Dois lados do mesmo Pico. Paulo e Tito fazem cada um os seus vinhos, mas promovem-nos juntos
Paulo Machado produz os vinhos Ínsula e, como enólogo, faz também A Cerca dos Frades, de Tito Silva. Promovem uns e outros juntos, mostrando que há terroirs distintos no Norte e no Sul da ilha.
Paulo Machado e Tito Silva produzem os vinhos Ínsula e A Cerca dos Frades, respectivamente. Cada um faz os seus vinhos, mas promovem-nos juntos, promovendo também dois lados do mesmo Pico. Fazem-no para rentabilizar uma só adega, fazem-no porque um tem vinhas sobretudo na costa Norte da ilha açoriana e o outro na costa Sul, e fazem-no por amizade e por perceberem a velha máxima do juntos somos mais fortes. E cada um faz os seus é maneira de dizer, porque o enólogo das duas produções é Paulo — que, nos Açores, também assina os vinhos Pedras Brancas, da Adega e Cooperativa Agrícola da Ilha Graciosa, o único produtor ali certificado.
Conhecemo-los na adega de Tito (a adega de receber; porque no Pico chamam adega ao sítio onde a malta se junta), onde pudemos provar vinhos de um e do outro, feitos com as três castas nobres da ilha — Arinto dos Açores, Terrantez do Pico e Verdelho — e onde testemunhámos a química profissional e pessoal entre os dois. E é por isso que escrevemos sobre a dupla que já tem o nome inscrito na excitante história contemporânea dos vinhos dos Açores. Já agora, estávamos na ilha a convite de um terceiro produtor, Fortunato Garcia, que leva a sério essa coisa rara de cooperar competindo — afinal, não deixam de ser concorrentes uns dos outros.
A adega e espaço de enoturismo em Santa Luzia, muito perto do lajido homónimo, concelho de S. Roque do Pico, já foi do pai de Tito e antes deste tinha sido do seu avô. "Aquilo era a nossa prensa, onde fazíamos o vinho de cheiro, o Isabella, e o Herbemont, outro híbrido, da Madeira. Este espaço tem um significado bastante forte para mim." É ali que ele e Paulo Machado recebem os visitantes e lhes dão a provar os seus vinhos, uns e outros produzidos na outra adega de Tito, a de verdade, na mesma zona. Na próxima vindima, a vinificação deverá passar para o espaço do enólogo, nascido e criado no Pico; a adega continuará a ser um recurso partilhado.
Comecemos pela epopeia de Tito e como ele transformou 7.000 metros quadrados de vinha em 21 hectares. "Em 2007, vou a passar na estrada e vejo que o caminho que dava acesso à vinha do meu avô, e que naquela altura estava abandonada há mais de 40 anos, estava à venda. Já tinha árvores enormes." Para não perder acesso ao terreno do avô (que está a preparar para ter ali uma zona de eventos), comprou esses 3 hectares. Quando começou a requalificar o que outrora havia sido uma vinha, em 2015, não tardaram a aparecer outros vizinhos para lhe vender mais vinhas ali à volta. "Resumindo, passei a ter 210 alqueires, que aqui diz-se alqueires, os tais 21 hectares."
"O Paulo fez-me o projecto para o VITIS. Depois disse-me o que eu devia plantar depois, depois disse-me que vinhos podíamos fazer. Desde esse momento eu sou pau mandado dele. Ele é o Paulo e eu sou o Paulo mandado", brinca o empresário, que manteve o seu negócio principal, uma loja de móveis em S. Roque.
Em 2018, lançaram então o primeiro vinho d'A Cerca dos Frades, um branco de lote. Em 2019 surgiria o varietal de Terrantez do Pico; em 2020 o de Verdelho; e em 2021 o 100% Arinto dos Açores. Da última vindima, sairão "umas 20.000 garrafas". "A nossa maior produção até à data."
E o nome? De onde vem o nome A Cerca dos Frades? Quando estavam a desmatar os terrenos, depararam-se com umas paredes semelhantes aos muros dos tradicionais currais mas mais altas. "Faziam quase um círculo". Antes, já ouvira os mais velhos falarem de terrenos numa zona a que chamavam "às cercas", mas ninguém lhe explicara o que isso queria dizer. "Nem a pessoa que me vendeu sabia, porque as árvores eram enormes, há muito tempo ninguém ligava nada a essas vinhas, eram mato, mas havia ali essa ruína com 2.000 metros quadrados de área."
Na junta de freguesia, encontrou a história da estranha construção. Há muito tempo, os 210 alqueires de Tito eram 400, de um só dono, 40 hectares. "E houve um frade que lhe pediu um bocadinho de terra para ter as suas coisas. Disse-lhe: eu só quero o que o couro de um boi açambarcar." O proprietário anuiu e quando chegou o dia de marcar a área, o frade trouxe o dito couro, mas "começou a cortá-lo o mais fino que conseguiu e a amarrá-lo em tiras", o que "deu um cordão bastante longo". Esperto.
Quem manda é a montanha
O sorriso pronto de Tito contrasta com o jeito sisudo de Paulo. O primeiro é arrebatado, o segundo meticuloso. Os dois apaixonados por aquele terroir lávico que dá vinhos salgados, frescos, fumados e únicos — e a mais dinâmica das três zonas demarcadas nos Açores para a produção de vinhos com Denominação de Origem; é no Pico que está quase toda a vinha do arquipélago. Não terá sido à toa, está bom de perceber, que Dirk Niepoort se juntou à dupla para fazer o seu primeiro vinho nos Açores, um reserva de lote e com Denominação de Origem "Pico".
"Particularidade dos dois projectos: o do Tito baseia-se em vinhas da costa Norte, que é onde estamos, deste lado; a Ínsula tem, maioritariamente, vinhas na costa Sul e um pouco na zona da Criação Velha, que é costa Oeste", conta Paulo Machado, que explora 22,5 hectares de vinha, 12,5 seus e o restante vinha arrendada, e produz entre 20.000 e 40.000 garrafas, dependendo dos anos.
O Sul da ilha "tem sempre maturações mais tardias e menos conseguidas, mais acidez, menos açúcar... e [esse terroir] dá um perfil completamente distinto aos vinhos", explica o enólogo, que gosta "desse lado mais fresco". "O meu Sul." O seu, porque, como também nos ensinou, quem "comanda a ilha é a montanha do Pico" e, como qualquer adolescente local sedento de mar e sol sabe, às 11 da manhã há sol em S. Mateus, mas à tarde é preciso ir até à Madalena para continuar a bronzear a pele.
"Porquê? Porque, ao longo do dia, as nuvens vão-se acumulando, forma-se um chapéu à volta da montanha e cria-se uma zona de sombra. Então, a minha zona — em S. Mateus, mesmo por debaixo da montanha — é Sul, mas tem menos horas de luz directa. Não tem menos calor, mas se calhar tem mais humidade e tem mais frescura, porque tem menos luz directa." Para além das vinhas que tem em S. Mateus, com idades compreendidas entre os três e os 12 anos, Paulo tem vinhas centenárias, suas e arrendadas, na Criação Velha e na Madalena (a Oeste), o que lhe permite fazer lotar também diferentes pontos cardeais.
"É sempre um desafio poder mostrar duas coisas bem distintas, feitas com as mesmas castas, pela mesma pessoa, mas que dão a conhecer partes diferentes da ilha", comenta o enólogo, que engarrafa com a marca Ínsula desde 2006 — excepção feita aos anos em que foi sócio da Azores Wine Company; entre 2014 e 2018, as suas uvas iam para esses vinhos, embora fossem vinificadas na Ínsula.
A propósito do incrível tom amarelo-laranja do Terrantez do Pico 2019 d'A Cerca dos Frades que temos à frente, o enólogo explica que a influência da chuva no ano vitícola é outra das condicionantes que tem vindo a estudar. "Comecei a perceber que o que define se o ano é chuvoso [falando dessa influência no vinho] é o que chove em Julho e Agosto. É só esse período. E nos últimos três anos a quantidade de precipitação em Julho e Agosto é o dobro e o triplo do que era no passado." E?
"Antes, tínhamos vindimas mais atrasadas. Lembramo-nos perfeitamente de serem no primeiro e segundo fins-de-semana de Setembro. Este ano, começámos a vindimar a 8 de Agosto. Antes, chovia menos e tínhamos melhores maturações, uvas mais limpas e controlávamos melhor todo o processo", explica. A grande dúvida, continua, era: quais os vinhos que evoluem melhor, os de anos chuvosos ou os de anos secos?
"Depois de vários anos a fazer os mesmos vinhos, a conclusão é: nós não queremos uvas limpinhas; quando elas são limpinhas, deixamos passar um bocadinho de podridão", confessa. "Dá mais complexidade" ao vinho e ajuda-o a evoluir numa fase mais precoce, ficando o vinho estabilizado mais cedo. Voltando a falar do Terrantez do Pico de 2019, sublinha: "aquilo que se podia alterar, que podia oxidar, já foi".
Há mostos e mostos
Uma vez na adega, o 'segredo' está em fermentar de forma distinta o que é diferente. As primeiras prensas — "os mostos mais puros, identitários, com maior acidez" — vão para cubas de inox dispostas na vertical. Os finais de prensagem — "mais extracção, mais sal, mais concentração" — são fermentados em barricas ou cubas de inox deitadas. Mesmo nos varietais, há um lote, de geografias, como já vimos, mas também de fermentações. E qualquer um dos vinhos que provámos tem um pouco de fermentação em barrica (por norma, uns 15%).
É ir para lá da parcela, é "separar os mostos" também de acordo com a sua pureza. Depois, "não há grandes intervenções", garante Paulo, é só "ajustar os lotes em função daquilo que cada mosto dá".
"A nossa adega na altura da vindima é uma grande confusão. Pegamos em cubas verticais e metemo-las deitadas, depois enfiamos placas de refrigeração com montes de mangueiras. Eu costumo dizer que é a adega esparguete. Só se vêem tubos brancos a sair das paredes."
Os dois produtores têm outros vinhos, como o Ínsula Chão de Lava aa 2020 ou o belíssimo licoroso Ínsula Chão de Lava Pahoehoe 10 anos, que entrou na nossa lista de vinhos para a Consoada; estes seis são referências que provámos no final de 2023 e que ainda estão no mercado.
Nome A Cerca dos Frades Blend 2021
Produtor Tito Silva
Castas Verdelho (37%), Arinto dos Açores (28%) e Terrante
Região Açores (DO Pico)
Grau alcoólico 12%
Preço (euros) 30 (PVP recomendado)
Pontuação 92
Autor Ana Isabel Pereira
Notas de prova Com um nariz fresco e elegante, que denuncia o berço de origem vulcânica, vai buscar o melhor de cada casta ao trio maravilha da ilha do Pico. Tem boa acidez e uma boca salina e refrescante. Feito com uvas de vinhedos vizinhos do lajido de Santa Luzia, S. Roque do Pico, resulta da fermentação em separado de mais de 20 mostos distintos. “Por hábito”, diz — por saber da poda, dizemos nós —, Paulo Machado, o enólogo (também ele produtor), separa o que vai vinificar por casta, por parcela e por prensagem (primeiras prensas e finais de prensagem). Fermenta tudo à parte e usa várias ferramentas: aqui, 75% em cubas de inox verticais, 15% em cubas deitadas e 10% em madeira (carvalho francês). É um vinho em que o somatório de várias “muitas pequenas coisas diferentes” resultou em grande complexidade. Produção de 5.053 garrafas.
Nome A Cerca dos Frades Verdelho 2021
Produtor Tito Silva
Castas Verdelho
Região Açores (DO Pico)
Grau alcoólico 12%
Preço (euros) 40 (PVP recomendado)
Pontuação 92
Autor Ana Isabel Pereira
Notas de prova Tito Silva já tem uma área razoável de vinha no Pico, mas tem vindo plantar as suas diferentes parcelas de forma paulatina, o que lhe permite ir aumentado a produção a cada vindima. Este Verdelho é feito com as melhores uvas da parcela mais antiga do produtor, plantada em 2015. E está entre a frescura, o carácter varietal – o lado tropical que sentimos no nariz, a par do cheiro a rocha –, o terroir – é salino, já se sabe – e a gordura e complexidade que vai buscar à barrica usada, onde fermentou 15% do lote). Envolvente e longo. 2.131 garrafas.
Nome A Cerca dos Frades Arinto dos Açores 2021
Produtor Tito Silva
Castas Arinto dos Açores
Região Açores (DO Pico)
Grau alcoólico 12,8%
Preço (euros) 50 (PVP recomendado)
Pontuação 93
Autor Ana Isabel Pereira
Notas de prova A primeira coisa que nos ocorre dizer sobre este vinho quando o provamos é que tem uma salinidade que é uma loucura. É salgado como nunca havíamos provado. E esse lado gera uma sensação dupla, de espanto e incómodo — porque o nosso paladar não estava preparado para a experiência. Paulo Machado gosta de utilizar nos seus lotes diferentes mostos, incluindo dos do final de prensagem, que trazem mais concentração e mais sal, mas neste caso o enólogo fermentou tudo junto. É por isso ainda intrigante esse lado, mas a sua complexidade não será alheia à qualidade das uvas (diz que eram “muito boas”), ao longo estágio sobre borras, à bâtonnage e até ao tempo que ficou sossegadinho na garrafa, quase um ano, à espera de ir para o mercado – este Arinto dos Açores é um garrafeira, o que nos Açores quer dizer um estágio mínio de nove meses em garrafa. Está lá a frescura e o lado cítrico da casta, mas a sua estrutura e untuosidade envolvem-nos de tal forma que não percebemos a acidez elevada do vinho nem o álcool, um bocadinho mais elevado do que os outros que o produtor fez da mesma vindima. Envolvem-nos e agarram-nos por longos segundos. Provámo-lo sem comida, cheira-nos que casará bem com marisco. 1.302 garrafas.
Nome A Cerca dos Frades Terrantez do Pico 2021
Produtor Tito Silva
Castas Terrantez do Pico
Região Açores (DO Pico)
Grau alcoólico 12%
Preço (euros) 50 (PVP recomendado)
Pontuação 92
Autor Ana Isabel Pereira
Notas de prova No copo exala o iodo do mar dos Açores, a frescura que caracteriza também o terroir do Pico e o lado floral, delicado e algo doce da casta exclusiva do arquipélago. Na boca, é untuoso, fresco e salino. Leveduras indígenas, controlo de temperatura e, como nos outros vinhos do produtor, e quase como uma assinatura do enólogo, fermentação e estágio 15% em carvalho francês usado, 85% em cubas de inox ao alto. Será interessante perceber como evolui e o que ganhará na garrafa. Foram produzidas 1.441.
Nome Insula Verdelho 2019
Produtor Insula Vinus (Paulo Machado)
Castas Verdelho
Região IG Açores
Grau alcoólico 13%
Preço (euros) 30 (PVP recomendado)
Pontuação 92
Autor Ana Isabel Pereira
Notas de prova De uvas maioritariamente da costa Sul do Pico, da zona de S. Mateus. Amarelo, da cor dos vinhos quando chove no Verão na ilha, ao nariz chega-nos aquele lado de pólvora que denuncia o terroir e ligeiras notas tropicais. Na boca tem sal q.b., frescura e uma cremosidade muito interessante. Complexo, como manda a idade que já carrega, e leve apesar dela. Final longo. Resulta de dois mostos, duas fermentações distintas: as primeiras prensas em cubas de inox verticais e as outras em cubas deitadas e em barricas de carvalho francês. 3.337 garrafas, lançadas em 2023.
Nome Insula Arinto dos Açores 2019
Produtor Insula Vinus
Castas Arinto dos Açores
Região IG Açores
Grau alcoólico 12%
Preço (euros) 30 (PVP recomendado)
Pontuação 93
Autor Ana Isabel Pereira
Notas de prova De uvas maioritariamente da costa Sul do Pico, da zona de S. Mateus. Tem a cor dos vinhos brancos de 2019 no Pico, aquele amarelo-alaranjado que parece de um vinho mais velho – neste caso amarelou logo muito cedo, conta o produtor. Aromas cítricos, algum fumo da barrica. O lote fermenta parcialmente em carvalho francês e este foi o ano em que o produtor introduziu barricas novas na adega, mas essa madeira está bem integrada e ajuda a dar alguma cremosidade ao vinho. Boca fresca, salina. Talvez o vinho mais prazeroso na prova que fizemos de diferentes referências da Insula Vinus. 1435 garrafas, lançadas em 2023.