“Factura de electricidade para treinar e usar sistemas de IA é uma brutalidade”
O português Luís Cruz quer pôr engenheiros a criar sistemas de IA que consomem menos água e energia. Treinar novas ferramentas, como o ChatGPT, já está a agravar a crise climática nos EUA.
A pegada ambiental da inteligência artificial (IA) não pára de aumentar. A expansão dos centros de dados de empresas como a Amazon, a Meta e a Microsoft, responsável pelos servidores por detrás dos ChatGPT, está a agravar a crise climática no Sudoeste americano, revela uma investigação recente da revista The Atlantic.
Numa altura em que a seca na região obriga agricultores a colocar campos em pousio, estes espaços utilizam enormes quantidades de água e energia para manterem as baixas temperaturas dos servidores. Ao mesmo tempo, o funcionamento dos centros leva à libertação de toneladas de dióxido de carbono. O português Luís Cruz é uma das pessoas a procurar soluções para o problema que não é exclusivo aos EUA.
“No começo, apenas queria descobrir como é que podia fazer apps com IA que não gastassem toda a bateria dos telemóveis, mas com o tempo percebi que a área [da eficiência energética] vai muito além disso. O impacto ambiental da utilização da IA à escala mundial é enorme”, começa por explicar ao PÚBLICO o cientista da computação que se dedica à descoberta de formas mais "verdes" de criar programas informáticos nos Países Baixos e fundou a disciplina de Engenharia de Software Sustentável na Universidade de Tecnologia de Delft.
O especialista esteve recentemente em Portugal para alertar para o tema na 46.ª Conferência Internacional de Engenharia de Software (ICSE), que se realizou no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa.
O interesse na sustentabilidade energética surgiu há cerca de dez anos quando Luís Cruz estava a estagiar nos antigos laboratórios PARC, em Silicon Valley, nos EUA. O português precisava de criar uma app com IA para monitorizar dados fisiológicos e percebeu que era preciso começar a pensar em sistemas que consumissem menos energia.
“Por uma questão de privacidade de dados, não queríamos enviar informação para servidores externos. Tinha de ser tudo processado no telemóvel”, justifica. “Só que há uns anos os telemóveis tinham menos capacidade e os sistemas de IA eram ainda mais pesados. E ninguém quer uma app que vai consumir a bateria do telemóvel em meia hora.” Decidiu mudar a tese de doutoramento para se focar na eficiência energética de novos programas informáticos. Com o tempo, percebeu que o impacto é bem mais significativo.
“As pessoas não percebem logo porque olham apenas para o seu impacto individual. É preciso ver a questão à escala global”, salienta. “Imaginemos que utilizar um telemóvel consome cinco watts de energia. Parece pouco, mas se pensarmos no número de pessoas com um ou mais telemóveis, o número é muito maior. E chegamos a valores que mostram que usar o telemóvel gasta o equivalente a várias centrais de electricidade como Fukushima.”
Quando se fala em sistemas de IA, garante, o problema é ainda maior. Um grupo de investigadores do Texas, nos EUA, estima, por exemplo, que a Microsoft tenha utilizado 700 mil litros de água doce para treinar o primeiro modelo usado pelo ChatGPT e pelo chatbot da Microsoft, o Copilot. O processo também gerou cerca de 552 toneladas métricas de dióxido de carbono – o equivalente às emissões de 120 carros de passageiros com motores a combustão num ano.
A solução não é deixar de utilizar sistemas de inteligência artificial. “As novas ferramentas de IA podem trazer soluções para melhorar a área dos transportes da energia, da saúde, dos transportes. Temos é de garantir que o preço ambiental é menor”, reforça o especialista português.
Para Luís Cruz, a responsabilidade é dos programadores e das empresas que devem encontrar formas de diminuir o impacto ambiental. É um dos motivos que o levaram a criar a cadeira de Engenharia de Software Sustentável na Universidade de Delft. “Não devemos fazer com que as pessoas se sintam culpadas por tirar proveito de uma dada tecnologia. A responsabilidade é de quem cria [desenvolve os programas]”, nota.
Reduzir, reutilizar, reciclar
As soluções passam por criar modelos mais pequenos, usar um mesmo modelo para diferentes ferramentas, e evitar estar sempre a actualizar sistemas de IA com novos conhecimentos. “Muitas ferramentas de IA baseiam-se em modelos gigantes que não usam por inteiro porque se focam em questões muito específicas”, argumenta o português. “Há modelos mais pequenos que têm a mesma eficácia de modelos maiores.”
Luís Cruz defende a incorporação da política dos três R – reduzir, reutilizar e reciclar. “É preciso pensar em reduzir porque nem sempre é preciso um sistema com IA. Há problemas que se resolvem perfeitamente sem IA”, diz.
Actualmente, parece que há um chatbot com IA para tudo e todos. Nos primeiros três meses de 2023, após o lançamento do ChatGPT, o número de downloads de apps com "IA" no nome aumentou 1506% de acordo com dados da analista de mercado Apptopia, o que levou mais empresas a querer desenvolver estes sistemas. Isto nem sempre é necessário: em situações onde os dados não mudam frequentemente e a tarefa envolve apenas a introdução de informação num sistema, a complexidade da IA é desnecessária. Formulários tradicionais ou folhas de cálculo, como o Excel, podem ser o suficiente.
“Depois há a questão do reutilizar. Por vezes, podemos usar o mesmo modelo, pequeno, para duas tarefas diferentes”, continua o português Luís Cruz. “E é preciso pensar quando é que temos de retreinar um modelo. Nem sempre há benefícios óbvios em actualizar um modelo.”
Outra estratégia, sugere, é informar os utilizadores sobre o gasto energético das ferramentas de IA que usam em tempo real. “Imaginemos que era possível ver o gasto energético de cada pergunta que fazemos a um chatbot com IA?”, reflecte. Segundo Cruz, isto podia motivar as pessoas a moderar a utilização das ferramentas que por vezes são usadas, apenas, como corrector ortográfico ou dicionário de sinónimos.
Sustentabilidade como marca
Apesar da factura energética crescente, Luís Cruz revela-se optimista sobre o desenvolvimento de sistemas de IA mais sustentáveis. Pode ser uma forma de marcar a diferença, argumenta. “Os criadores do ChatGPT foram corajosos porque foram os primeiros a colocar um modelo à disposição das pessoas. A tecnologia não é nova, mas as outras empresas estavam com receio de mostrar o que a tecnologia podia fazer. Agora que foi dado o primeiro passo, começam a chegar vários modelos de outras empresas, e uma das formas de se destacarem é com a sustentabilidade,” teoriza.
Nas últimas semanas, a Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp) integrou o seu próprio chatbot com IA, ao estilo do ChatGPT, em várias das suas apps. O sistema, que ainda não chegou à União Europeia, depende do modelo Llama, disponibilizado em código aberto. “É um caso interessante porque partilham dados sobre o consumo energético [do Llama] de forma transparente. Perceberam que tinham de arranjar um factor de diferenciação alinhado com os valores da sociedade,” sustenta.
A legislação também pode ajudar, mas para Luís Cruz ainda é insuficiente. A lei da IA, recentemente aprovada pela União Europeia, promove a elaboração de códigos de conduta para a sustentabilidade ambiental dos sistemas de IA (artigo 60.º), mas não detalha como. “O AI Act é vago”, aponta o investigador português. “Menciona que as empresas devem adoptar boas práticas para usar recursos eficientemente, mas sem medidas concretas”, explica. Ainda assim, admite, é um ponto de partida. “A UE é um mercado relevante para muitas empresas, daí o facto de a legislação tentar promover a sustentabilidade é um passo importante.”
Explorar as vantagens financeiras pode, contudo, ser a melhor forma de atrair interesse para o tema. “Há muitos ganhos financeiros”, enfatiza Luís Cruz. “A realidade é que a factura de electricidade para treinar e usar sistemas de IA é uma brutalidade e, se a reduzirmos, os benefícios económicos também são grandes. Há que aproveitar esta dualidade para reduzir o custo ambiental.”