por uma das duas bio-ilhas, criadas mais recentemente. Além da componente vegetal, o espaço é mais aberto. “É suposto ser uma sala de aulas ao ar livre, biodiversa”, resume o guardião. Finalmente, depois de se passar o Centro de Ciências do Mar e do Ambiente, entra-se no Permalab, criado em 2016.
“O Permalab surgiu porque o David e eu estávamos a fazer o nosso doutoramento e a usar o espaço. Agora, é a base da HortaFCUL, o que permitiu que o projecto fosse muito mais abrangente”, explica Florian Ulm, que se juntou à iniciativa em 2011. O investigador, que é especialista na interacção entre as plantas e o solo, estudou o crescimento do milho tradicional e o uso de composto produzido ali. “Os milhos tradicionais em contexto da agricultura orgânica têm rendimentos semelhantes em termos de crescimento, mas são muito mais ricos em micronutrientes do que as culturas usadas na agricultura intensiva. Precisamos não de mais comida, mas de comida com qualidade”, assevera.
Um choupo com chuchus
Quem chega àquele espaço encontra a palavra “Permalab” esculpida em madeira. Por trás, há fileiras de boldos. “O boldo é o campeão da biomassa. Se queremos regenerar rapidamente o solo, ele é o maior aliado. Ao longo do tempo, vamos tirar os boldos e pôr árvores de fruto”, explica Florian Ulm.
Caminha-se um pouco e encontram-se as principais infra-estruturas: um local de reuniões, uma pequeníssima cozinha e uma estufa. À frente, há um espaço mais vazio onde se podem fazer piqueniques. No fim do caminho há uma fileira de contentores para a vermicompostagem, que recorre às minhocas para produzir um líquido altamente nutritivo para as plantas. À direita, estão três montes de material vegetal em processo de compostagem para produzir terra.
Atrás das infra-estruturas há vários talhões de horta, outro charco, e uma zona mais selvagem que vai até ao muro que dá para a Segunda Circular. O barulho dos carros é constante. António Vaz Pato faz uma visita guiada por ali e aponta para cima. Há quatro chuchus suspensos de um grande choupo. Os frutos nascem da planta Sechium edule, uma trepadeira que neste caso habita aquela árvore. Escondidos entre as folhas, são alimentos que caem do céu.
Depois, entramos na estufa. É aqui que os guardiões produzem as mudas de plantas. Há a sardinheira, o absinto, a salva-ananás, a batata-do-diabético, a erva-príncipe, a lavanda, o gengibre, o alecrim, o alho-francês, a couve, a couve-galega, a nabiça, o morangueiro.
“É uma forma de garantir que temos reservatórios de material vivo não só para aplicar aqui, mas também para dar à comunidade. É desta forma que contribuímos para a resiliência do projecto”, explica António Vaz Pato. Algumas das plantas, assim como terra produzida na composteira, vão para uma banca na FCUL. Quem passar por ali, pode levar uma planta em troca de um pequeno donativo. Eventos como os workshops trazem também algum dinheiro ao grupo. “Este projecto é replicável porque o input [financeiro] é mínimo, faz uso dos recursos locais”, sublinha o biólogo.
Desde 2015, a HortaFCUL providenciou anualmente uma média de 498 plantas para a comunidade (excepto 2020 e 2021, anos de pandemia), lê-se no relatório. Apesar das dezenas de sopas que foram sendo cozinhadas no contexto dos encontros, com ajuda de alimentos produzidos na horta, o peso total desta produção alimentar não foi contabilizado. A ausência desse número revela também que essa produção não é uma prioridade da iniciativa.
“Não esperamos que este projecto seja uma panaceia para os problemas do mundo. Mas é importante nestas dinâmicas locais”, defende António Vaz Pato, acrescentando que Lisboa produz biomassa capaz de alimentar muitos outros projectos semelhantes. “A colheita principal da HortaFCUL é a sabedoria, o conhecimento e a troca”, reforça, por sua vez, Florian Ulm. “É preciso uma subcultura particular para este tipo de conhecimento. A comida é uma coisa emergente do sistema. Não estamos a tentar mostrar aos agricultores como se faz o seu trabalho”, garante.
Reuniões com cinco As
As quintas-feiras são os dias de reunião, quando os guardiões se juntam e fazem o trabalho que é necessário fazer. Uma vez por mês, estes encontros são abertos à comunidade, que pode experimentar o que é a HortaFCUL. “São espaços de aprendizagem de técnicas de regeneração de ecossistemas, mas também de técnicas de sociocracia”, diz Florian Ulm. As práticas sociocráticas são uma forma de governança que se baseia na igualdade entre pessoas e privilegia a tomada de decisão de um grupo a partir do consentimento e não do consenso.
Perante uma decisão a tomar, “não há sim ou não”, explica Florian Ulm. “Há quatro níveis. O primeiro é ‘adoro a decisão’. O segundo é ‘sim, concordo com a decisão, mas não é perfeita’. O terceiro é ‘não gosto, mas não tenho uma ideia melhor’. O quarto é ‘não, bloqueio a decisão, não consigo viver com isso’”, enumera.
O método permite acelerar a acção do grupo e desburocratizar os processos. Os encontros são também facilitados pelos cinco As, os responsáveis que ajudam a olear cada reunião: há o almirante, que orienta os trabalhos e assegura que todos os tópicos são tratados; o atado regista as informações discutidas e será o almirante da próxima reunião; o acolhedor recebe as pessoas atrasadas e informa o que se está a passar, evitando que haja quebras; o alcoviteiro está atento às dinâmicas sociais, possíveis conflitos, e dá um retorno às pessoas do que viu; e o acertado ajuda a controlar o tempo.
Os cinco papéis vão rodando entre as pessoas ao longo dos encontros. “As reuniões com os cinco As requerem pragmatismo, confiança e uma participação consciente para assegurar que a reunião produz decisões claras e objectivas num curto espaço de tempo”, descreve-se no relatório.
Na segunda visita ao espaço, apanhamos justamente Beatriz Vicente a iniciar as preparações para o dia aberto, onde quem vier vai poder experimentar aquele tipo de dinâmicas e, claro, trabalhar a terra. “Esta altura do ano é perfeita para fazer aquilo a que se chama chop-and-drop: ver as árvores que precisam de uma poda. Também vamos fazer manutenção nas bio-ilhas”, descreve a guardiã de 27 anos, que está a tirar mestrado em design na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa.
Depois dos trabalhos, haverá um jantar que inclui produtos da própria horta, cujos talhões estão a produzir fava, alface, couve, alho-francês. O jantar faz parte do momento de celebração que os guardiões não dispensam. Além de se projectar o trabalho que vai ser feito e pôr as mãos na massa, a filosofia da HortaFCUL passa também por sonhar o mundo que se deseja e, no fim, celebrar aquilo que efectivamente se conseguiu realizar. “Reflectimos sobre o dia de trabalho, mas também sobre o estado do mundo. Falamos das coisas mais importantes e grandes, mas também das coisas mundanas que nos unem”, conta Beatriz Vicente, com uma simplicidade desarmante.
Tudo isto enriquece a experiência de quem participa nesta iniciativa. “Ganho muito por estar lá. Esta componente de inspiração, de sujar as mãos... Há lá pessoas que me inspiram, é um projecto que traz propósito à minha vida. É a minha forma de praticar a terceira ética da permacultura, partilhar os excedentes, que é o tempo, mas que também beneficio dele”, afirma David Avelar.
Ao contrário dos outros guardiões com quem o PÚBLICO falou, Beatriz Vicente não saltou do contexto académico da FCUL para a horta. Veio de fora, aproximou-se por um amigo e gostou. “É um espaço de partilha, muito aberto, de comunidade. Por mais que estas palavras estejam batidas, vivendo em Lisboa, sinto que fazem uma falta real”, relata a estudante, que se dedica à aplicação do design de comunicação a contextos de nivelação social, com um foco na ecologia. “Depois, faz-me uma pessoa mais consciente daquilo que é um espaço verde, do nosso papel enquanto colectivo na cidade, de como podemos transformar um relvado numa coisa muito mais diversa em termos de outros seres, mas como pelo meio se cria comunidade”, reflecte.
Perguntamos-lhe se pensa continuar a ser guardiã no futuro? “Agrada-me a ideia de viver em Lisboa e sentir que há um espaço onde cultivo amizades, relações com o solo, com as plantas. Posso vir cá cultivar e colher, comer cá ou em casa. Acho que isso é uma sorte que qualquer pessoa que se queira juntar ao projecto pode ter. Por isso, imagino que sim, que vou ficar cá.”