Já ouvimos Dark Matter: os Pearl Jam regressam à zona de desconforto

Ao 12.º disco, os Pearl Jam decidiram entregar a produção a um fã. Andrew Watt tirou-os da zona de conforto e pô-los a compor como banda. Dark Matter é lançado na sexta-feira.

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Dark Matter é o 12.º álbum dos Pearl Jam, sobreviventes do grunge
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20 de Outubro de 1990. Os Mookie Blaylock estão a dois dias do seu primeiro concerto, no Off Ramp Cafe, em Seattle, e em pleno processo de composição do primeiro álbum, que há-de sair no ano seguinte. Nesse mesmo dia, na costa oposta dos EUA, nasce Andrew Wotman, em Nova Iorque. Não há qualquer relação entre os dois eventos – por enquanto.

Mookie Blaylock era um nome provisório, inspirado no frenético base que ostentava o número 10 dos New Jersey Nets. A banda decide mudar de nome para algo mais definitivo, mas manteve a referência ao basquetebolista no disco de estreia, a que chamou apenas Ten. Foi um êxito explosivo. Andrew, por seu lado, cresceu a ouvir esse disco e os outros que se seguiram, tornou-se fã devoto e jurou a si mesmo que um dia iria trabalhar com a banda. Ou, pelo menos, assim o põe Stone Gossard em 2024, numa entrevista à Spin, agora que, 30 anos depois, os mundos de ambos efectivamente se cruzaram: na sala de captação, os Pearl Jam, de que Gossard é guitarrista; na régie, o produtor-sensação do momento, Andrew Watt.

O resultado chama-se Dark Matter, o 12.º álbum de estúdio de Pearl Jam, e verá a luz do dia esta sexta-feira, 19 de Abril.

Irmandade e longevidade

Tudo somado, o grunge não durou mais de meia década. Ainda assim, os anos do movimento foram intensos, vívidos, vertiginosos e quem os viveu dificilmente apostaria as suas fichas na longevidade de uma banda como os Pearl Jam. Uma ascensão meteórica, um frontman preso a demónios pessoais e avesso ao protagonismo, e as ondas de choque provocadas pela morte de Kurt Cobain em 1994 deixaram em muitos fãs o pressentimento de que o quinteto de Seattle poderia ser o seguinte a sucumbir sob o peso do sucesso.

Três décadas depois, os Pearl Jam são a última banda de pé – claro que também contam os Melvins e os Mudhoney, que nunca baixaram os braços, porém colados a um patamar de nicho – e Eddie Vedder é o derradeiro porta-estandarte do grunge, após as mortes de Layne Staley (Alice in Chains, Mad Season) em 2002, Scott Weiland (Stone Temple Pilots) em 2015, Chris Cornell (Soundgarden) em 2017, e, mais recentemente, Mark Lanegan (Screaming Trees, Queens of the Stone Age) em 2022.

Em 34 anos, nunca houve uma separação, nunca estiveram mais de cinco anos sem lançar música nova e as mexidas no alinhamento têm sido poucas – o membro mais recente é Matt Cameron, o quinto baterista da banda, chegado em 1998. Os restantes – Vedder (voz), Gossard (guitarra), Jeff Ament (baixo) e Mike McCready (guitarra) – são os elementos fundadores. “É uma irmandade”, disse Eddie Vedder à Mojo. “Pode ter havido alguns percalços pelo caminho. Mas superámo-los, porque olhamos uns pelos outros.”

Esse poderá ser o segredo da longevidade. Mas há outro ponto que importa não menosprezar: por esta altura, com 11 registos de estúdio, uma prolífica produção de lados B (que deram um disco duplo em 2003) e centenas de álbuns ao vivo, os Pearl Jam já não tinham de provar nada a ninguém. Isso libertou-os, pelo menos, para fazer música pelo prazer da música. Ou pela finalidade de manter a máquina a funcionar – não é inédito uma banda veterana fazer do lançamento de álbuns mera desculpa para dar concertos. Em particular numa era em que as digressões são fonte crucial de facturação.

Verdade seja dita, alguns dos discos que os Pearl Jam lançaram neste século – casos de Backspacer (2009) e Lightning Bolt (2013) – poderão cair nessa categoria, dos trabalhos feitos em piloto-automático e sem rasgo criativo. Mesmo que uma banda com três décadas de carreira esteja isenta da obrigação de inovar. É uma das vantagens de já não ter nada a provar. E quando se tem concertos esgotados sete meses antes, 24 horas após abertura da bilheteira, como aconteceu com a data garantida na edição deste ano do festival Nos Alive, a táctica parece funcionar. Entretanto, chega aos postos de escuta Dark Matter, e quebra-se o molde.

O desconforto é uma arma

O desconforto sempre foi uma das melhores aptidões criativas dos Pearl Jam. Despontou em Jeremy, porventura o mais desconcertante single a chegar aos tops em 1992, assente numa malha hipnótica de baixo de 12 cordas que soava a nada que se tivesse ouvido antes, guitarras cirúrgicas, coros encharcados de eco e a história de um rapaz de 15 anos que se suicidou diante da turma. Causar desconforto à audiência tornou-se recurso estilístico e os Pearl Jam sempre souberam manobrá-lo eximiamente.

Hoje deixou de ser toada dominante – há grandes diferenças entre compor quando se tem 27 anos e quando se tem quase 60 –, mas o desassossego não perdeu o seu lugar. Dá, aliás, um dos pontos altos a Dark Matter, com Upper hand, que emerge quando o disco vai a meio e o assalto às ondas de rádio da balada estereotípica Won’t tell termina numa nota de optimismo, para lhe suceder um crescendo tenso de teclado e guitarra, pintado de negro, e a voz tortuosa de Vedder a constatar “The distance to the end / is closer now / than it’s ever been” (“O fim está mais próximo do que nunca”).

A aproximação do final, porém, ganha contornos de esperança e abre caminho para Waiting for Stevie, o mais próximo que a banda já chegou da sua forma original desde que os anos 1990 terminaram. O entrelaçado de guitarra e baixo é épico, o músculo de bateria mostra Matt Cameron no seu melhor e Vedder a rasgar o céu encoberto, no seu registo mais alto. Uma séria candidata a favorita dos fãs – e a lugar cativo nos concertos da digressão que arranca em Maio no Canadá.

Igualmente predestinado a esse panteão, o single de apresentação que dá nome ao álbum também vem carregado de energia, suportado por um loop poderoso de bateria, guitarras compassadas e versos disparados contra ao autoritarismo populista: “Denounce the demigods”, “Renounce the demagogues”, “No tolerance for intolerance”. Afinal, é ano de eleições nos Estados Unidos, e é saliente a veia activista dos cinco de Seattle. Running, segundo single de avanço, é outra farpa apontada a Trump (“Dictator, love hater”), num registo mais próximo do punk, enquanto React, respond soa a citação de Devo e traz à conversa a guerra de trincheiras em que a América está mergulhada (“Are we at war with each other? We could be fighting together instead of fighting ourselves”).

Um fã aos comandos

Poderá não ser imediato – e só o tempo o dirá –, mas Dark Matter será talvez o álbum pelo qual os fãs têm esperado nos últimos vinte anos. E a mão de Andrew Watt foi decerto decisiva. “Tentei produzir este álbum a partir da plateia”, admitiu o produtor na festa de audição, que aconteceu em Fevereiro, em Los Angeles, citado pela Mojo – “O que queremos nós enquanto fãs de Pearl Jam?”

Bem espremidos os 11 temas que compõem o disco, estão lá os ingredientes que tornaram grandes os álbuns que ganharam estatuto de clássico. O desconforto, o nervo, a intervenção já mencionados. Mas também o imediatismo de Vitalogy (1994), o cocktail de sonoridades de Vs. (1993), a introspecção de No Code (1996). E Scared of fear, tiro de partida, bem podia fazer parte do alinhamento de Yield (1998), um riff sincopado ao estilo de Stone Gossard, refrão sempre a subir e energia de rock clássico herdeiro de The Who.

“Foi feita no primeiro dia [de estúdio]”, contou Gossard à Spin. “Sentámo-nos a malhá-la, e foi gravada durante o primeiro dia”, revelou Jeff Ament no evento de apresentação, citado pela Mojo. “Nem cinco minutos após termos o esqueleto [do tema], o Ed já tinha a base da letra.” São os Pearl Jam a voltarem a ser uma banda que cria como banda.

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Os Pearl Jam têm em Dark Matter uma prova de vida Danny Clinch

“Nós os cinco fazemos maquetas [das músicas] há imenso tempo”, acrescentou Gossard. “Mas eram esforços individuais, cada um a adicionar a sua parte.” Dark Matter nasceu de ter os cinco juntos em estúdio, a começar do zero, encorajados por Andrew Watt, que os retirou da zona de conforto dos seus estúdios caseiros. Watt já tinha produzido Earthling, o álbum a solo de 2022 de Vedder, de quem se tornou amigo e guitarrista de palco. O vocalista ficou tão entusiasmado pela sua forma espontânea de trabalhar que encorajou a banda a dar uma oportunidade a um fã com créditos firmados.

Andrew Watt começou por afirmar-se como compositor, produtor e instrumentista na pop ao mais alto nível, com Justin Bieber, Post Malone, Dua Lipa e Miley Cyrus no currículo. Entretanto, as coisas tornaram-se sérias: produziu os dois últimos álbuns de Ozzy Osbourne, o mais recente de Iggy Pop e o regresso dos Rolling Stones em 2023. “Somos todos actores na grande narrativa que o Andrew está a montar, enquanto colecciona as bandas favoritas da sua infância”, contou Stone Gossard à Spin.

Do onze titular que compõe Dark Matter, falta referir Wreckage, séria candidata a próximo single, uma canção à Eddie Vedder, que, consciente ou inconscientemente, a escreveu com Tom Petty e Tracy Chapman na cabeça. Talhada do mesmo pano de Sirens (2013), é canção que, ao final de algumas passagens já nos assenta e conforta como um velho par de pantufas.

Saltando para a recta final, há ternura ao estilo de Parachutes (2006) em Something Special, um tributo de Vedder às suas filhas Olivia e Harper, com participação do multi-instrumentista Josh Klinghofer, que integra a equipa de estrada da banda desde 2020. Há mais electricidade a lembrar The Who em Got to give, que começa discreta e se impõe de modo incremental a cada compasso e, como bom penúltimo fôlego num disco de rock, ganha tracção a partir da segunda metade. Vedder sobe de tom, atinge o registo gutural, os falsetes, as notas altas, e termina lá em cima.

Por fim, Setting sun traz um balanço que não assentaria mal em No Code, com uma voz no escuro que vai abrindo caminho, rasgando pontos de luz até que atinge um planalto onde a bateria abandona a mera marcação e Matt Cameron toma a dianteira, como um motor de explosão que transforma o tema num arrasto, e a letra ganha emoção, à medida que se repete uma interrogação, “Am I the only one hanging on?” (“Sou só eu que quero continuar?”), como alguém que tenta a todo o custo evitar uma despedida. “Let us not fade”, termina.

Há 30 anos, perante a ideia de uma banda periclitante, este tema soaria a um adeus, e seria suficiente para deixar fãs em pânico. Hoje, parece apenas uma porta aberta para continuar o caminho. Eddie Vedder: “Ainda nos devem restar um ou dois [discos]”. Talvez mais do que isso, se depender de Andrew Watt. Ou de outro fã que esteja agora a dar os primeiros passos. Temos tempo.

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