Os protestos climáticos são violentamente desproporcionais?
De facto, são. Muitas linhas foram gastas sobre bolas de tinta projetadas contra ministros. Muitos mostraram indignação pela desproporção da violência dos protestos. E quase todos têm razão, a violência do protesto foi desproporcional. Mas não da forma que quase todos julgam. Vivemos dia a dia consequências muito mais violentas induzidas pelas alterações climáticas do que as bolas de tinta ou similares.
Há estimativas que apontam para mil milhões de mortos induzidos pelas alterações climáticas durante este século. Isso, sim, é violento. E é violento mesmo que o efeito estivesse a ser sobrestimado 1000 vezes. Por isso, paremos de desconversar. Apesar do que muitos se esforçam por ignorar, e outros tantos gastam milhões para branquear, vivemos numa emergência climática.
O que estamos a fazer ao planeta, as alterações climáticas que a cada dia de inação se tornam mais extremas e que lançarão milhões para a fome, induzindo fluxos de refugiados e guerras de consequências imprevisíveis, não podem ser combatidas em modo de business as usual. A sociedade tem de integrar que precisamos de um modo de emergência. Mas mudar atitudes à escala planetária é difícil. Mais difícil ainda quando governos, corporações e indivíduos se juntam para, sob diferentes pretextos, confundir o público com uma narrativa comum. As táticas antigas, inventadas por tabaqueiras, para criar dúvidas sobre os malefícios do tabaco, foram depois adaptadas para criar dúvidas sobre temas tão díspares como os benefícios das vacinas ou a emergência climática.
Existem factos mais ou menos consensuais do ponto de vista científico sobre alterações climáticas e aquecimento global. O consenso é alargadíssimo, ao contrário do que alguns sugerem. Factos consensuais: (1) as alterações climáticas são reais, (2) o aquecimento global é real e (3) a principal causa somos nós, humanos. Estimativas recentes sugerem que 99% dos estudos publicados o assumam. Cerca de um milhão de espécies pode desaparecer em consequência destas alterações.
Há ainda vários pontos de equilíbrio instável, conhecidos como tipping points, que se ultrapassados terão consequências graves mas altamente imprevisíveis à escala global. Exemplos são o desaparecimento do gelo no Ártico ou na Antártica. Alguns parecem já irreversíveis, com consequências terríveis a médio prazo. Se ultrapassados esses pontos, podemos traçados vários cenários, alguns catastróficos, mas nenhuns inócuos, e muito menos existem cenários bons.
Pior, provas recentes sugerem que muitos mecanismos de feedback existente poderão não estar a ser considerados nos modelos atuais. Ou seja, as consequências podem ser piores do que as previstas. E na semana passada foi publicado um estudo que nos diz que estamos mesmo a entrar nesse território, assumidamente desconhecido, mas certamente violento. O que nos espera é drástico e, se soubéssemos quais e conseguíssemos pensar para além do amanhã, estaríamos todos a mandar bolas de tinta a decisores políticos. Ou coisas mais duras a políticos e responsáveis de multinacionais que, na posse da informação necessária há décadas, historicamente preferem escondê-la de forma que o business as usual possa continuar.
A recente declaração de Hamburgo, feita por universidades alemãs, descreve perigos e apresenta soluções, em particular a necessidade de ensinar sobre estes conceitos nas universidades. Tal como Helena Lopes notou no PÚBLICO, há uma responsabilidade do Estado em ensinar aos jovens a verdadeira dimensão do problema. Se ensinássemos aos alunos o estado em que o planeta estará quando tiverem filhos, certamente veríamos mais ações de protesto. E mais violentas do que bolas de tinta.
Porque é que não estamos todos na rua a protestar, todos os dias, porque os nossos filhos não vão ter uma vida tão boa como a nossa? Porque falta algum tempo – mas não tanto como pensam, acreditem – e os humanos têm dificuldade em trocar 1000 euros hoje pela possibilidade de não morrerem daqui a 10 anos. E é disso que se trata cada vez que fazemos alguma coisa que nos leva para mais próximo de todos esses tipping points irreversíveis.
É muito difícil transmitir ao público a noção de emergência num contexto de incerteza, em que as consequências surgirão seguramente, mas não amanhã. O nosso planeta é como o Titanic, um navio que navega a velocidade de cruzeiro. Mesmo que hoje mudássemos drasticamente o curso das nossas ações, continuaria a navegar sem conseguir evitar o icebergue. A inércia do navio, do sistema Terra, é tão grande que mesmo travar a fundo e mudar de curso não impedirá o embate.
Não é catastrofismo, é realismo. Não é fatalista, sabemos o que fazer. Se hoje, todos, de forma decisiva e concertada, começarmos a virar o barco na direção certa, talvez o barco bata só de lado. Não podemos iludir-nos. Vai bater, não há como evitar, vão morrer pessoas, mas talvez não morram quase todas. É disso que se trata, mais nada. Mas pagar hoje para não morrer daqui a 10 anos não é fácil, não está nos nossos genes fazer isso. Por isso permanecemos no rumo bem ironizado no filme de 2021 Don’t Look Up. O asteroide está lá, o icebergue está lá, a emergência climática está lá. Mas preferimos acreditar, até ser tarde de mais, que se não olharmos ele vai desaparecer.
No que diz respeito a fontes de informação (e desinformação), é importante perceber quem são, e que motivos tem para dizerem o que dizem. Há discursos de atraso climático bem montados. No caso da emergência climática, a sua pouca importância é promovida por governos e corporações. São movidos pela necessidade de fazer com que a população acredite que podem manter o barco prego a fundo à tona de água apenas virando o leme, para que possam continuar a governar e negociar.
Seria importante criar mecanismos legais para punir aqueles que, tendo acesso a informação científica, a negam ou deturpam, para atingir objetivos irresponsáveis. Se face à evidência científica ainda insistem em partilhar informação para sugerir que o consenso não existe, se negam ou desvalorizam alterações climáticas, o aquecimento global induzido pela ação humana, e as consequências dramáticas para todos, então que sejam responsabilizados pela mentira.
A irresponsabilidade de mentir aos tripulantes na terceira classe do Titanic, dizendo pela rádio do barco que nada se passa, quando eles estão na ponte, e sabem – ou podiam saber, se fizessem o trabalho de casa – a realidade, enquanto já estão a tentar encontrar um bote salva-vidas, é imoral. Vivemos um momento crucial da história da humanidade, e não podemos continuar a viver em business as usual.
Por isso vemos cada vez mais ativistas e cientistas a pôr em risco a sua vida e a sua liberdade para nos alertar. Eles estão informados e sabem. E sentem uma obrigação moral de agir. A mudança de estratégia tem de acontecer. Eles estão do lado certo da história. São precisas medidas fortes e drásticas se queremos que os nossos filhos tenham uma vida para dar aos seus. E é preciso ao leme do barco pessoas com espinha dorsal e espírito altruísta, que estejam à altura dos desafios, capazes de tomar decisões pouco populares hoje para salvar o que ainda pode ser salvo do amanhã.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico