Dependência energética e o paradoxo da mitigação climática (II)
No último artigo, numa visão sobre os dados económicos das últimas seis décadas, abordei a análise objectiva da forte dependência energética da economia global e, dada a sua elevada dependência de energias fósseis, a consequente correlação do crescimento económico com o aumento das emissões de dióxido de carbono. Demonstrando que a economia mundial, de elevada intensidade energética (energia consumida por cada dólar gerado), é também, e ainda, um modelo de elevada intensidade de carbono (quantidade de carbono emitida por cada dólar gerado).
Neste artigo de continuação, abordarei a dificuldade que teremos pela frente para nos libertarmos desse modelo de correlação com vista à mitigação climática, evidenciando que a abordagem de transição paradigmática que estamos a adoptar é um caminho muito difícil, se não, quase impossível. Isto é, existe uma elevada probabilidade de não se concretizar com a eficácia e prazo desejáveis.
Para tal demonstração parto do cenário climático de 2 graus Celsius de aquecimento global até ao final do século. Não considero o cenário de 1.5 graus porque como ficou demonstrado no artigo de 23 de Setembro, é uma meta apenas matematicamente possível, logo à partida não alcançável. Esse cenário só seria possível se a neutralidade carbónica fosse alcançada até 2033-35 (defendido por facções ambientalistas mais radicais), o que, evidentemente, se revela utópico por ser económica e socialmente inviável (ler artigo anterior). Para este cenário de 2 graus, a conclusão não será muito diferente, pois o esforço económico que se demonstra ser necessário, bem com o ritmo de transição tecnológica, são tais que se tornará económica e socialmente insustentável.
Com estes dois artigos demonstro aquilo que há muito defendo e que referi em artigos anteriores, o paradoxo da mitigação climática: a via escolhida para o combate às alterações climáticas conduz a mais alterações climáticas, em vez de as mitigar. A causa? A excessiva dependência energética da economia mundial, a complexidade da solução pelas renováveis, bem como, o elevado nível de consumo médio per capita.
A análise aqui apresentada, para um cenário de aquecimento global até 2 graus Celsius, assume quatro pressupostos: 1) a energia primária produzida globalmente aumentará 50% até 2050, seguido de um aumento residual até 2100; 2) a redução de combustíveis fósseis e, consequentemente de emissões de carbono, é iniciada efectivamente em 2024, atingindo-se a neutralidade carbónica até 2060; 3) o aumento de energia de origem nuclear e hídrica é residual; 4) a sensibilidade climática (ECS, na sigla em inglês) não ultrapassa os 3 graus Celsius por duplicação de dióxido de carbono na atmosfera.
Podemos ver na figura acima, em cima à esquerda, esse cenário de emissões globais com o início da redução em 2024; em baixo, a respectiva curva de evolução da concentração de dióxido de carbono na atmosfera, que culmina abaixo das 480 partes por milhão (ppm) no final do século; e, à direita, a respectiva curva de evolução do aquecimento global face ao período pré-industrial. Esta análise parte de um modelo simples de balanço energético do sistema climático, baseia-se no ajuste aos dados históricos e assume uma resposta climática de transição (TCR, na sigla em inglês) média de 2.8 graus Celsius por duplicação de carbono.
Este cenário mostra que para se alcançar esta meta até ao final do século teremos de fazer um esforço de redução média das emissões anuais, entre 2024 e 2060, na ordem dos -5.3%/ano (iniciando com -1.7%/ano e culminando na ordem de -7%/ano).
Partindo de valores de referência de consumos de energia por fonte em 2022, pode-se calcular a evolução da distribuição das fontes de produção de energia primária até 2100 (divididas em fósseis, renováveis e nuclear + hídrica). Sabendo as emissões de carbono associadas ao consumo de fontes fósseis, e assumindo os pressupostos atrás referidos, calcula-se a evolução da produção de energia primária por fonte energética (ver figura abaixo).
Assim, conclui-se que, para se alcançar a meta de 2 graus Celsius tem de se reduzir globalmente, até 2060, o peso das fontes fósseis dos actuais 82% (correspondente à energia de 138 mil TWh) para os 8% (correspondente à energia de 20 mil TWh). E, para satisfazer o aumento de consumo e compensar a redução de produção de origem fóssil, o peso das fontes renováveis terá de evoluir dos actuais 8% (cerca de 13 mil TWh) para os 84% até 2060 (correspondente a 209 mil TWh).
Teremos assim, um cenário em 2060, em que a produção global de energia renovável terá de ser muito superior à actual produção total de 167 mil TWh, com uma trajectória de inversão completa entre o peso das fontes renováveis e o peso das fontes fósseis, de 8% para 84% e vice-versa, respectivamente. Com esta evolução teríamos em 2090 uma produção de energia de origem fóssil inferior a 1% no mix energético, na ordem do 2000 TWh, e uma produção de renováveis que contribuiria com 91%, na ordem de 241 mil TWh. Valores demasiado elevados, muito para além do económica e tecnologicamente possível.
Este cenário implica uma redução média de produção fóssil na ordem de -5.2%/ano e um aumento médio de produção de renováveis na ordem dos 8.1%/ano até 2060. De referir que nos últimos 20 anos, apesar de um aumento médio anual de 13.2% de renováveis, houve aumentos médios de 1.5%/ano na produção de origem fóssil, sem se ter, por isso, conseguido a redução das emissões de carbono. Uma das razões para isso ter acontecido é o facto de grande parte da energia renovável produzida estar a contribuir, não para substituir a produção de origem fóssil e consequente descarbonização efectiva, mas para um excedente de energia eléctrica.
Sabendo que nas últimas décadas apenas se reduziu as emissões em anos de recessão económica, facilmente se conclui que muito terá de ser feito ao nível da mudança do paradigma energético para, já a partir do próximo ano, começar a reduzir as emissões a grande escala. Apesar de ser mais realista este cenário de 2 graus, apresenta, ainda assim, um elevado risco de não ser concretizado, pois “deixa para amanhã” o que se deveria fazer hoje (ou antes, o que deveria ter sido feito ontem). Uma coisa é certa: quanto mais se adia o início da redução de emissões, mais difícil se tornará a mitigação climática e maior será o impacto económico.
Em conclusão, a elevada dependência energética da economia mundial, resultante do elevado nível de consumo per capita, é o maior impedimento à mitigação climática. Apesar do elevado crescimento de produção de energia de origem renovável, os elevados níveis de consumo de energia primária impossibilitam a efectiva transição energética.
Sem uma mudança significativa do paradigma de consumo/produção de energia, realizada de forma rápida e efectiva, jamais se conseguirá evitar um aquecimento global médio acima dos 2 graus Celsius até ao final do século. Um cenário com consequências drásticas para a economia e para a humanidade.