Tuvalu, uma nação a afundar-se, recebe uma tábua de salvação — mas tem um preço

Austrália compromete-se a acolher 280 tuvaluanos por ano. Em troca, de olho na China, ganha “poder de veto” sobre qualquer acordo de segurança que o país ameaçado pela crise climática queira assinar.

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Um grupo de crianças a brincar na lagoa de Funafuti, capital de Tuvalu Michael Miller/The Washington Post
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Na sua casa de contraplacado, ensanduichada entre o oceano Pacífico e uma lagoa esmeralda, Miloitala Jack sonha com um lugar seguro e seco. Um lugar onde a sua casa não abane durante tempestades cada vez mais frequentes e violentas. Um lugar onde o mar — agora a apenas poucos passos de distância em qualquer direcção — não venha bater à sua porta quando a maré está alta.

O sonho de fugir é antigo, dura há 26 anos, e aproximou-se mais um pouco da realidade no mês passado, quando o pequeno Tuvalu assinou um acordo que permitirá que 280 pessoas se mudem para a Austrália por ano.

A esse ritmo, serão precisos 40 anos para que todos os 11 mil habitantes de Tuvalu abandonem o arquipélago, localizado a meio caminho entre o Havai e a Austrália, e com apenas dez milhas quadradas [25,9 quilómetros quadrados]. As previsões sobre a subida do nível do mar, causada pelo aquecimento global, sugerem, porém, que Tuvalu pode tornar-se inabitável antes disso.

Mas o acordo resume a escolha dolorosa com que a população agora se debate: fugir da sua vulnerável faixa de areia; ou ficar e combater a subida das águas, com um dique ou uma extensão de terra recuperada de cada vez.

“Enquanto nação, chegámos à constatação chocante de que agora existimos apenas para mitigar ou para nos adaptarmos aos efeitos das alterações climáticas”, disse Kausea Natano, primeiro-ministro de Tuvalu, na Cimeira do Clima das Nações Unidas, no Dubai, conhecida por COP28, realizada este mês. “Quantas mais reuniões da COP é que serão precisas para vos transmitirmos esta mensagem sobre a nossa perda e angústia?”

O acordo [com a Austrália] é o mais recente passo dos preparativos de Tuvalu para aquilo que parece ser uma inundação inevitável.

O país alterou a sua Constituição em Outubro para declarar que a nação manterá o seu estatuto de Estado e as respectivas zonas marítimas, o que significa que continuará a afirmar a sua soberania e nacionalidade, mesmo que já não tenha qualquer território.

Esta revisão constitucional sucede a uma iniciativa ambiciosa de se tornar a primeira nação digital do mundo, depois de o Governo ter anunciado, no ano passado, um plano para criar um clone de si próprio no metaverso, preservando a sua história e cultura online, para que as pessoas possam recorrer à realidade virtual para visitar o arquipélago depois de submergido.

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A seiva do coqueiro é utilizada para fazer sumo ou é fermentada em álcool MICHAEL MILLER/THE WASHINGTON POST

“Poder de veto”

Ainda assim, assegurar um futuro para os seus cidadãos é, de longe, o desafio mais difícil e será aquele que irá dominar as eleições legislativas de 26 de Janeiro.

É provável que [a votação] seja um referendo ao Tratado Falepili (“boa vizinhança”) com a Austrália, que oferece vistos e cerca de 11 milhões de dólares [9,9 milhões de euros] para recuperação costeira aos tuvaluanos e que se compromete a auxiliar Tuvalu em caso de catástrofe natural, pandemia ou agressão militar.

Mas [o tratado] tem um preço: Camberra tem de dar a sua aprovação antes de Tuvalu assinar um acordo de segurança ou de defesa com qualquer outro país.

Está cláusula é amplamente vista como uma medida para excluir a China, que tem criado alarme no Ocidente por causa da sua presença cada vez maior no Pacífico sul, particularmente nas ilhas Salomão, onde Pequim garantiu reconhecimento diplomático [em detrimento de Taiwan] em 2019 e com quem fechou um acordo de segurança no ano passado.

Ao anunciar o acordo com Natano no mês passado, o primeiro-ministro australiano, Anthony Albanese, disse que a Austrália teria de aprovar qualquer acordo de segurança ou de defesa que Tuvalu feche com qualquer “Estado ou entidade”, de forma a “permitir a operacionalização eficaz da garantia de segurança australiana”.

Alguns analistas olham para isto como uma jogada para evitar uma repetição do que aconteceu nas ilhas Salomão, onde tanto a polícia chinesa como a australiana estão agora mobilizadas.

Tuvalu é um de apenas 13 países do mundo que ainda reconhecem Taiwan em vez da China e Pequim tem procurado convencer o arquipélago a alterar a sua aliança diplomática. Natano, que procura a reeleição, tem recusado os esforços de Pequim.

Mas o “poder de veto” da Austrália preocupa alguns tuvaluanos que acreditam que a sua nação vulnerável foi alvo de bullying para ceder a sua soberania em troca de um porto de abrigo.

E para acrescentar à sua fúria: o tratado não exige que a Austrália, um dos principais exportadores de combustíveis fósseis do mundo, tome medidas adicionais para combater o aquecimento global — a raiz dos problemas de Tuvalu. (A Austrália foi, no entanto, um dos quase 200 países que aceitaram na COP28 fazer a transição dos combustíveis fósseis para evitar o agravamento dos efeitos da crise climática.)

“Se a Austrália acredita na oferta de um caminho humanitário aos tuvaluanos, a melhor forma de o fazer é reduzir as suas emissões, parar de abrir minas de carvão e de o exportar”, defende Enele Sopoaga, líder da oposição em Tuvalu, que prometeu rasgar o acordo se vencer as eleições. “É lamentável que a Austrália apareça de repente e diga: ‘Tuvalu, posso dar-vos uma mão.”

Activistas climáticos locais partilham as mesmas preocupações. “Há muitos jovens tuvaluanos que estão muito entusiasmados com este tratado, com a possibilidade de se mudarem para a Austrália”, diz Richard Gokrun, da Rede de Acção para o Clima de Tuvalu. “Mas não é uma solução. Não vai travar a ameaça existencial que enfrentamos. Não vai travar a subida do nível do mar.”

Dependente das eleições

Muitas das críticas ao tratado estão relacionadas com o secretismo e com o timing. Anunciado apenas duas semanas antes da última sessão no Parlamento, houve pouco tempo para o debater e ainda menos para se aprovarem novas leis para o implementar. Isto significa que o futuro do tratado está dependente das próximas eleições em Tuvalu.

Seve Paeniu, ministro das Finanças e da Acção Climática, negou que o tratado tenha sido programado para obter vantagens. Representantes australianos disseram que o calendário foi definido por Tuvalu e que fizeram tudo o que foi possível para evitarem influenciar o voto.

Mas Sopoaga acusa a Austrália de “ingerência” nas eleições. Os vistos, disse numa entrevista, são “cenouras” para os eleitores, quando o tratado é, na verdade, “totalmente sobre a China.”

Simon Kofe, que renunciou ao passaporte australiano para concorrer ao Parlamento e que foi ministro no Governo de Natano até há pouco tempo, também criticou o acordo. Ainda que ambos os países partilhem valores, Tuvalu não deve ser arrastado para uma contenda geopolítica, defendeu, lembrando que as ilhas tuvaluanas que serviram de bases aéreas para os EUA durante a Segunda Guerra Mundial foram bombardeadas.

“Temos de ser prudentes nas decisões que tomamos hoje, porque se um conflito rebentar novamente, Tuvalu poderá ser um alvo”, afirmou. “Os nossos interesses podem entrar em conflito com os da Austrália e os nossos interesses podem ser sacrificados.”

Não obstante, Kofe — que se dirigiu há dois anos à COP com água até aos joelhos e que tem sido o arquitecto de iniciativas fundamentais, incluindo as reformas constitucionais e o clone digital — quer que o próximo Governo reveja o tratado, em vez de o rasgar.

O tratado adoptou a sua ideia de que Tuvalu é um Estado duradouro, o que foi uma vitória. Mas não corta com as emissões australianas, nem permite aos tuvaluanos viajarem sem visto para o país. “Se nos chamam ‘família’, então devem tratar-nos como tal”, defende Kofe.

“Temos de ir embora”

Tuvalu já está a sentir os efeitos do aquecimento global. As marés altas inundam de forma rotineira quase metade da capital, Funafuti. As colheitas murcham em solos cada vez mais salgados. O aquecimento das águas proporciona capturas cada vez mais escassas.

O nível do mar em redor de Tuvalu aumentou quase 15 centímetros nos últimos 30 anos e, de acordo com um estudo da NASA, está previsto aumentar para um total de 20 centímetros ou mais até 2050.

As tempestades estão a tornar-se comuns e catastróficas. Um ciclone atingiu a ilha de Nui em 2015 com tal força que os habitantes viram os caixões dos seus antepassados serem arrastados para longe pelas ondas.

Incidentes como estes deixaram os tuvaluanos a ponderar se devem fugir mesmo antes de o acordo com a Austrália entrar em vigor. Para Taafaki Semu Taafaki, um agente marítimo de 49 anos, a resposta é um “sim” relutante. “Amamos a vida que temos aqui”, afirma, numa noite quente, dando um gole de kava, uma bebida à base de plantas muito popular em todo o Pacífico, por causa dos seus efeitos relaxantes. “Mas temos de ir embora.”

Gokrun, o activista climático, quer ficar. Mas teme por aqueles que querem partir. Será que serão bem recebidos num país que rejeitou recentemente reconhecer a sua própria população indígena? Como é que os tuvaluanos vão conseguir pagar uma casa na Austrália? E só os mais jovens e capazes vão ser autorizados a ir?

Para Jack, a jovem mãe, a escolha não é fácil. O seu marido está na Nova Zelândia, a apanhar fruta para sustentar os seus três filhos, e ainda não conheceu o mais novo. A sua casa anterior foi danificada por um ciclone. A actual abana com os ventos fontes e fica recorrentemente inundada.

Uma nova vida na Austrália significaria que não haveria mais separações, mais ciclones, mais cheias. Mas ela teme que significaria também dizer adeus à sua mãe, que é diabética e que perdeu recentemente os dedos de um pé.

Annabella Mataio, de 56 anos, diz, no entanto, que não quer ser um fardo para a filha. “Quero que ela vá e que procure um futuro melhor”, afirma. “Aqui em Tuvalu não há esperança.”

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Um cemitério em Funafuti, onde algumas lápides foram arrastadas pela subida do mar Michael Miller/The Washington Post

Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post