Aqui na América
Panamá, Gronelândia e Canadá: fazer a América grande outra vez
Notas made in USA sobre a vida americana. Pedro Guerreiro escreve a partir dos Estados Unidos.
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Como em tantas outras nações, incluindo Portugal, a história dos Estados Unidos é também uma história de expansão territorial. A Compra do Luisiana aos franceses duplicou o tamanho do país em 1803, muito para lá do território do actual estado do mesmo nome (quase todo o Midwest e a bacia do Mississípi tornam-se norte-americanos nessa altura). Uma verdadeira bagatela: 15 milhões de dólares, à época, que equivalem hoje a cerca de 350 milhões.
Em 1819, desgastados pela Guerra Peninsular e apostados no México, os espanhóis cedem aos norte-americanos a Florida, que nunca controlaram por completo. O Texas, depois da separação do México e de uma curta independência, foi anexado em 1845. A guerra com os vizinhos mexicanos, nos três anos seguintes, termina com a incorporação de vastas áreas do Sudoeste, incluindo a Califórnia e o Arizona. Nessa mesma altura, os norte-americanos celebraram o Tratado do Oregon com os britânicos, consolidado o seu controlo do Noroeste Pacífico.
O período de expansão territorial prosseguiu para lá daquilo que são hoje os lower 48, o território contíguo dos Estados Unidos entre o Atlântico e o Pacífico, onde reside a quase totalidade da sua população. O Alasca foi comprado à Rússia em 1867 por sete milhões de dólares, à época, que equivalem hoje a pouco mais de 125 milhões de dólares. Outra bagatela histórica, tendo em conta os tremendos recursos minerais do território, incluindo petróleo, e a sua posição estratégica entre o Árctico e o Pacífico, e entre a Rússia e o resto dos Estados Unidos.
O Havai foi anexado em 1898, após o derrube da monarquia no arquipélago. A guerra com os espanhóis, no mesmo ano, deu Porto Rico, Guam e as Filipinas aos Estados Unidos. Na viragem para o século XX, os norte-americanos tomam também posse de uma parcela da Samoa, da zona do Canal do Panamá e da Baía de Guantánamo, onde até hoje mantêm uma base militar e um infame campo de detenção.
No pós-guerra, em 1946, as Filipinas tornaram-se independentes. Na segunda metade do século XX, outros territórios do Pacífico como Palau, a Micronésia e as Ilhas Marshall também abandonaram a tutela norte-americana. Em 1999, consumou-se a entrega do Canal do Panamá ao país centro-americano do mesmo nome.
Não são perdas relevantes. Restam aos Estados Unidos os 40% mais férteis e ricos da América Norte, suficientemente distantes dos seus inimigos, e com mar aberto a ligá-los aos principais mercados mundiais. É também a geografia que explica a riqueza e o poder norte-americano (para uma aula introdutória de geopolítica, leiam Prisioneiros da Geografia, de Tim Marshall).
Descontando as ocupações temporárias em tempos de guerra ou as centenas de bases e instalações militares que os EUA mantêm até hoje, declaradamente ou não, em mais de 70 países - e é um desconto bastante generoso, admita-se - no papel, a expansão norte-americana cessou há muito.
Soa a outros tempos, então, a insistência do Presidente-eleito norte-americano, Donald Trump, em falar em novos acrescentos territoriais. O seu primeiro mandato presidencial já tinha ficado marcado pelo episódio da Gronelândia, com Trump a propor a compra da gigantesca ilha árctica à Dinamarca (que recusou sequer discutir a ideia "absurda"). Não se pense que foi um delírio momentâneo: o republicano voltou a falar na hipótese ao anunciar, este fim-de-semana, a sua escolha para a embaixada em Copenhaga, aludindo a imperativos económicos e securitários, e levando o primeiro-ministro do governo autónomo da Gronelândia, Mute Egede, a reiterar que a ilha não está à venda.
Parece uma fixação bizarra, mas não é. Pense-se na Groenlândia como um segundo Alasca, estrategicamente posicionado entre o Atlântico e um Árctico cada vez menos gelado (logo, cada mais acessível e apetecível), e sabe-se lá com que recursos escondidos sob o seu manto branco.
Também neste fim-de-semana em que Trump parece ter passado parte do seu tempo a olhar para o mapa-mundo, o Presidente-eleito veio ameaçar o Panamá com a possibilidade de vir a exigir a devolução do seu canal, por onde passa anualmente 2,5% do comércio marítimo global, e de que os norte-americanos são o seu maior cliente, com a China logo atrás e com uma presença crescente nos portos da região. Pequim já veio avisar que apoiará sempre "a justa luta do povo panamiano pela sua soberania".
Têm também poucos dias as piadas de Trump na sua rede social, a Truth Social, sobre uma hipotética anexação do Canadá, um dos alvos das ameaças do republicano de vir a impor pesadas taxas aduaneiras a partir de 20 de Janeiro - que aceleraram esta semana a crise política em Otava com a demissão da ministra das Finanças, Chrystia Freeland, em ruptura com Justin Trudeau, entretanto despromovido por Trump a "governador do grande estado do Canadá".
Há piadas que não são para levar a sério, mas o subtexto é de registo. Para a doutrina Trump, as fronteiras e a soberania alheia são para respeitar até ao dia em que tiverem que deixar de ser, por um qualquer imperativo estratégico. Não destoa muito da visão de Vladimir Putin de uma Rússia cujas fronteiras se estendem até onde estiver o último russo, seja na Ucrânia, na Geórgia ou no Báltico, ou da visão de Xi Jinping de uma China em marcha imparável para a reunificação e a hegemonia.
Que ninguém lhes lembre dos Açores. Feliz Natal.