Podem as ondas de calor aumentar as desigualdades socioeconómicas? Estudo luso-brasileiro assim o sugere
O calor excessivo não agrada a ninguém, mas um novo estudo sugere que não afecta todos por igual. No Brasil, a maioria das vítimas mortais são mulheres, pessoas racializadas e com menos estudos.
São cada vez mais frequentes, além de mais longas e mais quentes. Sabemos que as ondas de calor — que a Organização Meteorológica Mundial descreve como períodos de pelo menos seis dias consecutivos em que as temperaturas médias estão acima do limiar específico de cada região — aumentam as taxas de mortalidade. Mas se os mais velhos e doentes são expectavelmente susceptíveis aos efeitos das altas temperaturas, um novo estudo referente ao panorama brasileiro sugere que há outros grupos especialmente vulneráveis. São eles as mulheres, mas também as pessoas racializadas e com menores níveis de escolaridade (quatro ou menos anos de estudo).
“Muitos destes factores não são independentes” explica ao PÚBLICO Ricardo Machado Trigo, um dos três portugueses envolvidos nesta investigação transnacional (que articula investigadores da Universidade de Lisboa, Federal do Rio de Janeiro, Universidade de Brasília e Fundação Oswaldo Cruz). Isso sucede principalmente em sociedades como a brasileira, destaca, “onde há uma certa diferença de escolarização entre as raças e os sexos”. O estudo sugere que as alterações climáticas podem agravar as discrepâncias já existentes de foro social e económico.
“Tal como em Portugal, as ondas de calor [chegam com avisos] com cada vez mais antecedência. Mas quem liga aos avisos e altera a sua maneira de actuar em função [deles]? As pessoas com maior educação”, enfatiza. Isto, porque, além de estarem “mais dispostas a ouvir”, sabem e podem adaptar o seu comportamento. “Não vão a trabalhar a meio do dia”, exemplifica o cientista português.
Entre 2000 e 2018, e apenas nas 14 maiores áreas metropolitanas do Brasil (equivalentes a 35% da população), mais de 48 mil mortes foram atribuídas às ondas de calor, refere o Sistema Nacional de Mortalidade do Ministério da Saúde do país. Mais de 48 mil vítimas de um episódio climático em visível expansão, à semelhança dos demais efeitos das alterações climáticas.
Durante a década de 2010, o Brasil experienciou entre três a 11 ondas de calor por ano — quase cinco vezes mais do que o rácio da década de 70, na qual a média anual era de zero a três ondas de calor. É já um assunto de saúde pública.
Em termos de valor absoluto, o epicentro de mortes foi São Paulo, o estado mais populoso do país, onde se registou quase 15.000 mortes além da mortalidade habitual. Segue-se, e também devido à grande densidade populacional, o Rio de Janeiro, com mais de 9600 vítimas deste fenómeno de mortalidade acrescida. Mas Brasília, que segundo os últimos Censos é o terceiro município mais habitado do Brasil, só aparece no décimo lugar da lista — depois de Belém, Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife, Goiânia, Fortaleza e Manaus.
É preciso preparar estratégias e políticas de saúde pública
“O serviço de saúde precisa estar preparado”, pode ler-se entre as conclusões do estudo publicado nesta quarta-feira na revista Plos One. Isto, porque a investigação não só corrobora a tese de que os eventos extremos não têm impacto sobre a população de maneira igual, como revela o efeito especialmente prejudicial nas camadas populacionais que mais necessitam de um sistema de saúde acessível. É nesta nota de “desafio notável” que o estudo termina, sublinhando “os problemas estruturais do Sistema Único de Saúde, como lacunas de organização e governança, baixo financiamento público e grandes disparidades regionais”.
Ricardo Machado Trigo não podia estar mais de acordo e aplaude a “enorme capacidade do Sistema Nacional de Saúde [português], dos sistemas de prevenções, do IPMA, ao fazer os avisos meteorológicos, e do Instituto [Nacional de Saúde Doutor] Ricardo Jorge”. Afinal, esta é também uma realidade que nos toca.
Texto editado por Andrea Cunha Freitas