Como uma das cidades mais frias do mundo está a arrancar energia ao sol para sobreviver
Em Qaanaaq, uma região isolada no Árctico, a energia é muito cara e algumas pessoas abandonaram as suas casas. Uma equipa de cientistas está a tentar levar energia renovável para resolver o problema.
No gelo, muitas vezes “não há tempo”: é o que costuma dizer Toku Oshima, que está a trabalhar para levar a energia renovável a um dos locais mais remotos da Terra, em conjunto com cientistas e engenheiros da Faculdade de Dartmouth, dos Estados Unidos.
Aqui, não há calendário, a não ser as migrações das criaturas marinhas. Não há relógio, a não ser a cadência das marés. Toku pode caçar e pescar da mesma forma que os seus pais e os avós faziam: viajando em trenós puxados por cães, dormindo numa cabana de madeira que construiu com as próprias mãos. Nas montanhas escarpadas e nos fiordes gelados que rodeiam a cidade mais a norte da Gronelândia, os costumes antigos ainda estão vivos.
No entanto, esses costumes estão a ser ameaçados. As alterações climáticas provocadas pelos humanos alteraram os padrões meteorológicos e desfasaram os ritmos dos animais em relação ao gelo e ao sol. Os habitantes lutam para ganhar a vida através da caça e da pesca, o que os deixa incapazes de pagar o petróleo importado que mantém as suas casas quentes e iluminadas durante as longas noites do Árctico. O elevado custo da electricidade e do aquecimento obrigou algumas pessoas a abandonar os seus meios de subsistência tradicionais ou a abandonar a cidade por completo.
Os moradores de Qaanaaq deveriam poder aquecer as suas casas sem sacrificar a sua cultura, defende Toku Oshima. Mas, para isso, terão de se livrar do culpado por detrás do duplo desafio das alterações climáticas e da segurança energética: os combustíveis fósseis.
A obtenção de energia a partir do vento e da luz solar no local pode reduzir o custo de vida em Qaanaaq, aliviando as pressões financeiras sobre os residentes que já vivem no limite da sobrevivência. Além disso, pode ajudar a cidade a fazer a sua parte para controlar a poluição que aquece o planeta e que ameaça a sua própria existência.
O esforço desenvolvido neste sentido está a dar os primeiros passos, com os parceiros de Toku Oshima em Dartmouth ainda a desenvolver o equipamento que esperam instalar. Para serem bem-sucedidos num ambiente tão isolado e agreste, estão a apoiar-se na experiência daqueles que prosperaram nesta paisagem durante gerações. Cada protótipo é concebido especificamente para as condições de Qaanaaq e testado pelos próprios residentes.
Mary Albert, engenheira da Faculdade de Dartmouth e co-líder do projeto nos EUA, vê-o como um modelo potencial para os esforços de sustentabilidade em todo o mundo. “É a co-geração de conhecimento (...) para que possam continuar a viver onde querem viver e como querem viver.”
Mais energia, mais futuro
Para Toku Oshima, a iniciativa é o seu “presente para a próxima geração” – um investimento no futuro de Qaanaaq que abre espaço para as tradições do seu passado. “Se quisermos manter mais pessoas, temos de criar mais energia”, afirmou. “É a nossa cultura. Estamos a tentar manter a nossa cultura.”
Localizada a menos de 1500 quilómetros do Pólo Norte, Qaanaaq às vezes pode parecer “o fim do mundo”, diz Toku Oshima. Cerca de 650 pessoas vivem na aldeia de casas de madeira de cores garridas, situada numa estreita faixa de terra nua entre o gigantesco manto de gelo da Gronelândia e as águas geladas da baía de Baffin. Não há estradas que liguem Qaanaaq ao resto do país. Os visitantes, as compras e outros bens essenciais só podem chegar em aviões duas vezes por semana.
A cidade nem sequer existia até há 71 anos, quando os residentes foram deslocados à força da sua aldeia ancestral, situada num fiorde mais a sul, para dar lugar a uma base da Força Aérea dos EUA. No entanto, existe um espírito único em Qaanaaq, conta Oshima: “Temos vista para o oceano, temos montanhas. Nunca sentimos que alguém nos está a empurrar para baixo.”
Toku Oshima habitante de Qaanaaq, é uma espécie de líder não-oficial da cidade. Como artesã habilidosa, electricista formada e uma das poucas mulheres com licença de caçadora, impõe respeito tanto a homens como a mulheres.
Para as crianças de Qaanaaq, ela é a “Tia Toku”, fornecedora de doces, viagens de pesca e aulas de costura. Toku mostra-lhes como identificar fendas no gelo e prever o tempo. Ensina-os a limpar a carne e os pêlos das peles de foca, lembrando-lhes de que “se querem fazer uma coisa bonita, têm de se esforçar e ter paciência”.
Toku Oshima, que trabalha com cientistas e engenheiros para trazer a energia renovável a Qaanaaq, tenta estimular as ambições das crianças, esperando que olhem para ela, uma mulher com competências modernas que mantém as tradições dos seus antepassados, e imaginem futuros maiores para si próprias. “Quero mostrar o que é possível”, afirma.
Tudo é caro
Contudo, as possibilidades disponíveis para a população de Qaanaaq são cada vez mais limitadas. As alterações climáticas – combinadas com legislações mais rigorosas e restrições à exportação de animais – põem em perigo o seu modo de vida tradicional de caça às focas, morsas e narvais, dizem os residentes. Os ventos fortes e as ondas agitadas quebram cada vez mais o gelo marinho de que os caçadores necessitam para operar. O oceano demasiado quente mantém-se descongelado até semanas após o início da longa noite polar, criando condições demasiado escuras e perigosas para poderem trabalhar.
Os rendimentos cada vez mais baixos da caça não conseguem acompanhar o custo das necessidades modernas dos habitantes, como telemóveis e mercearia. “Agora tudo é caro”, confessa Adolf Simigaq, vice-presidente do sindicato de caçadores local.
Sobretudo a electricidade. Toda a electricidade de Qaanaaq provém de um gerador a gasóleo e a maioria das casas é aquecida a óleo. O combustível é entregue uma vez por ano, durante o breve período de Verão em que o gelo do mar derrete e os navios podem chegar à costa.
Embora a Dinamarca subsidie fortemente os carregamentos como parte do acordo de autogovernação do território, o frio intenso e os longos períodos sem luz solar significam que a procura por energia é muito elevada. Muitas famílias gastam mais em aquecimento e electricidade do que em comida.
“Os nossos números [de pesssoas] tornaram-se muito reduzidos”, diz Sofus Alataq, membro do sindicato. A maioria dos jovens adultos de Qaanaaq procura emprego na cidade, ou então muda-se para sul, para trabalhar numa das comunidades maiores e mais acessíveis da Gronelândia. Alguns residentes foram obrigados a matar os seus cães de trenó quando já não tinham dinheiro para os alimentar.
As consequências desta mudança estender-se-ão para além de Qaanaaq, diz Alataq. Em quase nenhum outro lugar da Gronelândia – ou de todo o Árctico – as pessoas continuam a caçar de caiaque e a adormecer ao som do antigo coro de cães de trenó a ladrar e a uivar durante a longa noite polar. É uma das suas preocupações: se essas tradições não conseguirem sobreviver aqui, poderão desaparecer da face da Terra.
“Sozinhos não podemos fazer nada”
Oshima estava a remoer nessa mesma preocupação enquanto ouvia uma professora da Faculdade de Dartmouth (EUA) chamada Mary Albert durante uma conferência em 2015. A apresentação reforçou sobretudo o que Oshima já sabia: que o aumento das temperaturas no Árctico estava a mudar irrevogavelmente a sua casa.
Mas Albert também tinha boas notícias: as fontes de energia renováveis estavam a tornar-se mais acessíveis, disse. A cientista descreveu como os painéis solares da sua casa em Vermont estavam a reduzir a poluição e os custos da electricidade. Isso levou Oshima a pensar: será que Albert poderia vir para Qaanaaq e ajudar a trazer energia renovável para a cidade?
O primeiro impulso de Albert foi recusar o pedido de Oshima. Ela era uma investigadora de neve e gelo – não uma especialista em sistemas energéticos. “Mas depois pensei: ‘Que grande desculpa... tu és engenheira...’”, recorda Albert. “Eles não estão a pedir que os ajude a inventar os próximos painéis solares de película fina – eles querem coisas práticas.”
Alguns meses mais tarde, Albert fez a árdua e dispendiosa viagem de vários dias do Vermont (EUA) a Qaanaaq. Enquanto ia de casa em casa, ouviu os residentes descreverem como a dependência dos combustíveis fósseis os deixava vulneráveis a interrupções na cadeia de abastecimento e dependentes de subsídios governamentais que podiam nem sempre estar disponíveis. Queriam uma fonte de energia barata e estável que os ajudasse a garantir os confortos modernos, mantendo as suas tradições ancestrais.
Oshima apreciou o desejo de Albert de fazer a diferença – um contraste com outros investigadores do Árctico que aproveitaram os conhecimentos dos membros da comunidade sobre a paisagem e a vida selvagem sem oferecer nada em troca. “Sozinhos em Qaanaaq, não podemos fazer nada”, disse. “Temos de encontrar aliados de alguma forma.”
Pouco tempo depois da sua visita, Albert conseguiu assegurar um financiamento de 2,6 milhões de dólares (cerca de 2,3 milhões de euros) da National Science Foundation e reuniu uma equipa de colegas investigadores de Dartmouth que poderiam elaborar uma estratégia para satisfazer as necessidades de Qaanaaq.
Chamaram à sua iniciativa Qulleq, uma palavra da língua inuktun que designa as lâmpadas de pedra-sabão que os gronelandeses usavam para iluminar as suas casas.
Um desafio difícil
A equipa depressa se apercebeu de que afastar Qaanaaq dos combustíveis fósseis seria um desafio difícil. O gelo pode interferir com o funcionamento das turbinas eólicas e as baterias gastam-se rapidamente com o frio.
O facto de Qaanaaq ser uma região remota acrescentou mais obstáculos. A equipa de Dartmouth só podia visitar Qaanaaq duas vezes por ano e, entretanto, a cidade não dispunha de técnicos com formação para reparar as máquinas avariadas. Se uma peça de equipamento se avariasse, os habitantes poderiam ter de esperar um ano inteiro até que os navios de abastecimento de Verão entregassem uma peça de substituição.
Oshima deixou o alerta do que tinha acontecido em Qeqertat, uma aldeia próxima onde a empresa estatal de energia da Gronelândia, Nukissiorfiit, tentou instalar painéis solares. O sistema foi concebido tal como os existentes em locais mais temperados, dependendo de inversores para transformar a electricidade de corrente contínua dos painéis em electricidade de corrente alternada que pudesse chegar às casas das pessoas. Mas quando os frágeis inversores falharam ao fim de alguns anos, os residentes não tinham dinheiro nem equipamento para os substituir.
“Não se pode simplesmente colocar algo no chão e dizer: ‘Aqui está o que usamos onde vivemos’”, disse Albert. “É preciso ouvir muito, muito bem as suas necessidades.”
Foi ao sentar-se com os residentes nas suas casas que a equipa identificou um dos seus primeiros alvos: as próprias casas. A maioria foi construída com kits concebidos para o clima dinamarquês e não para o clima da Gronelândia. Assim, a estudante de doutoramento Alyssa Pantaleo juntou-se ao marido de Oshima, o carpinteiro Kim Petersen, para encontrar alternativas com melhor isolamento.
Criaram um design modular que pode ser facilmente construído a partir de materiais que cabem dentro de um único contentor marítimo. Petersen espera começar a utilizar o projecto para construir casas económicas para os pescadores de Qaanaaq no próximo ano.
Em seguida, os investigadores do Qulleq analisaram a forma como Qaanaaq poderia satisfazer as suas necessidades de electricidade durante o Verão com energia solar, permitindo-lhe desligar os seus geradores a diesel durante metade do ano. Descobriram que a mudança poderia poupar à empresa de energia Nukissiorfiit entre 10.000 e 200.000 dólares (o correspondente a entre 9175 a 183.510 euros) por ano e a empresa de electricidade está agora em conversações com Pantaleo sobre a implementação das recomendações da equipa.
A investigadora está a trabalhar na adaptação de aquecedores de ar solares para funcionarem com a casa-modelo de Pantaleo. Os dispositivos têm poucas peças móveis, diz Mary, e embora só funcionem quando o sol está a brilhar, o calor que geram “é totalmente gratuito”.
Outro antigo aluno de mestrado está a desenvolver uma turbina simples que pode converter a energia eólica directamente em calor para as casas das pessoas. Uma variação desse projecto, instalada em duas casas no ano passado, suportou o Inverno árctico bombeando cerca de 400 watts de energia, o suficiente para aquecer uma pequena divisão.
“É pequeno, mas é uma prova de conceito”, acredita a engenheira e investigadora. Mary Albert está agora a ajudar Petersen a candidatar-se a financiamento do Governo da Gronelândia para construir uma turbina eólica maior para alimentar as casas modulares que ele planeia construir.
Habilidade no fim do mundo
Várias das inovações do projecto vieram da própria Toku Oshima. Apesar de não ter formação como engenheira, uma vida inteira a tirar o máximo partido dos recursos limitados de Qaanaaq incutiu-lhe uma aptidão para a invenção. “Quando se está no fim do mundo, é preciso consertar muitas coisas sem ajuda”, disse Toku.
Um dos muitos exemplos dessa máxima foi ter construído um desidratador de peixe com recurso a materiais recolhidos no lixo. Se outros pescadores tivessem este instrumento, diz para Mary Albert, poderiam cortar e transformar as suas capturas na cidade, o que lhes permitiria cobrar mais pelas suas pescarias.
Assim, a dupla concebeu uma nova versão móvel do dispositivo que funciona com energia solar. Agora, os pescadores de Qaanaaq vão poder levar o primeiro protótipo para o gelo nesta Primavera.
Sentada à entrada da sua pequena cabana de pesca, rodeada pelo vasto silêncio branco do gelo marinho, Toku Oshima diz esperar que o projecto ajude as pessoas a sobreviver neste canto gelado e isolado do planeta durante as gerações vindouras. “Não é só para mim”, diz Oshima. “É para o Árctico. É para todas as zonas frias e escuras.”
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post