“400 litros de água quente para lavar uma barrica de 225 litros? Isso é um exagero.” Fitapreta é o 21.º produtor no PSVA
A Fitapreta é o mais recente certificado pelo Programa de Sustentabilidade dos Vinhos do Alentejo. Tem a vinha em sequeiro e no meio da agrofloresta. Água, só gasta a que for estritamente necessária.
A Fitapreta, a 10 quilómetros de Évora, no Paço do Morgado de Oliveira, é o mais recente certificado pelo Programa de Sustentabilidade dos Vinhos do Alentejo (PSVA), 'selo' que já soma 21 produtores 'encartados'. Para chegar à adega onde o consumo de água é gerido com rédea curta, entre outras poupanças, ambientais e económicas, é preciso percorrer um estradão de onde se avista muita vida, mas não se vêem logo as vinhas.
Só quando a terra batida se aproxima do bonito palácio do século XIV, que António Maçanita e Sandra Sárria reabilitaram em 2017, é que vemos as videiras, integradas numa paisagem onde há muitas árvores e arbustos, os amontoados de pedra típicos do Alentejo... É isto a agro-floresta, um sistema hoje tido como receita para a sobrevivência da agricultura, por potenciar a resiliência das culturas, nomeadamente a da vinha.
"Chegámos a um território que já existia e que há mais de 100 anos estava em pousio e com vacas em modo extensivo, e pusemos vinhas onde era possível", explica Leonor Frazão, enóloga de formação e responsável pela viticultura e pela "pasta" da sustentabilidade na Fitapreta.
Dentro e fora de portas, a empresa tem vindo a trabalhar diferentes métricas com vista a tornar a sua produção sempre mais sustentável. Entre outras medidas, a herdade de Évora, integralmente em modo de produção biológico, tem cerca de 70 ovelhas que dão conta das ervas na vinha — enrelvamentos semeados e espontâneos ajudam os solos a absorver a água e a manter a humidade e preparam-nos para anos climáticos adversos — e galinhas para fertilizar os solos — os seus excrementos são muito ricos em azoto —; cultiva em 6 hectares de bravos com o objectivo de criar os porta-enxertos mais adequados àquele terroir; faz ensaios de corte de coberto vegetal, nomeadamente de um tipo em que se promove o mulching (cobertura morta); tem desde 2023 uma garrafa mais leve (400 gramas); e, na gestão de resíduos, devolve embalagens aos fornecedores e, para a expedição, opta por caixas de cartão mais 'despidas'.
"Save water, drink wine"
Mas o que mais impressiona na Fitapreta, depois da paisagem (e talvez do bonito palácio medieval), é mesmo a sua gestão de recursos hídricos. O produtor escolheu sobretudo castas autóctones, mais resilientes ao calor e à secura — algumas do encepamento antigo do Alentejo como o Folgasão ou o Perrum —, e plantou-as (em 2017, 2019 e 2020) em regime de sequeiro. E isso apesar de haver água na herdade. "As plantas estão habituadas ao stress. Na altura, tivemos uma taxa muito grande de insucesso e toda a gente nos chamou malucos", conta Sandra Sárria.
No Paço do Morgado de Oliveira, a vinha está espalhada por 73 mini-talhões e, mesmo que cada caso seja um caso, porque depende de vários factores — do ano de plantação, local, da conjugação de porta-enxerto, clone e casta... —, há sempre "maior dificuldade em atingir a velocidade de cruzeiro" em vinhas sem irrigação. Mas, apesar da dificuldade, a visão é a longo prazo, como explica Leonor: "Acreditamos que estas escolhas farão com que as vinhas que estamos a plantar hoje sejam vinhas de futuro, porque não acreditamos numa numa viticultura a 20 ou a 15 anos".
Sete linhas de água atravessam a propriedade, que fica próxima da nascente na freguesia de Nossa Senhora da Graça do Divor e é atravessada pelo aqueduto que em tempos abastecia Évora. E a equipa da Fitapreta soube aproveitar esse recurso, colocando as plantas nas zonas de escorrência dessas águas superficiais. A água segue o seu caminho e vai bater a duas charcas, onde o produtor também armazena água da chuva e água proveniente de duas estações de tratamento de águas residuais (ETAR), muito bem disfarçadas na paisagem. "Inicialmente pensámos em usar a água para a rega. Mas depois resolvemos não regar. A água que usamos [regam apenas nos dois primeiros anos após a plantação] é do furo, da nora", partilha Sandra, que afiança que a água tratada "não deve estar muito má", porque há "ali um casal de lontras a viver".
Se por um lado, os ensinamentos de 15 anos de Fitapreta lhes diziam, em 2017, que "as vinhas sem rega [que exploravam] eram aquelas que davam os melhores vinhos", como conta Sandra, por outro, quando foi para desenhar a nova adega — dois edifícios simétricos, ligados por tubagem subterrânea — sabiam já onde se gastava mais energia e procuraram ser mais eficientes. A todos os níveis.
Instalaram cubas com capacidades complementares, a pensar nas trasfegas de vinho. Colocaram portas de vidro em todas as divisões, para conseguirem "trabalhar sem depender de luz artificial". Aproveitaram o declive natural do terreno, para trabalhar com a gravidade e sem bombas.
E também criaram procedimentos com vista à poupança de água. Da lavagem de mãos (nas casas de banho, consciencializam-se os trabalhadores com humor: “save water, drink wine” - 'poupe água, beba vinho') à lavagem da adega. Muitas vezes nas adegas "passa-se água por defeito", nota Leonor, defendendo que é possível gastar apenas o suficiente, se se tiver os consumos quantificados.
Varrer primeiro, usar pistolas nas mangueiras, utilizar fitas de peracético e de pH para verificar a efectividade da lavagem, utilizar produtos e/ou vapor para desincrustar antes de lavar e reutilizar a última água de lavar uma cuba no primeiro enxaguamento da cuba seguinte são algumas estratégias que já estão no "chip" da equipa da Fitapreta.
João Barroso, director do PSVA, que acompanhou a reportagem do PÚBLICO na Fitapreta, interrompe, por esta altura, para perguntar pelos consumos na adega e partilha que vai ouvindo falar de um consumo de 400 litros de água para lavar uma barrica. "Isso é um exagero, João. Com água quente? 400 litros de água quente para lavar uma barrica de 225 litros? No way." Para "uma lavagem top", na Fitapreta gastam-se 150 litros de água para lavar o mesmo casco e 600 litros para lavar uma cuba de 12.600 litros. E, recentemente, instalaram-se contadores que permitirão aferir o rácio de água consumida para produzir um litro de vinho.
Free cooling e luz natural
O projecto Fitapreta conta agora duas décadas. Começou em 2004 com António Maçanita e o especialista em viticultura David Booth, que viria a falecer em 2012. Sandra Sárria fazia parte da equipa desde 2008 e em 2015 Maçanita convidou-a para ser sua sócia.
Maçanita e Booth "começaram por arrendar vinha e adegas" e a Fitapreta foi depois "saltitando por várias casas", conta a enóloga, "até que em 2008" a dupla encontrou uma adega inactiva perto da Azaruja. "Foi aí que ficámos durante uns anos. E sempre que íamos para lá a adega, víamos da auto-estrada este edifício", recorda. António não descansaram enquanto não o conseguiram comprar.
O paço medieval, fundado em 1306, foi reabilitado em 2017, para acolher parte da nova adega, eventos vários e, em breve, uma cozinha que permita oferecer, entre outras experiências, uma refeição farm to table. Logo ao lado, foi construído de raiz um edifício novo. Nessa zona 'nova', "é feita toda a parte suja" da vinificação, enquanto no palácio fermenta a maior parte dos mostos e estagiam depois os vinhos.
No edifício moderno, do arquitecto Tiago Sobral, "a intenção foi escolher materiais que fossem sustentáveis", explica Sandra Sárria, junto à construção semi-enterrada, toda revestida a cortiça — "faz um óptimo isolamento" — e com mais de 40 clarabóias. Já as paredes grossas do edifício histórico, onde recentemente foi descoberto um lagar do século XV, permitem poupar na refrigeração: nas vindimas trabalham 24 horas por dia e, à noite, promovem o free cooling (abrem portas e janelas e deixam a noite arrefecer a adega).
"Um pequeno caso de estudo"
No total, a Fitapreta explora cerca de 100 hectares de vinha: 36 no Paço do Morgado de Oliveira, mais 33 no Redondo (vinhas com 54 anos, de onde saíram varas para replicar no Paço esse "Alentejo antigo, em que ainda não existia Aragonês ou Alicante Bouschet") e o restante são vinhas de fornecedores em Fronteira e do outro lado da Serra D'Ossa que a empresa explora directamente.
João Barroso chama-lhe "um pequeno caso de estudo do que se quer que seja a vinha do futuro" e nota que, "se calhar, a vinha do futuro ainda será mais radical e terá um carvalho ou outro no meio da vinha". Mas Leonor Frazão diz: "aqui, na verdade, nós somos abençoados, no sentido em que isto é mesmo fora de série."
O que a técnica quer dizer é que, quando pegaram na propriedade, "tudo aquilo de que hoje se fala em sustentabilidade", dos abrigos para os animais às galerias ripícolas, passando pela flora que atrai insectos auxiliares, já ali existia. "Isto já estava por si só regenerado quando plantámos as vinhas e aquilo que queremos é não estragar." "A vinha está perfeitamente integrada no meio de todos os arbustos e das árvores. E isso vai ajudar nos ensombramentos, vai ajudar a combater as ondas de calor. Em média, uma zona sombreada tem 3 graus menos que uma zona não sombreada. É literalmente mais fresca", explica João Barroso.
Ajudará, claro, ter um ponto de partida destes. Mas o "não estragar" tem muito que se lhe diga. O PSVA, em que a Fitapreta estava inscrita desde 2018 (havia outras prioridades e aconteceu uma pandemia pelo meio), permitiu criar "uma disciplina" e "obrigou a uma mudança operacional", nota o engenheiro ambiental responsável pelo programa. E hoje "toda a adega funcione com esse chip", assevera Leonor.
Também na vinha há uma filosofia que raramente se vê no sector. A saúde dos solos é hoje tida como vital para ter vinhas resilientes e há quem, por essa razão, inocule solos com microorganismos de interesse. Mas Leonor pergunta: "se eu por debaixo de uma azinheira, onde não passa um tractor, pegar num pedaço de solo que não é mexido há 100 anos, e fizer uma infusão com aquilo, isso não é tão válido como a criar a minha própria microbiologia?"
É, é replicar a vida microbiana de um ponto da propriedade noutro. "O que vemos aqui é um exemplo do que ainda vemos pouco. Mas, no futuro, vamos ter de trazer ainda mais a floresta para o agrícola", sentencia Barroso, que lembra que "uma produção sustentável é um mundo: é as pessoas, é a água, é a biodiversidade, são as ovelhas, é a desmaterialização do produto, é muito mais."
"Eu costumo dizer que a produção biológica, a vegan, a produção integrada e a biodinâmica são tudo varetas de um guarda-chuva que é a produção sustentável." E que, no conjunto dos 21 produtores certificados no PSVA, já representa "quase 35% do volume de vinho do Alentejo e 20% da área da região", num total de "6.000 hectares".
Até ao final de Março, revelou ainda João Barroso, aumentarão estes números, com "mais dois produtores de grande reputação a certificarem também".