Mais de 70 mil pessoas estão por estes dias no Dubai, incluindo chefes de estado, activistas, empresários, cientistas, lobistas. São treze dias de cimeira climática, com uma estimativa de 250 mil refeições servidas por dia, distribuídas ao longo de uma centena de pontos de venda de fornecedores alimentares.
Essa é a face mais visível da alimentação na COP28 e talvez por isso a presidência, a cargo dos Emirados Árabes Unidos, tenha investido tanto nessa operação. Divulgou uma estratégia de “catering sustentável” que exige a todos os fornecedores na cimeira que tenham pelo menos 50% da sua comida dentro de “limites sustentáveis” de emissões de carbono e exigência hídrica, para além de preocupações com a redução do desperdício alimentar e das embalagens.
Mais do que isso, juntou-se a organizações não-governamentais que pediam que nesta cimeira se aumentasse a percentagem de alimentação de base vegetal disponível.
“Este ano os alimentos serão saborosos, nutritivos e acessíveis, bem como dois terços de alimentos veganos e vegetarianos”, lê-se no comunicado de final de Outubro da Proveg, uma organização internacional que tem como missão substituir produtos alimentares de origem animal com alimentação de base vegetal até 2040. “Uma decisão histórica”, anunciaram na altura.
Antes, em Abril, a Progev, juntamente com a Youngo, a organização oficial de jovens da Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas (UNFCCC) e a campanha Food@Cop, enviaram uma carta à presidência da COP28 com o pedido de três quartos da alimentação de base vegetal na cimeira, uma carta assinada por 140 organizações da sociedade civil. Nela alertavam para a “urgência” de assegurar que o catering da cimeira fosse “verdadeiramente sustentável, e como tal, predominantemente de base vegetal”.
“Tivemos uma resposta rápida do presidente”, recorda Lana Weidgenant, responsável pelas campanhas da Proveg Internacional, entre risos. O presidente da COP28, leia-se, o ministro da Indústria, Ahmed Al Jaber. “Foi surpreendente ter uma reposta ao mais alto nível”.
Mais do que uma resposta formal, as organizações foram envolvidas na concretização desse menu e integradas em vários eventos. “Nas primeiras reuniões que tivemos foi já com a equipa de catering, enquanto que em experiências anteriores nos punham em contacto com os responsáveis da sociedade civil, ou com jovens, mas não com aqueles com poder de se mudar algo nas refeições”, recorda Lana.
O pedido inicial de três quartos (cerca de 75%) de alimentos de base vegetal foi reduzido para 65% (e em cimeiras anteriores chegaram a reivindicar 100%) mas para Lana, e outras duas activistas envolvidas na iniciativa com quem o PÚBLICO conversou por videochamada, o sentimento é de conquista. Além das opções vegetarianas, todos os produtos alimentares serão acompanhados de uma etiqueta com as emissões de carbono, como já tinha sido feito na COP26, em Glasgow.
“Estamos a tentar estabelecer a relação entre o nosso consumo e o impacto que isso pode ter na produção dos alimentos”, explica Caroline, activista do movimento Food@COP. E, pelo caminho, tentar diminuir uma contradição recorrente nas cimeiras do clima: os líderes mundiais prometem avançar na acção climática e chegar a compromissos enquanto, ao mesmo tempo, à mesa se servem refeições e alimentos muito pouco sustentáveis. Porque geram emissões de carbono em larga escala, dependem de combustíveis fósseis para serem produzidos ou embalados, ou porque consomem água em excesso.
“Pelo menos nestes eventos deveríamos ter atenção aos impactos climáticos da alimentação que é servida. Se não, porque é que vamos levar a sério tudo o resto de que se fala na conferência?”, questiona Caroline. “É como ir a uma conferência sobre saúde do pulmão e ter cigarros a ser distribuídos.”
A declaração que põe a alimentação na agenda climática
Para lá do menu, a COP28 cumpriu para já a promessa de colocar oficialmente a alimentação na agenda climática. Na passada sexta-feira, 134 países — que representam 70% da produção alimentar mundial — assinaram a aguardada Declaração dos Emirados sobre Agricultura Sustentável, Sistemas Alimentares Resilientes e Acção Climática. Entre eles o Brasil, China, Estados Unidos e a União Europeia.
Na prática, os países signatários comprometem-se a incluir, até 2025, a transformação da agricultura e dos sistemas alimentares no contexto dos esforços climáticos nacionais, incluindo-a nos planos nacionais de adaptação, naquele que foi descrito como o momento “Acordo de Paris” desta cimeira para os sistemas alimentares.
O texto da declaração não menciona explicitamente o peso dos combustíveis fósseis no sistema alimentar, nem aponta para uma redução do consumo de carne, por exemplo, mas diz que é necessário substituir “práticas com maior emissão de gases de efeito estufa” por “uma produção e consumo mais sustentáveis”.
O momento pode ser crítico para o planeta, mas também para o sistema alimentar, responsável por mais de um terço de todas as emissões de gases com efeito de estufa (GEE) e o principal motor da perda de biodiversidade. Além disso, um terço de todos os alimentos produzidos em todo o mundo é desperdiçado. Se o desperdício alimentar fosse um país, seria o terceiro maior emissor de GEE.
“Quando uma decisão vem das Nações Unidas não tem poder sobre os governos para melhorar ou mudar. Mas desta vez acontece o inverso: foram os governos a unir-se e a assinar esta declaração”, diz Aya Mounir, activista marroquina que integrou a campanha pelo menu sustentável na COP28 mas também um grupo de jovens que contribuiu para o texto da declaração sobre os sistemas alimentares.
A declaração foca temas cruciais como o restauro dos ecossistemas e a preservação da biodiversidade, a segurança alimentar ou o combate ao desperdício alimentar.
Mas para a associação ZERO, a ambição fica aquém: “Faltou uma integração do conceito de soberania alimentar, assim como a menção da agroecologia como caminho para uma transição ecológica justa dos sistemas alimentares. São lacunas graves, cuja omissão deixa espaço para falsas soluções, greenwashing e a perpetuação de assimetrias e injustiças sociais”, defende Pedro Horta, responsável da Zero para a área de sistemas agrícolas.
O que traz este tema para o centro da discussão como nunca antes talvez não seja alheio ao país que acolhe a COP28: “As características do território dos Emirados Árabes Unidos têm desafios marcantes quanto à produção de alimentos — escassez de terra arável, escassez hídrica — importando cerca de 90% dos alimentos consumidos por uma população crescente”, explica Pedro Horta.
O contexto geopolítico marcado por duas guerras que está nos bastidores desta cimeira também cruza com a alimentação: “A instabilidade na produção alimentar externa, nomeadamente na União Europeia que abastece em 17%, é de enorme consequência para o país. Não surpreende que haja um olhar mais incidente sobre os sistemas alimentares, sobretudo dada a urgência da crise climática”, acrescenta.
A crise climática colocou o sistema que nos alimenta numa encruzilhada e também mergulhada numa profunda contradição: produzir o que comemos tem uma pegada ambiental e climática pesada que, por sua vez, afecta a própria produção agrícola, fortemente afectada por eventos extremos, como ondas de calor ou inundações. O momento para que a alimentação se sente à mesa das negociações sobre o clima nunca foi tão necessário.
Momento de mudança ou "foodwashing"?
Mas no Dubai, as duas semanas de cimeira do clima servem de holofote para várias contradições. Desde logo a organização estar a cargo de um petro-Estado e ter como presidente o ministro da Indústria, Ahmed Al Jaber, que é também presidente da petrolífera estatal Abu Dhabi National Oil Company (ADNOC).
Documentos revelados esta semana pela BBC revelaram como os Emirados Árabes Unidos planearam discutir negócios de gás na preparação da COP28, adensando as suspeitas de que a presidência não consiga ter uma posição neutra, aproveitando o palco de negociações para incluir a indústria do petróleo e do gás no debate sobre o clima.
A COP28 arrancou debaixo de fogo e a alimentação, alertam os especialistas, pode servir para legitimar a cimeira e mostrar que ela é “verdadeiramente sustentável”.
“Colocar a alimentação no menu da COP já deveria ter sido feito há muito tempo. Mas o foco na alimentação — e no facto de um terço das emissões virem do sector alimentar — não deve distrair-nos da eliminação progressiva dos combustíveis fósseis”, alerta Anna Lappé, directora executiva da Global Alliance for Future of Food, numa conferência de imprensa online em que o PÚBLICO participou.
Numa entrevista dada dois meses antes da COP28, Al Jaber virou os holofotes para o sector alimentar: “Não são apenas o petróleo e o gás que contribuem para as alterações climáticas. Sabe que 30% vem da indústria e outros 30% vem da agricultura. Precisamos de ter cuidado na definição das fontes de emissões de carbono”, afirmou ao jornal britânico The Guardian.
Mas as realidades não vivem separadas. O sistema alimentar actual revela uma relação de dependência dos combustíveis fósseis. Nas vésperas da COP28, a Global Alliance for Future Food publicou o relatório “Power Shift”, onde pela primeira vez se contabiliza que os sistemas alimentares representam pelo menos 15% do consumo anual de combustíveis em todo o mundo, gerando tantas emissões como todos os países da União Europeia e a Rússia.
Para Anna Lappé, o menu alinhado com o clima que está a ser servido na COP28 pode ser um herói ou um vilão.
“É possível que a comida seja um ponto de partida realmente poderoso para uma conversa sobre a mudança que precisamos nos sistemas alimentares? Sim. Mas poderá esse menu ser uma estratégia para potencialmente fazer foodwashing [falsas alegações sobre sustentabilidade alimentar] e uma manobra de distracção das negociações centrais em torno do abandono dos combustíveis fósseis? Sim.”
Aya Mounir, activista marroquina da Youngo, confessa que a desconfiança surgiu logo após o anúncio, o que obrigou as organizações a tomar uma posição sobre as alegações de greenwashing ou foodwaashing.
“Todos concordamos que tanto a transformação dos sistemas alimentares como a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis andam de mãos dadas com outros tópicos, como o avanço da adaptação, a mitigação, o financiamento de muitos sectores e o aumento do financiamento climático, para pagar por perdas e danos”, explica Aya ao PÚBLICO. “Ao defendermos a transformação do sistema alimentar tentamos não ofuscar os combustíveis fósseis”, remata.
A força do "lobby"
Para Lana Weidgenant, o importante foi abrir a porta, mas reconhece o que ainda falta na agenda desta cimeira: “Os sistemas alimentares e a agricultura vão ser discutidos, mas depois não se vêem planos para, por exemplo, combater a desflorestação provocada pela agricultura industrial”.
A Global Alliance for Future of Food deixa outro alerta para esta cimeira da ONU: a apropriação de conceitos como agricultura regenerativa, agroecologia ou soluções de base natural por grandes empresas do ramo alimentar que procuram manter a sua actividade com os mesmos padrões.
Sobretudo numa altura em que a COP28 volta a trazer à mesa das negociações as regras do mercado de créditos de carbono para compensar emissões. E este ano o Órgão de Supervisão do Conselho das Nações Unidas para as Alterações Climáticas está a desenvolver orientações específicas e poderá decidir se as soluções baseadas na natureza — plantação de árvores, gestão florestal ou sequestro de carbono no solo — devem ou não ser contabilizadas como crédito de carbono nos termos do Artigo 6.4.
Se assim for, os especialistas receiam que as soluções de base natural possam ser usadas pelas grandes empresas do sector alimentar para manter o “business as usual”. Vários estudos publicados no último ano revelaram como os créditos de carbono são na sua grande maioria ineficazes e baseados em cálculos inflacionados, o que põe em causa o impacto real que o projecto tem na redução de emissões no território abrangido.
“Estamos a assistir a um aumento preocupante na quantidade de dinheiro destinado a campanhas de lobby e relações públicas”, afirma Anna Lappé, nomeadamente por parte de grandes empresas do sector alimentar, como os produtores de carne e lacticínios.
No arranque da COP28, a imprensa internacional revelou documentos que mostravam os planos de grandes empresas produtoras de carne para fazer lobby junto dos decisores políticos na cimeira deste ano. Nesses mesmos documentos, o pavilhão Food4Climate, que acolherá grande parte dos eventos relacionados com alimentação no Dubai, é descrito como “extremo” e o menu maioritariamente vegetariano é condenado.
Na cimeira que inclui na carta de intenções a redução do consumo excessivo de carne e um alinhamento das dietas à escala global com princípios de sustentabilidade, a empresas de carne e lacticínios estão sobre pressão. Em 2023, só seis dos 20 maiores produtores de carne e lacticínios diminuíram as suas emissões, de acordo com novos dados da FAIRR Investor Initiative.
E essa redução concentra-se em melhorias na eficiência energética dos edifícios ou a passagem para energias renováveis. O grande desafio para estas empresas continua a ser reduzir as emissões decorrentes da produção e do transporte — e são estas que representam entre 80 a 85% de toda a pegada climática do sector.
Reequilibrar a balança na produção alimentar é outro dos desígnios desta COP, sobretudo das organizações que representam os pequenos produtores, que produzem um terço de toda a comida a nível mundial mas recebem apenas 0,3% do financiamento climático internacional.
Estamos preparados para mudar?
A discussão na COP28 sobre como mudar a forma como produzimos os alimentos, os transportamos, os embalamos e consumimos faz-se a duas velocidades: a dos países, das mudanças estruturais, e a dos consumidores. A analogia com o sector energético é muitas vezes invocada. É como se tentássemos abandonar os combustíveis fósseis sem oferecer a alternativa das renováveis. Na COP28, a mensagem para os países mais desenvolvidos será: consumam menos carne e mais proteínas vegetais.
Na Fundação Calouste Gulbenkian, o caminho para uma pegada sustentável chegou à cantina há um ano: “Já havia um dia por semana com um prato sustentável, à quarta-feira. Mas decidimos evoluir e no ano passado lançámos as etiquetas de carbono na nossa cantina”, explica Rosário Palha, do Programa Gulbenkian para o Desenvolvimento Sustentável.
Quem entra na área do refeitório da Fundação, em Lisboa, é recebido com um apelo pintado na parede: “As nossas escolhas têm impacto. Vamos reduzi-lo?” Ao lado, num formato semelhante ao da já conhecida etiqueta energética, há uma escala que indica o impacto climático dos pratos disponíveis, que vai de muito baixo (A), assinalado com a cor verde-escuro, a muito alto (E), de cor vermelha.
Uma sopa é tipicamente um A, já “carne de vaca é quase sempre E”, explica Rosário Palha”, “mas mesmo aí pode depender da quantidade utilizada”.
No refeitório, mas também em alguns eventos que a Fundação organiza e acolhe, as refeições passaram a ser acompanhadas de etiquetas com a letra e cor associada à pegada, calculada através da plataforma My Emissions, com base nas principais fases do ciclo de vida dos alimentos: produção agrícola, processamento, embalamento e transporte. “Fizemos um inquérito há uns meses e a maior parte das pessoas disse que valoriza a iniciativa e [defende] até que nós devemos adaptar gradualmente a oferta, com menor impacto.”
As mudanças já se fazem notar: agora servem apenas um prato E por mês e tentam diminuir os de etiqueta D. Em alguns eventos, como a conferência de Acção Climática que realizaram em Novembro, tentam não incluir nenhum produto alimentar que ultrapasse o nível C.
O próximo passo é olhar para toda a cadeia alimentar. Sabendo que o maior impacto está na produção, a fundação tem trabalhado de perto com a empresa que fornece os serviços alimentares. “Temos um prestador de serviços que também tem essas preocupações, e agora a empresa tem muito mais conhecimento sobre o impacto dos diferentes alimentos com esta iniciativa e, portanto, consegue também começar a ajustar aquilo que tem às suas acções e fornecedores.”
Longe da COP28, apesar de a Fundação ter uma comitiva presente, Rosario Palha vê como um sinal positivo os holofotes que se voltaram para a alimentação. “Muitas pessoas pensam em acção climática individual e pensam em usar mais vezes os transportes públicos, mas nem sempre é possível. Mas todos comemos. Não temos todos de ser vegetarianos, mas podemos ter menos impacto, saber fazer escolhas.”