Gilberto Igrejas: “Estamos a trabalhar na grande reforma das denominações de origem Douro e Porto”
O IVDP prepara-se para enviar à tutela uma série de propostas de alteração à lei que regulamenta as denominações de origem na região demarcada do Douro, revela em entrevista o seu presidente.
Desde a última vindima no Douro, que expôs definitivamente a grave crise que a região há muito atravessa, que o presidente do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP) se mantinha em silêncio. Em entrevista ao PÚBLICO, pedida já nessa altura e agora possível à boleia da divulgação dos dados da comercialização em 2023, Gilberto Igrejas revela que o Conselho Interprofissional do IVDP se prepara para enviar ao Ministério da Agricultura, que tutela o instituto, uma série de propostas de alteração ao decreto-lei que regulamenta as denominações de origem na região demarcada. Sem revelar em concreto que propostas são essas, diz que a discussão mais difícil se faz em torno da redução da produtividade máxima por hectare, que a avançar terá sempre consequências ao nível do rendimento dos viticultores.
Gostava de começar pela Casa do Douro. Que competências continuarão a ser só do IVDP e quais aquelas que serão partilhadas com o novo organismo de natureza pública?
Relativamente a esse assunto, como deve calcular, até porque estive envolvido nas audições finais da Assembleia da República, vou esperar que o diploma siga a sua via. Quando o diploma vir a luz do dia, após a apreciação do senhor Presidente da República, poderemos falar.
Mas no que foi aprovado percebemos já que há competências que passarão para a Casa do Douro e outras que serão de ambos. Controlar, promover e defender as Denominações de Origem (DO) e as Indicações Geográficas (IG); emitir parecer obrigatório sobre normas no comunicado de vindima; controlar e manter o cadastro de vinhas; fiscalizar viticultura e produção; até o benefício.
Sim, sim, estamos a falar de competências que actualmente estão na lei orgânica do IVDP. É um facto. Eu disse isso na Assembleia da República, que a sua implementação em parceria causava alguma dúvida.
Disse que gerava dúvida, mas defendeu que deviam estar só na Casa do Douro ou...
Não. Fui convidado para ir à audição, fui e dei o meu parecer. Mas eu tenho uma tutela que é o Ministério da Agricultura e da Alimentação e esses assuntos são tratados ao nível da tutela. Agora vamos esperar que o senhor Presidente da República se pronuncie e quando o diploma final sair...
Sente que algo ainda pode mudar quando essa lei for ao Presidente da República.
Não interprete isso assim. Eu gosto de trabalhar, como cientista que sou, com causa, consequência e efeito. E, portanto, vou aguardar pelo final, apenas e só. O senhor Presidente da República agora terá que apreciar o diploma.
Fica a sensação de que se esvazia o instituto e o professor foi reconduzido por mais cinco anos há pouco tempo.
É a sua apreciação, mas não teço comentários.
Uma das questões mais polémicas na iniciativa legislativa era um registo cadastral. O PSD, pela voz do deputado João Moura, lembrava que o IVDP pagou milhares de euros pelo cadastro quando foi extinta a antiga Casa do Douro e questionava se agora a nova Casa do Douro teria também de pagar para voltar a ter ferramenta?
Eu não estava cá, mas sei que houve uma aquisição desse cadastro à Casa do Douro, há um pagamento que foi feito pelo IVDP. Mas o melhor é falar com o deputado João Moura e perguntar-lhe especificamente aquilo a que se refere.
Falemos da crise que atravessa a região. Há quem defenda que se deveria arrancar vinhas para equilibrar a oferta e a procura, reduzir a produção máxima permitida por hectare, que é muito mais elevada face à produtividade real da região. Isso está a ser estudado?
O Conselho Interprofissional do IVDP constituiu grupos de trabalho para estudar dossiês particulares e um dos temas que está em análise — e amanhã [ontem] vamos ter mais uma reunião — é precisamente a questão da produtividade por hectare, de saber se devemos ou não manter a produtividade por hectare que temos actualmente, 7500kg por hectare, ou se devemos mexer no rendimento na produtividade por hectare, com as vicissitudes que tal decisão vai acarretar seguramente.
Que são?
Se mantivermos a produtividade por hectare, à partida as pessoas poderão produzir mais quilos por hectare. Se a diminuirmos, a matéria-prima vai ser menor e vai diminuir a oferta. Vai haver uma relação directa entre a oferta e a procura, isso é óbvio. Agora, o que está aqui em causa são as implicações para o agricultor. Criámos um grupo de trabalho para saber quais são as implicações directas e indirectas a curto, médio e longo prazo que esta decisão pode acarretar.
Quando discutimos no Conselho Interprofissional estas matérias, discutimos também as suas implicações para as próximas gerações. É preciso ver um conjunto de medidas. Olhe, posso falar-lhe noutra que está em discussão: a eliminação do stock mínimo de 75.000 litros para o vinho do Porto. Essa medida já foi votada, unanimemente, e deixa de existir essa obrigatoriedade.
Também foi votada, há um tempo atrás, a questão da rotulagem das vinhas velhas como uma mais-valia para a preservação do património genético, não descurando a possibilidade de reestruturar vinhas, mas preservando o património genético das castas do Douro. E agora vamos chegar a uma tomada de posição em relação à produtividade por hectare.
A alteração da produção máxima permitida por hectare também influenciaria a valorização da uva? Ou seja, produzir-se-ia menos, mas as uvas seriam mais bem pagas.
Claro. No Decreto-Lei 173/2009 [que regulamenta o estatuto das denominações de origem e indicação geográfica da Região Demarcada do Douro], aquilo que nós estamos a ver é precisamente como é que medidas estruturais que nós estamos a projectar podem ter uma implicação directa ao nível da valorização da matéria-prima. Estamos a falar de uma região de viticultura de montanha, onde é muito mais difícil cultivar e os custos de mão-de-obra são muito maiores. Temos que acautelar que as medidas concretas que nós vamos propor à senhora ministra da Agricultura e da Alimentação — foi esse o desafio que a senhora ministra lançou ao Conselho Interprofissional — poderão resolver os problemas estruturais que temos vindo a debater e acautelar o futuro da região.
Vão propor uma redução da produção por hectare?
Eu não lhe estou a dizer que vai sair esse caminho, estou a dizer que está em discussão. Por outro lado, também estamos convictos que o aumento de fiscalização de áreas de vinha menos estudadas, e onde temos vinhas velhas, pode ajudar a valorizar aquilo que nós produzimos hoje como DOP. Os vinhos produzidos a partir de vinhas velhas, com menores produtividades por hectare, é certo, têm outras valências ao nível do mercado e do preço unitário por litro dentro da garrafa. Também queremos continuar a aposta que temos vindo a fazer no digital e na inovação científica e tecnológica. Temos vindo a instalar sensores na região que nos ajudam a conhecer as alterações climáticas e até a perspectivar como será a viticultura que temos hoje na região demarcada do Douro daqui a 30 anos.
A principal vantagem de acabar com o stock mínimo é facilitar também a entrada de novos agentes económicos.
Claro. E não só, porque estamos a falar sobretudo de jovens enólogos que vão poder ter essa disponibilidade para produzir vinhos do Porto e que não vão produzir vinhos do Porto em quantidade. Estamos a falar aqui de uma nova revolução. Tivemos em tempo os "Douro boys" e agora podemos ter os "Porto boys". Será importante essa entrada de sangue novo no vinho do Porto, poderá aportar um novo espírito de comunicação e por esta via haver uma valorização do preço unitário de garrafa. Vão produzir menos garrafas, mas vão, seguramente, querer vender essas garrafas a um preço diferenciado.
Voltando à produtividade, no que estão a estudar está, por exemplo, a possibilidade de apertar a malha de certificação da DO “Douro”?
A malha é muito apertada. A certificação dos vinhos do Douro e do Porto obedece a critérios muito rigorosos, e não é só ao nível da fiscalização.
Então há é muita produção, é isso?
Eu não disse que a produção é muita. O que eu digo é que nós temos de arranjar medidas que permitam escoar o produto a um preço que valorize a continuidade do trabalho por parte do agricultor. Não digo que a produção é muita, porque, se nós conseguirmos vender tudo, a produção até pode ser escassa.
Mas não vendem, não é? E é tudo DO. O IG não representa nada.
Por isso é que eu dizia que a produtividade é [só] uma questão. A nossa certificação é muito exigente, é um símbolo de garantia. E os nossos critérios de exigência estão sempre a aumentar. Está a aumentar quando nós compramos equipamentos de ponta que permitem uma certificação muito mais célere. Quando coleccionamos dados que nos permitem fazer correlações laboratoriais de inferência de qualidade com um determinado tipo de parâmetros. Quando, nas nossas acções de fiscalização e controle, fazemos todos os dias visitas aos agentes económicos.
Não conheço nenhuma região que tenha o conjunto de resultados que nós temos e que permitiram, é bom dizê-lo, que hoje consigamos ter um Interprofissional a discutir estas matérias. E, por exemplo, ao nível da certificação, o número de análises realizadas em 2023, até Outubro, foi de 162.254. Isto mostra bem o trabalho que o IVDP vai coleccionando ano após ano e que permite que hoje tenhamos projectos de inteligência artificial para trabalhar estes dados de forma massiva e que poderá ajudar-nos a perceber o que fazer melhor no futuro, a perceber o investimento e o lucro que tivemos em determinado tipo de acções e se essas acções podem servir modelo para delinear outras acções.
Na certificação, temos actualmente um projecto que visa a utilização da inteligência artificial ao nível da certificação de vinhos, precisamente com a utilização de determinados indicadores que nos podem ajudar a responder de uma forma mais eficaz, aumentando os níveis de acuidade dentro do laboratório.
Reduzir a produção máxima permitida por hectare terá consequências na questão do desequilíbrio do preço para DOC Douro e vinho do Porto, a já gasta questão de a mesma uva ter dois preços?
Não lhe posso responder a essa questão sem antes saber qual vai ser a conclusão do grupo de trabalho que avaliar isso. No decreto-lei 173/2009, há dois artigos que estão precisamente em discussão e vão a votação nesta altura, o 10.º e o o 12.º, e que têm relação directa precisamente com essa matéria. Só falta votar esses dois artigos, de [propormos] alterar ou não a produtividade por hectare [autorizada].
O preço pago pela uva é uma das questões mais discutidas na região. E ninguém está contente. Uns, porque, vendendo para vinho do Porto, recebem o mesmo que recebiam há 20 anos. Os outros porque não recebem para cobrir custos de produção.
É verdade que, no caso do vinho do Porto, não tem existido essa valorização anual. Este ano, julgo que se cifra em 2,3% o acréscimo do pagamento da DOP Porto deste ano em relação à vindima de 2022. No caso da DO Douro, houve uma ligeira quebra no ano passado. Em 2022, eram 525 euros, em média, por uma pipa. Este ano, pelos valores que nós temos — e no final do mês, vamos fechar —, a média está nos 505 euros. Houve uma desvalorização de cerca de 20 euros.
Mas 2023 também foi o ano em que vimos filas de produtores à porta das adegas desesperados para entregar uvas.
É verdade, até havia pessoas que diziam que esperavam que o ano, em termos médios, fosse muito pior.
Eu sei que não quer falar da Casa do Douro, mas os excedentes configuraram uma situação dramática na última vindima e o organismo agora restaurado terá a possibilidade de adquirir vinho para construir stocks. Pergunto-lhe se não seria mais interessante que a Casa do Douro pudesse comprar esses excedentes de produção, deitando a mão aos viticultores?
O IVDP não vai comprar excedentes, como deve calcular. Não é da nossa competência. Somos o organismo certificador, que fiscaliza e protege as denominações de origem.
Por falar nas cooperativas, tem opinião sobre essas adegas poderem gerir as vinhas dos seus associados, como forma de impedir o abandono de parcelas, por várias razões? Há mais de um ano, numa reportagem do PÚBLICO, falavam-nos disto em Favaios, por exemplo.
Eu julgo que a nossa legislação não impede que isso seja feito. Estou a ouvir esse tema pela primeira vez e não tenho uma opinião formada. Mas penso que, se as adegas cooperativas tiverem essa disponibilidade, não haverá nada na lei que impeça que isso possa ser feito.
Ainda sobre o desequilíbrio entre procura e oferta, está em cima da mesa actualizar o método de classificação de parcelas de Moreira da Fonseca?
Temos falado em reunir um grupo científico, mais técnico, fora do IVDP, ligado à academia e à investigação, que nos pudesse fazer essa adaptação. Vários conselheiros sugeriram que, após este trabalho que estamos a fazer no Decreto-lei 173/2009, estamos a trabalhar na grande reforma das denominações de origem protegidas Douro e Porto na região, devíamos fazer esse trabalho com o método Moreira da Fonseca.
E usar excedentes de vinho para produzir aguardente para o vinho do Porto...
Olhe, é uma das propostas que a produção apresentou no Conselho Interprofissional. Alguns dos conselheiros ligados à produção acham que poderia resolver a curto prazo a questão de alguns stocks existentes.
Disse que já foram votadas alterações aos outros artigos da lei que regula a região demarcada. Que propostas de alteração serão feitas?
Há propostas de alteração em diversas áreas, que vão ser remetidas em envelope fechado à senhora ministra da Agricultura da Alimentação.
Porque é que o IVDP criou, em paralelo com o novo selo nacional, um referencial para a sustentabilidade?
O trabalho do Manual de Sustentabilidade na Região Demarcada do Douro é anterior ao processo do referencial nacional de sustentabilidade. Esse trabalho foi encomendado à Faculdade de Ciências da Universidade do Porto e foi feito para o Douro. Reúne um conjunto de medidas que podem ajudar os nossos agentes económicos a aderirem até, se quiserem, ao próprio referencial nacional. É mais específico e completamente vocacionado apenas e só para as explorações vitivinícolas da região e para a nossa vitivinicultura. O nosso manual de sustentabilidade — eu não gosto muito de lhe chamar referencial — já foi apresentado e estamos a disseminá-lo para os agentes económicos.
Não é verdadeiramente um referencial, uma certificação? Não era esse o caminho?
É um manual que pode ser utilizado por parte dos agentes económicos que queiram fazê-lo. O caminho será esse. Dá resposta, na íntegra, a todas as questões que estão no referencial nacional. Se nós quisermos optar por [transformar] este manual [em certificação], temos de fazer um plano equivalências. E o Conselho Interprofissional é que deverá dizer se devemos fazer isso ou não.