O império chinês de pesca em águas longínquas navega num mar de crime

Nas últimas décadas, a China investiu fortemente na sua frota de pesca de alto-mar, a maior que o mundo já conheceu. Os custos humanos e ambientais desta empreitada são tão graves quanto dramáticos.

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Daniel Aritonang terminou o ensino secundário em Maio de 2018 com a esperança de encontrar um trabalho. Baixo e ágil, vivia na aldeia costeira de Batu Lungun, na Indonésia, onde o pai tinha uma oficina de carros. Nos tempos livres, Aritonang reconstruía motores na oficina e, de vez em quando, escapava-se com a sua Yamaha azul para fazer corridas de motas nas estradas secundárias da aldeia. Como estudante, era muito trabalhador, mas também era conhecido por ser “o palhaço da turma”, sempre a pregar partidas às raparigas. "Ele era todo gargalhadas e sorrisos", lembra a sua professora de Matemática do secundário, Leni Apriyunita. A mãe levava pão caseiro a casa dos professores, tentando ajudá-lo a tirar boas notas para que depois conseguisse um trabalho; a loja do pai estava a falir e a família precisava de dinheiro.

Quando Aritonang terminou a escola, o desemprego entre os jovens era superior a 13%. Pensou entrar para a academia de polícia e candidatou-se a empregos em fábricas de plásticos e têxteis nas redondezas, mas nunca recebeu qualquer proposta, desiludindo os pais. Escreveu no Instagram: "Sei que falhei, mas continuo a tentar fazê-los felizes." O seu amigo de infância Hengki Anhar também estava a lutar para encontrar trabalho. "Perguntavam pelas minhas habilitações. Mas, para ser honesto, não tenho nenhuma", disse-nos Anhar recentemente, referindo-se a conversas com potenciais empregadores.

Nessa altura, muitos aldeões que tinham aceitado empregos como marinheiros em navios de pesca estrangeiros estavam a regressar com dinheiro suficiente para comprar motas e casas. Anhar sugeriu então que ele e Aritonang também fossem para o mar. Aritonang concordou, dizendo: "Desde que fiquemos juntos." Daniel Aritonang tencionava usar o dinheiro para fazer obras na casa dos pais ou talvez para começar um negócio.

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Depois de terminar o ensino secundário, o indonésio Daniel Aritonang não encontrou emprego na sua aldeia e decidiu ir trabalhar para um barco de pesca Instagram de Daniel Aritonang

Firmandes Nugraha, outro amigo, temia que Aritonang não fosse talhado para um trabalho tão duro como aquele. "Fizemos um teste de corrida e ele ficou exausto muito facilmente", diz. Mas Aritonang não se deixou dissuadir. Um ano depois, em Julho, ele e Anhar viajaram para a cidade portuária de Tegal e candidataram-se a um emprego através de uma agência de recrutamento chamada PT Bahtera Agung Samudra (esta agência parece não ter licença para funcionar, de acordo com os registos oficiais, e não respondeu às perguntas que lhe foram enviadas). Nessa altura, os dois amigos entregaram os seus passaportes, cópias das suas certidões de nascimento e documentos bancários. Aos 18 anos, Aritonang ainda era suficientemente jovem para que a agência lhe exigisse uma carta de autorização dos pais. Publicou nas redes sociais uma fotografia sua e de outros candidatos, escrevendo: "Apenas um grupo de pessoas comuns que esperam ter um futuro radiante e de sucesso."

Nos dois meses seguintes, Aritonang e Anhar esperaram em Tegal por um navio. A certa altura, durante este tempo de espera, Aritonang pediu a Firmandes Nugraha que lhe emprestasse dinheiro, dizendo que estavam a ter dificuldades em comprar comida. Nugraha pediu-lhe que voltasse para casa: "Tu nem sequer sabes nadar." Aritonang recusou: "Não há outra escolha." Finalmente, a 2 de Setembro de 2019, Aritonang e Anhar viajaram de avião para Busan, na Coreia do Sul, para embarcar no que pensavam ser um navio coreano. Mas quando chegaram ao porto, foi-lhes dito que subissem a bordo de um navio chinês — um navio de pesca de lulas enferrujado, branco e vermelho, chamado Zhen Fa 7. Nesse dia, o navio partiu para atravessar o Pacífico.

Daniel Aritonang tinha acabado de se juntar àquela que poderá ser a maior operação marítima que o mundo alguma vez conheceu. Nas últimas décadas — em parte, num esforço para projectar a sua influência no estrangeiro —, a China aumentou brutalmente a sua frota de pesca em águas longínquas. Hoje, as empresas chinesas possuem ou operam terminais em 95 portos estrangeiros. Estimativas da própria China apontam para um total de 2700 navios de pesca de águas longínquas, embora este número não inclua navios que operam em águas disputadas; os registos públicos e as imagens de satélite sugerem que a frota pode estar mais próxima dos 6500 navios. Em comparação, os EUA e a União Europeia (UE) têm menos de 300 navios de pesca em águas longínquas cada um.

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Partida de uma parte da frota de pesca chinesa no porto de Shidao, península de Shandong, na última semana de Agosto de 2022 Dazhong Daily

Alguns navios chineses que parecem ser navios de pesca fazem inclusivamente reivindicações territoriais em águas disputadas, incluindo no mar do Sul da China e ao largo de Taiwan. "Pode parecer uma frota de pesca, mas, em certos locais, está também a servir objectivos militares", diz Ian Ralby, que dirige a I. R. Consilium, uma empresa de segurança marítima. A primazia da China no mar tem um custo. O país não respeita as leis internacionais e a sua frota é a que mais pratica pesca ilegal no mundo, contribuindo para pôr várias espécies à beira da extinção. Os navios chineses também estão cheios de tráfico de mão-de-obra, servidão por dívidas, violência, negligência criminosa e morte. "As violações dos direitos humanos nestes navios estão a acontecer a uma escala industrial e global", afirma Steve Trent, director da Environmental Justice Foundation.

Foram necessários pouco mais de três meses para que o Zhen Fa 7 atravessasse o oceano e ancorasse perto das ilhas Galápagos. Um navio de pesca de lulas é um lugar agitado, brilhante e confuso. O cenário no convés parece uma oficina de mecânica onde uma mudança de óleo correu terrivelmente mal. Dezenas de linhas de pesca estendem-se na água, cada uma com anzóis específicos movimentados por bobinas automáticas. Quando puxam uma lula para bordo, esta esguicha uma tinta quente e viscosa, que cobre as paredes e o chão do navio. As lulas de profundidade têm níveis elevados de amónia, que utilizam para flutuar, e o cheiro paira no ar. Centenas de lâmpadas do tamanho de bolas de bowling estão penduradas em ambos os lados do navio, atraindo para a superfície as lulas das profundezas. O brilho ofuscante das lâmpadas faz com que a escuridão circundante pareça de outro mundo. "As nossas mentes foram postas à prova", observou Anhar.

Os aposentos do capitão ficavam no convés superior; os oficiais chineses dormiam um nível abaixo dele; e os marinheiros chineses por baixo destes. Os trabalhadores indonésios ocupavam as entranhas do navio. Aritonang e Anhar viviam em camarotes estreitos com beliches. Os estendais com meias e toalhas a secar alinhavam-se nas paredes e havia garrafas de cerveja espalhadas pelo chão. Os indonésios recebiam cerca de 3000 dólares (2800 euros) por ano, mais um bónus de 20 dólares por cada tonelada de lula capturada. Uma vez por semana, uma lista das capturas de cada homem era afixada na messe com intuito de encorajar a tripulação a trabalhar mais. Por vezes, os oficiais davam palmadinhas na cabeça dos marinheiros indonésios, como se fossem crianças. Quando estavam zangados, insultavam-nos ou batiam-lhes. O capataz dava bofetadas e socos nos trabalhadores que cometiam erros. "É como se não tivéssemos qualquer dignidade", recorda Anhar.

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Tripulação a trabalhar durante a noite num barco chinês de pesca de lulas Ed Ou/The Outlaw Ocean Project
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Navio de pesca Jao Tu 668 no Pacífico Sul, perto das Galápagos — um navio de pesca de lulas é um lugar agitado, brilhante e confuso Ed Ou/The Outlaw Ocean Project

O navio raramente se encontrava perto de terra para haver rede de telemóvel. De qualquer modo, a maioria dos marinheiros não tinha telefones que funcionassem no estrangeiro. De vez em quando, os membros da tripulação chinesa podiam utilizar um telefone por satélite na ponte de comando do navio. Mas quando Aritonang e outros indonésios pediam para telefonar para casa, o capitão recusava.

Depois de algumas semanas a bordo, um ajudante de convés chamado Rahman Finando teve a coragem de perguntar se podia ir para casa. O capitão disse-lhe que não. Alguns dias mais tarde, um outro marinheiro, Mangihut Mejawati, deu com um grupo de oficiais e marinheiros chineses a bater em Finando para o castigar por causa do pedido para ir embora. "Bateram-lhe no corpo todo e pisaram-no", conta Mejawati. Os outros marinheiros gritaram-lhes que parassem e vários deles entraram na luta. Por fim, a violência terminou, mas os marinheiros ficaram presos no navio. Mejawati: "Era como se estivéssemos numa jaula."

Quando os americanos descobriram os calamari

Quase cem anos antes de Cristóvão Colombo, a China dominava os mares. Nas primeiras décadas do século XV, o imperador chinês Yongle enviou para o Índico várias frotas com os chamados "barcos do tesouro", que incluíam navios de guerra, transporte de cavalaria e navios mercantes que transportavam seda e porcelana. Eram alguns dos maiores navios de madeira jamais construídos, com inovações como lemes compensados e amuradas com compartimentos que antecederam em séculos a tecnologia europeia. A dimensão desta armada só viria a ser ultrapassada pelas marinhas que lutaram na Primeira Guerra Mundial. Mas durante a dinastia Ming, a instabilidade política levou a China a virar-se para o seu interior. Em meados do século XVI, navegar num barco com vários mastros tornou-se um crime. Ao imobilizar a sua frota, a China perdeu a sua relevância além-fronteiras. Louise Levathes, autora de When China Ruled the Seas, faz notar que "o período de maior expansão externa da China foi seguido pelo período do seu maior isolamento".

Durante a maior parte do século XX, a pesca em águas longínquas — grande parte da qual tem lugar em alto mar — foi dominada pela antiga União Soviética, pelo Japão e pela Espanha. Mas o colapso da URSS, em 1991, juntamente com o aumento das leis ambientais e laborais, fez com que estas frotas diminuíssem. Desde os anos 1960, porém, houve avanços na refrigeração, na tecnologia de satélites, na eficiência dos motores e eficácia do radar. Actualmente, os navios podem permanecer no mar durante mais de dois anos sem regressar a terra. Como resultado, o consumo mundial de pescado quintuplicou.

A pesca da lula cresceu especificamente por causa do apetite crescente dos consumidores norte-americanos. Até ao início dos anos 1970, os americanos consumiam lulas em pequenas quantidades, principalmente em restaurantes de nicho na costa. Mas, à medida que a sobrepesca esgotava as reservas de peixe, o governo federal encorajou os pescadores a concentrarem-se na lula, cujas reservas ainda eram robustas. Em 1974, um estudante de Gestão chamado Paul Kalikstein publicou uma tese de mestrado em que afirmava que os americanos prefeririam as lulas panadas e fritas. Os promotores sugeriram que lhe chamassem “calamari”, a palavra italiana, o que fazia com que soasse mais como um prato gourmet. (Pensa-se que squid seja uma variante dos marinheiros para squirt, uma referência ao esguicho de tinta da lula.) Nos anos 1990, cadeias de restaurantes em todo o midwest estavam a servir lulas. Hoje, os americanos comem cem mil toneladas por ano.

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Quando se puxa uma lula para bordo, esta esguicha uma tinta quente e viscosa, que cobre as paredes e o chão do navio Ed Ou/The Outlaw Ocean Project

A China lançou a sua primeira frota de pesca em águas longínquas em 1985, quando uma empresa estatal chamada Empresa Nacional de Pesca da China (CNFC, na sigla em inglês) enviou 13 arrastões para a costa da Guiné-Bissau. A China tinha pescado nas suas próprias águas costeiras de uma forma agressiva. Desde os anos 1960, a sua biomassa de peixe diminuiu 90%. Zhang Yanxi, o director-geral da empresa, argumentou que o facto de a CNFC se juntar "às fileiras das potências mundiais da pesca offshore" faria com que a China ganhasse dinheiro, criasse empregos, alimentasse a sua população e salvaguardasse os seus direitos marítimos. O Governo chinês de então organizou no porto de Mawei, em Fuzhou, província de Fujian, uma grande cerimónia de despedida para o lançamento dos primeiros navios, com mais de mil convidados, incluindo as elites do Partido Comunista. Um vídeo promocional descrevia a tripulação como "duzentos e vinte e três corajosos pioneiros a abrir caminho entre as ondas".

Desde então, a China investiu fortemente na sua frota. Hoje, o país pesca por ano mais de 2,2 milhões de toneladas em águas longínquas, sendo a maior parte lulas. A indústria de pesca da China, cujo valor é estimado em mais de 35 mil milhões de dólares (32,9 mil milhões de euros), representa um quinto do comércio internacional e ajudou a criar 15 milhões de empregos. O Estado chinês detém grande parte da indústria — incluindo cerca de 20% dos navios de pesca de lulas — e supervisiona o resto através da Associação Chinesa das Pescas Ultramarinas (COFA, na sigla em inglês). Neste momento, a China consome mais de um terço do peixe do mundo.

A frota de pesca da China também aumentou a influência internacional do regime de Pequim. O país construiu dezenas de portos no âmbito da iniciativa One Belt, One Road (também conhecida por “Nova Rota da Seda”), um programa global de infra-estruturas que, em alguns casos, tornou a China o maior financiador de países da América do Sul, da África subsariana e do Sul da Ásia. Na prática, estes portos permitem-lhe fugir aos impostos e evitar a intromissão de inspectores. Os investimentos nestes países também compram a influência de Pequim. Em 2007, a China emprestou ao Sri Lanka mais de 300 milhões de dólares para pagar a construção de um porto — em 2017, quando estava à beira do incumprimento do empréstimo, o Sri Lanka foi forçado a celebrar um acordo que concedia à China o controlo do porto e arredores durante 99 anos.

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O brilho ofuscante das lâmpadas dos navios de pesca de lulas faz com que a escuridão circundante pareça de outro mundo Ed Ou/The Outlaw Ocean Project

Analistas militares acreditam que a China utiliza a sua frota de pesca para fins de vigilância. Em 2017, o país aprovou uma lei que exige que cidadãos e empresas privadas apoiem os esforços dos serviços secretos chineses. Os portos usam uma plataforma de logística digital chamada “Logink”, que rastreia o movimento de navios e mercadorias na área circundante — incluindo, eventualmente, carga militar americana. Michael Wessel, membro da Comissão de Revisão Económica e de Segurança EUA-China, diz: "Esta é uma informação realmente sensível para os EUA cederem." Por seu lado, o Partido Comunista Chinês rejeitou estas preocupações, afirmando: "Não é segredo para ninguém que os EUA se tornaram cada vez mais paranóicos em relação a qualquer coisa relacionada com a China."

A China tem enviado também a sua frota pesqueira para águas disputadas. "É provável que a China acredite que, com o tempo, a presença da sua frota em águas distantes se converta num certo grau de controlo soberano sobre essas águas", diz Ian Ralby. Alguns dos seus navios estão disfarçados de navios de pesca, mas na realidade formam aquilo a que os especialistas chamam uma "milícia marítima". De acordo com dados recolhidos pelo Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS, na sigla em inglês, um think tank dos EUA), o Governo chinês paga aos proprietários de alguns destes navios 4500 dólares por dia para ficarem em zonas disputadas durante a maior parte do ano. Dados de satélite mostram que, no ano passado, várias dezenas de navios pescaram ilegalmente em águas taiwanesas e que havia 200 navios em zonas disputadas do mar do Sul da China. Estes navios ajudam a executar o que um estudo recente do Serviço de Investigação do Congresso dos EUA designou por "operações de ‘zona cinzenta’, que utilizam a coerção sem chegar à guerra" — escoltam navios chineses de prospeção de petróleo e gás, entregam abastecimentos e obstruem a rota a navios estrangeiros.

Por vezes, estes navios são chamados à acção. Em Dezembro de 2018, o Governo filipino começou a reparar uma pista de aterragem e a construir um molhe na ilha de Thitu, um pedaço de terra reivindicado pelas Filipinas e pela China. Mais de 90 navios chineses juntaram-se ao longo da sua costa, atrasando a construção. Em 2019, um navio chinês abalroou e afundou um barco filipino ancorado no monte submarino Reed, uma região disputada no mar do Sul da China que é rica em reservas de petróleo. Zhou Bo, um coronel sénior chinês reformado, avisou recentemente que este tipo de confrontos poderia desencadear uma guerra entre os EUA e a China. O Governo chinês recusou-se a comentar estes casos. Mas Mao Ning, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, já sublinhou o direito do seu país a defender "a soberania territorial e a ordem marítima da China". Greg Poling, membro sénior do CSIS, diz que a presença da frota chinesa em águas disputadas faz parte do mesmo projecto, que é assumir o controlo de Taiwan. "O objectivo destes navios de pesca é [ajudar a] recuperar o ‘território perdido’ e restaurar a antiga glória da China", afirmou.

Alto-mar, um mundo sem dono

Não há dados sobre a frota de pesca de águas longínquas da China. O país divulga pouca informação sobre as suas embarcações e algumas permanecem no mar durante mais de um ano de cada vez, o que torna difícil a sua inspecção. Apoiado por uma equipa de investigadores que trabalham para uma organização de jornalismo sem fins lucrativos que dirijo, chamada Outlaw Ocean Project, passei os últimos quatro anos a visitar navios da frota chinesa nas suas maiores zonas de pesca: perto das ilhas Galápagos; perto das ilhas Malvinas; ao largo da costa da Gâmbia; e no mar do Japão, perto da península coreana. Quando me foi permitido, entrei a bordo dos navios para falar com a tripulação; ou aproximei-me deles para entrevistar oficiais por rádio. Em muitos casos, os navios chineses assustavam-se, recolhiam os seus equipamentos e zarpavam. Quando isso acontecia, seguia-os numa lancha, aproximando-me o suficiente para atirar para bordo garrafas de plástico cheias de arroz, contendo também uma caneta, cigarros, rebuçados e perguntas num papel. Em várias ocasiões, os marinheiros atiraram as garrafas de novo para a água, escreveram respostas e números de telefone de familiares. Esta reportagem incluiu entrevistas com os seus familiares e com mais duas dúzias de membros de tripulação.

Por ano, a China reforça a sua frota com subsídios de mais de sete mil milhões de dólares (6,5 mil milhões de euros), bem como com apoio logístico, de segurança e de informações. Envia aos navios, por exemplo, informações actualizadas sobre a dimensão e a localização das principais colónias de lulas do mundo, permitindo-lhes coordenar a sua pesca. Em 2022, observámos cerca de 260 navios a pescar num pedaço de mar a oeste das Galápagos. Esta armada levantou âncora de repente e, quase em simultâneo, deslocou-se cem milhas para sudeste. Ted Schmitt, director do Skylight, um programa de monitorização marítima, diz que este movimento é invulgar: "Os navios de pesca da maioria dos outros países não trabalhariam juntos a esta escala." Em Julho do mesmo ano, encostei-me ao Zhe Pu Yuan 98, um navio de pesca de lulas que funciona como hospital flutuante para tratar os marinheiros sem os trazer para terra. "Quando os trabalhadores estão doentes, vêm para o nosso navio", disse-me o capitão, por rádio. A embarcação transportava um médico, tinha uma sala de operações, um aparelho para fazer análises ao sangue e salas de videoconferência para consultar médicos na China. O antecessor deste médico tinha tratado mais de 300 pessoas nos cinco anos anteriores.

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O Zhe Pu Yuan 98 é um navio de pesca de lulas que também funciona como navio-hospital Ben Blankenship/The Outlaw Ocean Project

Em Fevereiro de 2022, fui para mar alto, perto das ilhas Falkland, com o grupo de conservação Sea Shepherd e o documentarista Ed Ou, que também serviu como tradutor na viagem. Nessa altura, consegui entrar num navio chinês de pesca de lulas. O capitão deu-nos autorização para andarmos livremente na embarcação, desde que não mencionássemos o nome do navio. Ficou na ponte de comando, mas mandou um oficial seguir-me para onde quer que fosse. O ambiente no navio parecia o de um purgatório aquático. A tripulação era composta por 31 homens — os marinheiros tinham os dentes amarelados por causa do tabaco, a pele pálida e as mãos feridas e esponjosas por causa das artes de pesca cortantes e da humidade permanente. O cenário a bordo lembrava uma observação do filósofo cita Anacharsis, que dividia as pessoas em três categorias: os vivos, os mortos e os que estavam no mar.

Quando as lulas se agarravam a um dos anzóis da linha, um enrolador automático recolhia-as para uma prateleira de metal. Os marinheiros atiravam-nas depois para cestos de plástico para serem seleccionadas. Muitas vezes, os cestos transbordavam e o chão enchia-se de lulas até às canelas. As lulas tornavam-se translúcidas nos seus últimos momentos, por vezes sibilando ou cuspindo. O fedor e a sujidade da tinta de lula são praticamente impossíveis de tirar da roupa. É comum os membros da tripulação atarem as suas roupas sujas a uma corda e arrastarem-na durante horas na água atrás do navio. Por baixo do convés, outros membros da tripulação pesavam, seleccionavam e embalavam as lulas para congelação. Na cozinha, alguém disse que o navio já não tinha frutas ou legumes frescos e perguntou se lhe poderíamos dar alguns do nosso navio.

Falámos com dois marinheiros chineses que vestiam coletes salva-vidas cor de laranja. Nenhum deles quis dizer o seu nome, por receio de represálias. Um tinha 28 anos e o outro 18. Era a sua primeira vez no mar e tinham assinado contratos de dois anos. Ganhavam cerca de dez mil dólares por ano, mas, por cada dia de baixa por doença ou ferimento, ser-lhes-iam descontados dois dias de salário. O marinheiro mais velho conta que viu um peso de pesca ferir o braço de outro membro da tripulação. A certa altura, o oficial que nos seguia foi chamado. O marinheiro mais velho disse então que muitos dos tripulantes eram mantidos ali contra a sua vontade. "É impossível ser feliz", diz ele. "Não queremos estar aqui, mas somos obrigados a ficar." Calcula que 80% dos outros homens se iriam embora, se lhes fosse permitido. "É como estar isolado do mundo e longe da vida moderna."

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Ramadhan Sugandhi, Laode Muslihin, Yansel Lianus Saputra e Frans Wiliam Imbaba prepararam sacos para armazenar lulas Yansel Lianus Saputra

Com um ar nervoso, o marinheiro mais novo conduziu-nos a um corredor escuro. "Os nossos passaportes foram roubados", disse. "Eles não os vão devolver. Podemos pedir-lhe que nos ajude?" Começou a escrever no seu telemóvel. "Não posso revelar muito neste momento, porque ainda preciso de trabalhar no navio e se der demasiada informação pode haver problemas a bordo", escreveu. Deu-me o número de telefone da sua família e pediu-me para os contactar. "Pode levar-nos à embaixada na Argentina?", perguntou. Nesse preciso momento, o oficial encarregado de me seguir dobrou a esquina e o marinheiro foi-se embora. Minutos depois, fomos levados para fora do navio.

Quando regressei a terra, contactei a família do marinheiro mais novo. "Tenho o coração a arder", disse a irmã mais velha, uma professora de Matemática em Fujian, depois de se inteirar da situação do irmão. A família discordava da sua decisão de ir para o mar, mas ele era persistente. Ela não sabia que ele estava a ser mantido em cativeiro e sentiu-se impotente para o libertar. "Ele é demasiado jovem", disse ela. "E agora não há nada que possamos fazer, porque ele está muito longe."

Beribéri, um sinal

Em Junho de 2020, o Zhen Fa 7 viajou para uma zona de oceano entre as Galápagos e o Equador continental. O navio era propriedade da Rongcheng Wangdao Deep-Sea Aquatic Products, uma empresa de média dimensão com sede em Shangdong. A bordo, Daniel Aritonang habituou-se lentamente à sua nova vida. O capitão descobriu que ele tinha experiência em mecânica e transferiu-o para a casa das máquinas, onde o trabalho era um pouco menos exigente. Para as refeições, o cozinheiro preparava panelas de arroz misturado com pedaços de peixe. Os indonésios recebiam duas caixas de massa instantânea por semana. Se quisessem mais comida — ou café, álcool e cigarros —, o custo podia ser deduzido nos seus salários. As fotografias da tripulação mostram os marinheiros a posar com as suas capturas e a juntarem-se para celebrar com cervejas.

Um dos amigos de Aritonang a bordo chamava-se Heri Kusmanto. "Quando embarcámos no navio nas primeiras semanas, Heri era uma pessoa animada", contou Mangihut Mejawati. "Ele conversava, cantava e brincava com todos." O trabalho de Kusmanto era carregar cestos de lulas de cem quilos até ao porão refrigerado. Por vezes, cometia erros, o que lhe valia pancadas. "Não se atrevia a ripostar", contou-me um ajudante de convés chamado Fikran. "Ficava quieto e não se mexia." O cozinheiro do navio batia muitas vezes em Kusmanto, por isso ele evitava-o, comendo arroz branco simples na cozinha, quando o cozinheiro não estava por perto. Kusmanto depressa ficou doente. Perdeu o apetite e deixou de falar, comunicando sobretudo através de gestos. "Parecia uma criança", conta Mejawati. Depois, as pernas e os pés de Kusmanto incharam e começaram a doer-lhe.

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Daniel Aritonang (à esquerda) e outro marinheiro do Zhen Fa 7 Facebook de Ferdi Arnando

Kusmanto parecia estar a sofrer de beribéri, uma doença causada por uma deficiência de vitamina B1, ou tiamina. O seu nome deriva de uma palavra cingalesa, “beri”, que significa "fraco" ou "não posso". É frequentemente causada por uma dieta que consiste sobretudo em arroz branco, massa instantânea ou farinha de trigo. Os sintomas incluem formigueiro, ardor, dormência, dificuldade em respirar, letargia, dores no peito, tonturas, confusão e inchaço grave. Tal como o escorbuto, o beribéri era comum entre os marinheiros do século XIX. É uma doença que também tem um historial em prisões, asilos e campos de migrantes. Se não for tratada, pode ser fatal.

O beribéri está a tornar-se frequente nos navios chineses, em parte porque as embarcações permanecem muito tempo no mar, uma tendência facilitada pelo transbordo, que permite que os navios descarreguem as suas capturas em transportadores refrigerados sem regressarem a terra. Os navios chineses normalmente armazenam arroz e massa instantânea para viagens longas, porque são alimentos baratos e não se estragam com facilidade. Mas quando os hidratos de carbono são consumidos em grandes quantidades e durante períodos de esforço intenso, o corpo pede mais vitamina B1. Os cozinheiros dos navios também misturam arroz ou massa com peixe cru ou fermentado e complementam as refeições com café e chá, todos eles ricos em tiaminase, que destrói a B1, agravando o problema.

O beribéri é visto frequentemente como uma indicação da condição de cativeiro de alguém, isto porque é evitável e facilmente reversível. Alguns países (mas não a China) exigem que o arroz e a farinha sejam suplementados com B1. A doença também pode ser tratada com vitaminas e, quando o B1 é administrado por via intravenosa, regra geral, os doentes recuperam em 24 horas. Mas poucos navios chineses parecem transportar suplementos de B1. Em muitos casos, os comandantes recusam-se a levar os membros da tripulação doentes para terra, provavelmente porque o processo implicaria perda de tempo e custos de mão-de-obra. Por outro lado, a ondulação pode tornar perigosa a aproximação entre navios grandes para transferir tripulantes.

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Um navio de pesca de lulas, o He Bei 8599, faz um transbordo de produtos do mar para o navio de transporte Hai Feng 718 nos pesqueiros de alto-mar no Atlântico Sul Youenn Kerdavid/Sea Shepherd Global

Ao todo, entre 2013 e 2021, encontrámos duas dúzias de casos de trabalhadores em navios chineses que sofreram de sintomas associados ao beribéri; pelo menos quinze morreram. Victor Weedn, um patologista forense de Washington, diz que, nos EUA, deixar que um trabalhador morra de beribéri constituiria negligência criminosa. "Um assassínio em câmara lenta não deixa de ser um assassínio."

O contrato tipicamente utilizado pela agência que recrutou Kusmanto estipulava pesadas penalizações financeiras para os trabalhadores e as suas famílias se estes se despedissem prematuramente. Também permitia que a empresa ficasse com os documentos de identidade dos trabalhadores, incluindo o passaporte, durante o processo de recrutamento, e que ficasse com os documentos, se eles não pagassem uma multa por saírem antes do fim do contrato — disposições que violam as leis dos EUA e da Indonésia. Mesmo assim, à medida que o estado de saúde de Kusmanto piorava, os seus companheiros de tripulação indonésios perguntaram se ele podia ir para casa. O capitão recusou. A Rongcheng Wangdao negou ter cometido qualquer infracção. Não foi possível identificar os capitães dos navios chineses mencionados nestes casos para que pudessem comentar o assunto. Um porta-voz da agência de recrutamento culpou Kusmanto pela sua doença, escrevendo: "Quando estava no navio, não queria tomar duche, não queria comer e só comia massa instantânea."

Na altura, o navio podia estar a pescar ilegalmente, o que poderia complicar a situação de Kusmanto. De acordo com um relatório dos serviços secretos não publicado e compilado pelo Governo dos EUA, durante este período o Zhen Fa 7 desligou o seu transponder de localização (repetidor de radiofrequência) várias vezes, em violação da lei chinesa. Isto geralmente ocorria quando o navio estava perto das águas equatorianas e peruanas; os capitães costumam ir às escuras para pescar em águas de outros países, como as do Equador, onde os navios chineses são normalmente proibidos. "A menos que sejam apanhados em flagrante, isto é o mais próximo a que se pode chegar de provas concretas", diz Michael J. Fitzpatrick, embaixador dos EUA no Equador.

Os navios da Rongcheng Wangdao são conhecidos por pescar em áreas não autorizadas; um dos navios irmãos do Zhen Fa 7 foi multado por entrar ilegalmente em águas peruanas em 2017, e outro foi encontrado a pescar ilicitamente na costa da Coreia do Norte. A empresa recusou-se a comentar este assunto. A transferência de Kusmanto para outro navio teria exigido a divulgação da localização do Zhen Fa 7, o que poderia ser incriminatório.

No início de Agosto, Kusmanto ficou desorientado. Outros marinheiros exigiram que lhe fosse prestada assistência médica. Por fim, o capitão cedeu e transferiu-o para outro navio, que o levou até ao porto de Lima. Foi levado para um hospital, onde recuperou; mais tarde, regressou a casa de avião. (Kusmanto não pôde ser contactado para comentar o caso.) Entretanto, o resto da tripulação, que já estava no mar há um ano, foi revelando um crescente sentimento de isolamento. "Inicialmente, tinham-nos dito que iríamos navegar durante oito meses e que depois iriam atracar o navio", disse Anhar. "O facto é que nunca desembarcámos em lado nenhum."

Afogar botos e cortar barbatanas dos tubarões

A China pratica mais pesca ilegal do que qualquer outro país, de acordo com a Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional. Operar em alto mar é caro e não há praticamente nenhuma presença de agentes da lei — o que incentiva a pesca em regiões proibidas e a utilização de técnicas ilegais para obter vantagens competitivas. A pesca agressiva tem um custo ambiental. Um terço das unidades populacionais marinhas do mundo é objecto de sobrepesca. A população de lulas, outrora abundante, diminuiu drasticamente. Mais de 30 países, incluindo a China, proibiram a extracção de barbatanas de tubarão, mas a prática persiste. Os navios chineses capturam frequentemente tubarões-martelo, tubarões-brancos e tubarões-azuis para que as suas barbatanas possam ser utilizadas na sopa de barbatanas de tubarão.

Em 2017, as autoridades equatorianas descobriram pelo menos seis mil tubarões capturados ilegalmente a bordo de um único navio-frigorífico. Outras espécies marinhas também estão a ser dizimadas. As embarcações que pescam totoaba, um peixe grande cuja bexiga natatória é muito apreciada na medicina chinesa, usam redes que inadvertidamente enredam e afogam botos-do-Pacífico, também conhecidos por “vaquita-marinha”, que vivem apenas no mar de Cortez, no México. Como resultado desta prática, os investigadores estimam que restem apenas cerca de dez vaquitas-marinhas, sendo hoje o cetáceo mais ameaçado do mundo.

A China tem a maior frota de navios de arrasto de profundidade do mundo, que espalham redes pelo fundo do mar, arrasando os recifes de coral. Os sedimentos marinhos armazenam grandes quantidades de carbono e, de acordo com um estudo recente publicado na revista Nature, os arrastões de fundo libertam quase mil milhões e meio de toneladas de dióxido de carbono por ano — o mesmo que toda a indústria da aviação.

As práticas de pesca ilegais da China também roubam aos países mais pobres os seus próprios recursos. Ao largo da costa da África Ocidental, onde a China mantém uma frota de centenas de navios, estima-se que a pesca ilegal custe à região mais de 8,4 mil milhões de euros.

Mas a maior concentração de navios de pesca ilegal do mundo poderá ter sido uma frota chinesa em águas norte-coreanas. Em 2017, em resposta aos testes de mísseis nucleares e balísticos da Coreia do Norte, o Conselho de Segurança das Nações Unidas, com o aparente apoio da China, impôs sanções destinadas a privar o regime de Kim Jong Un de divisas estrangeiras, em parte impedindo-o de vender direitos de pesca, uma importante fonte de rendimento. De acordo com a ONU, Pyongyang continuou a obter divisas — 113 milhões de euros só em 2018 — concedendo direitos de pesca ilegais, predominantemente a empresas chinesas. Um anúncio no site chinês Zhihu oferece licenças emitidas pelos militares norte-coreanos para a pesca "sem risco e de alto rendimento", sem limites de captura: "Ansioso por uma cooperação vantajosa para todos." A China parece não conseguir ou não querer impor sanções ao seu aliado.

Os barcos chineses contribuíram para o declínio da população de lulas da região; as capturas diminuíram cerca de 70% desde 2003. Os pescadores locais não conseguem competir. "Vamos ficar arruinados", disse Haesoo Kim, líder de uma associação de pescadores sul-coreanos na ilha de Ulleung, que visitei em Maio de 2019. Os capitães de pesca norte-coreanos foram forçados a afastar-se da costa, e os seus navios são apanhados por tempestades ou sucumbem a falhas de motor, e os membros da tripulação enfrentam a fome, temperaturas geladas e afogamento. Cerca de uma centena de pequenos barcos de pesca norte-coreanos dão à costa no Japão todos os anos, alguns deles com cadáveres de pescadores. Os barcos chineses que navegam nestas águas são também conhecidos por abalroar navios de patrulha. Em 2016, pescadores chineses abalroaram e afundaram um navio sul-coreano no mar Amarelo. Noutro incidente, a Guarda Costeira sul-coreana abriu fogo contra mais de duas dúzias de navios chineses que se precipitaram sobre as suas embarcações.

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Ian Urbina observa um barco de pesca chinês nas águas entre a Coreia do Norte e do Sul, em Maio de 2019 Fábio Nascimento/The Outlaw Ocean Project

Em 2019, embarquei num navio de pesca de lulas sul-coreano até à fronteira marítima entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul. Não demorámos muito tempo a encontrar uma fila de barcos chineses de pesca de lulas que se dirigia para águas norte-coreanas. Fomos para perto deles e lançámos um drone para captar os seus números de identificação. Um dos capitães chineses tocou a buzina e acendeu as luzes — sinais de aviso no protocolo marítimo. Como estávamos em águas sul-coreanas e a uma distância legal, o nosso capitão manteve o rumo. O capitão chinês virou abruptamente na nossa direcção, numa trajectória de colisão. O nosso capitão desviou-se quando o navio chinês estava a apenas 30 metros.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês diz que "a China tem aplicado de forma consistente e conscienciosa as resoluções do Conselho de Segurança relativas à Coreia do Norte" e acrescentou que o país tem "punido de maneira firme" a pesca ilegal. Mas o ministério não admitiu, nem negou que a China envia barcos para águas norte-coreanas. Em 2020, a organização sem fins lucrativos Global Fishing Watch utilizou dados de satélite para revelar que centenas de navios chineses de captura de lulas estavam a pescar rotineiramente em águas norte-coreanas. Em 2022, a China tinha reduzido esta armada ilegal em 75% em relação ao seu pico. Ainda assim, em águas não regulamentadas, as horas trabalhadas pela frota aumentaram e a quantidade das suas capturas também cresceu.

“Se isto é uma dor de barriga...”

Pouco depois do dia de Ano Novo de 2021, o Zhen Fa 7 contornou a ponta da América do Sul e fez uma breve paragem em águas chilenas, suficientemente perto da costa para haver rede de telemóvel. Daniel Aritonang dirigiu-se à ponte de comando e, com um tom brincalhão e num inglês pobre, perguntou a um dos oficiais se lhe podia emprestar o telemóvel. Esfregando o indicador e o polegar um no outro, o oficial deu sinais de que sim, mas que isso lhe ia custar dinheiro. Aritonang correu para baixo do convés, vendeu alguns dos seus cigarros e snacks a outros marinheiros, pediu emprestado todo o dinheiro que pôde e regressou com o equivalente a cerca de 13 dólares, o que lhe daria para cinco minutos ao telefone. Ligou para casa dos pais e a mãe atendeu, entusiasmada por ouvir a sua voz. Disse-lhe que estaria em casa em Maio e pediu para falar com o pai. “Ele está a dormir, disse-lhe ela. Na verdade, ele tinha morrido de ataque cardíaco alguns dias antes, mas a mãe de Aritonang não queria perturbar o filho, enquanto ele estava no mar. Mais tarde, disse ao pastor da aldeia que estava ansiosa pelo regresso de Daniel. “Ele quer construir uma casa para nós, disse ela.

Pouco depois, o navio ancorou numa zona chamada “Buraco Azul”, uma área perto das ilhas Malvinas, onde as disputas territoriais em curso entre o Reino Unido e a Argentina criam uma lacuna na aplicação da lei marítima que os navios podem explorar. Aritonang ficou com saudades de casa, permanecendo no seu quarto e comendo sobretudo massa instantânea. Ele parecia ficar triste e cansado, disse Fikran. Em Janeiro desse ano, Aritonang adoeceu com beribéri. O branco dos seus olhos ficou amarelo e as pernas ficaram inchadas. O Daniel estava em muito mau estado, lembrou Anhar. O capitão recusou-se a prestar-lhe assistência médica. Ainda havia muita lula, disse Anhar. Estávamos a meio de uma operação. Em Fevereiro, a tripulação descarregou a pesca num navio-frigorífico que o transportou para as Maurícias. Mas, por razões que ainda não são claras, o capitão recusou-se a enviar Aritonang para terra também.

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O Zhen Fa 7 pesca à noite equipado com centenas de lâmpadas para atrair as lulas Einar Ollua e Esteban Medina San Martin

Quando Aritonang já não conseguia andar, a tripulação indonésia dirigiu-se novamente à ponte de comando e confrontou o capitão, ameaçando fazer uma greve, se ele não arranjasse ajuda médica. Estávamos todos contra o capitão, disse Anhar. Finalmente, o capitão cedeu e, a 2 de Março, transferiu Aritonang para um navio-tanque de combustível, o Marlin, que concordou em transportá-lo para Montevideu, no Uruguai. A tripulação do Marlin levou-o para uma área de serviço ao largo da costa, onde um barco o apanhou e o levou para o porto. Uma agência marítima que representa a Rongcheng Wangdao no Uruguai telefonou para um hospital local e uma ambulância levou-o para lá.

Jesica Reyes, de 36 anos, é uma das poucas intérpretes de indonésio em Montevideu. Aprendeu a língua sozinha, enquanto trabalhava num cibercafé popular entre os tripulantes indonésios; chamavam-lhe “Mbak”, que significa "senhora" ou "irmã mais velha". De 2013 a 2021, navios pesqueiros, a maioria chineses, desembarcaram um cadáver em Montevideu a cada mês e meio, aproximadamente. Durante um jantar recente, Reyes falou-nos de centenas de marinheiros em dificuldades que ela tinha ajudado. Descreveu-me, por exemplo, o caso de um desses marinheiros que morreu de uma infecção dentária, porque o seu capitão não o levou para terra. Falou-me de outro marinheiro doente, cuja agência se recusou a levá-lo para o hospital, mantendo-o num quarto de hotel enquanto o seu estado se deteriorava — acabou por morrer.

No dia 7 de Março de 2021, a agência marítima da Rongcheng pediu a Reyes que fosse às urgências do hospital para ajudar os médicos a comunicar com Daniel Aritonang; disseram-lhe que ele tinha uma dor de barriga. No entanto, quando ele chegou ao hospital, todo o seu corpo estava inchado e ela podia ver nódoas negras à volta dos olhos e do pescoço. Ele sussurrou-lhe que tinha sido amarrado pelo pescoço (outros marinheiros disseram-me mais tarde que não tinham visto isto acontecer e que não sabiam quando é que ele tinha sofrido os ferimentos). Reyes telefonou para a agência marítima e disse: "Se isto é uma dor de barriga... vocês não estão a ver este rapaz. Ele está todo lixado!" Em pânico, Reyes começou sorrateiramente a tirar fotografias do corpo até que os médicos lhe pediram para parar.

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Jesica Reyes é a única tradutora de indonésio em Montevideu — é frequente ser chamada para ajudar na comunicação com marinheiros indonésios em dificuldades Facebook de Jesica Reyes

Ainda na sala das urgências, os médicos começaram a tratar Aritonang, que, a chorar e a tremer, perguntou a Reyes: "Onde estão os meus amigos?" E sussurrou: "Estou com medo." Aritonang foi declarado morto na manhã seguinte. "Fiquei zangada", disse Reyes. Os marinheiros com quem falámos também estavam furiosos. "Esperamos realmente que, se for possível, o capitão e todos os oficiais sejam capturados, acusados ou presos", declarou Mejawati. Anhar, o melhor amigo de Aritonang, só soube da sua morte depois de desembarcar do Zhen Fa 7 em Singapura, em Maio desse ano. "Ficámos destroçados", disse ele. Quando o encontrámos, ainda guardava uma mala cheia de roupas de Daniel Aritonang, visto que lhe tinha prometido levá-las para sua casa.

A pesca é um dos trabalhos mais mortíferos do mundo — um estudo recente estima que mais de cem mil trabalhadores morrem todos os anos — e os navios chineses estão entre os de condições mais brutais. Os recrutadores têm frequentemente como alvo homens desesperados no interior da China e em países pobres. "Se está endividado, se a sua família o abandonou, se não quer ser desprezado, desligue o telefone e fique longe de terra", lê-se num anúncio online na China. De acordo com documentos judiciais e investigações de agências noticiosas chinesas, alguns candidatos são aliciados com promessas de contratos lucrativos, mas acabam por descobrir que têm de pagar uma série de taxas — por vezes, mais do que o salário de um mês — para cobrir despesas como viagens, formação profissional, certificações da tripulação e vestuário de trabalho e de protecção. Muitas vezes, os trabalhadores pagam estas taxas contraindo empréstimos junto das agências de recrutamento, criando uma forma de servidão por dívidas. As empresas confiscam os passaportes e cobram multas por abandono do emprego, aprisionando ainda mais os trabalhadores. Por vezes, mesmo aqueles que estão dispostos a correr o risco de serem penalizados são, na prática, mantidos em cativeiro nos navios.

Para um relatório de 2022, a Environmental Justice Foundation entrevistou mais de uma centena de membros de tripulações indonésias e descobriu que cerca de 97% viram os seus documentos confiscados ou foram alvo de servidão por dívidas. Por vezes, os trabalhadores nestas condições conseguem alertar as autoridades. Em 2014, 28 trabalhadores africanos desembarcaram de um navio chinês chamado Jia De 1, ancorado em Montevideu, e vários deles queixaram-se de espancamentos a bordo e mostraram marcas de algemas nos tornozelos. Quinze membros da tripulação foram hospitalizados. (A empresa proprietária do navio não respondeu a pedidos de comentário.) Em 2020, vários marinheiros indonésios queixaram-se de espancamentos graves no mar e da presença do corpo de um homem num dos congeladores do navio. Uma autópsia revelou que o homem tinha sofrido hematomas, cicatrizes e uma lesão na coluna vertebral. As autoridades indonésias condenaram vários executivos da agência de recrutamento a mais de um ano de prisão por tráfico de mão-de-obra. (A empresa também não respondeu aos pedidos de comentário.)

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Corpo de Fadhil, 24 anos, que morreu de beribéri no dia 26 de Setembro de 2019, a bordo do Wei Yu 18. Foi colocado duas semanas numa câmara frigorífica e depois atirado ao mar The Outlaw Ocean Project
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Muhammed Sandy Kurniawan e Ramadhan Sugandhi, dois tripulantes do navio de pesca de lulas Wei Yu 18 Yansel Lianus Saputra

Na China, estes abusos laborais são um segredo aberto. Um diário escrito por um marinheiro chinês proporcionou um vislumbre invulgarmente pormenorizado deste mundo. Em Maio de 2013, este marinheiro pagou uma taxa de recrutamento de 200 dólares a uma agência que o enviou para um navio chamado Jin Han Yu 4879. A tripulação foi informada de que os seus primeiros dez dias a bordo seriam um período experimental, após o qual poderiam partir, mas o navio permaneceu no mar durante 102 dias. “Somos escravos para trabalhar em qualquer altura e em qualquer lugar”, escreveu o marinheiro no diário. Segundo ele, aos oficiais era servida carne às refeições, mas os marinheiros só recebiam ossos. Quando a campainha toca, temos de nos levantar, seja de dia, de noite, de manhã cedo, por mais forte que seja o vento, por mais forte que seja a chuva, não há domingos nem feriados.” (A empresa proprietária do navio não respondeu aos pedidos de comentário.)

Na China, o público em geral ficou a conhecer melhor as condições nos navios quando em 2011 a tripulação de um navio de pesca de lulas chamado Lu Rong Yu 2682 se amotinou. O capitão, Li Chengquan, era um homem grande, alto e mal-humorado que, de acordo com um ajudante de convés, pôs um olho negro a um trabalhador que o irritou. Começaram a circular rumores de que o salário anual de sete mil dólares que lhes tinha sido prometido não estava garantido. Em vez disso, ganhariam cerca de quatro cêntimos por quilo de lula capturada — o que seria muito menos. Nove membros da tripulação tomaram o capitão como refém. Nas cinco semanas que se seguiram, a tripulação do navio transformou-se em facções em guerra. Houve homens que desapareceram durante a noite, um membro da tripulação foi amarrado e atirado ao mar e alguém sabotou uma válvula do navio, que começou a deixar entrar água. A tripulação acabou por conseguir consertar o sistema de comunicações do navio e transmitir um sinal de socorro, atraindo dois navios de pesca chineses em seu auxílio. Apenas 11 dos 33 homens da tripulação inicial conseguiram regressar a terra. O líder dos amotinados e o capitão do navio foram condenados à morte pelo Governo chinês. (A empresa proprietária do navio não respondeu aos pedidos de comentário.)

O tráfico de mão-de-obra também foi documentado em barcos americanos, sul-coreanos e tailandeses. Mas a frota da China é indiscutivelmente o pior infractor e pouco tem sido feito para conter as violações. No decorrer desta reportagem descobrimos que, entre 2018 e 2022, a China deu mais de 17 milhões de euros em subsídios a empresas onde pelo menos 50 navios podem estar envolvidos em crimes de pesca ou tiveram mortes ou ferimentos a bordo — alguns dos quais, provavelmente, resultantes das condições de trabalho perigosas. O Governo recusou-se a comentar este assunto, mas Wang Wenbin, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros, disse recentemente que a frota opera "de acordo com as leis e regulamentos" e acusou os EUA de politizar "questões que dizem respeito às pescas em nome da protecção ambiental e dos direitos humanos".

Nos últimos anos, a China concretizou uma série de reformas, mas estas parecem ter mais como objectivo reprimir a dissidência do que responsabilizar as empresas. Em 2017, depois de um trabalhador filipino ter morrido numa luta de facas com alguns dos seus companheiros de tripulação chineses, o Governo de Pequim criou uma delegação do Partido Comunista em Chimbote, no Peru — a primeira para os trabalhadores da pesca —, com o objectivo de reforçar o seu "apoio espiritual". A polícia local de algumas cidades chinesas começou a utilizar ligações de vídeo por satélite para se ligar às pontes de comando de algumas embarcações chinesas. Em 2020, quando os tripulantes chineses de um navio perto do Peru entraram em greve, a empresa contactou a polícia local, que explicou aos trabalhadores que poderiam desembarcar no Peru e regressar à China, mas teriam de pagar os bilhetes de avião. "Não se sentiriam prejudicados, se se demitissem agora?", perguntou um agente da polícia. Os homens voltaram ao trabalho.

Escravatura a bordo

À medida que esta reportagem decorria, iam surgindo histórias de violência e cativeiro, mesmo quando eu não estava à procura delas. Este ano, recebi um vídeo de 2020 no qual dois tripulantes filipinos diziam que estavam doentes, mas que estavam a ser impedidos de abandonar o navio. "Por favor, salvem-nos", pedia um deles. "Já estamos doentes aqui. O capitão não nos quer mandar para o hospital." Três marinheiros morreram nesse Verão; pelo menos um dos corpos foi atirado ao mar. (A agência de recrutamento que contratou estes trabalhadores para o navio, a PT Puncak Jaya Samudra, não respondeu às perguntas enviadas; nem a empresa proprietária do navio.)

Numa viagem a Jacarta, Indonésia, em 2020, conheci meia dúzia de rapazes que me contaram que, em 2019, um jovem marinheiro chamado Fadhil morreu no seu navio, porque os oficiais se recusaram a trazê-lo para terra. "Ele implorava para voltar para casa, mas não lhe foi permitido", disse Ramadhan Sugandhi, um marinheiro de convés. (A empresa proprietária do navio não respondeu aos pedidos de comentário, nem a sua agência de recrutamento, a PT Shafar Abadi Indonesia.) No passado mês de Junho, uma garrafa deu à costa perto de Maldonado, no Uruguai, contendo o que parecia ser uma mensagem de um chinês desesperado. "Olá, sou um membro da tripulação do navio Lu Qing Yuan Yu 765 e fui preso pela empresa", lia-se. "Quando virem este papel, por favor ajudem-me a chamar a polícia! S.O.S. S.O.S." (O proprietário do navio, a Qingdao Songhai Fishery, disse que estas acusações foram inventadas por membros da tripulação.)

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Navio de pesca de lula Fu Xian no Atlântico Sul, num pesqueiro conhecido como "Buraco Azul", a norte das Malvinas — às águas da América do Sul são cada vez mais apetecíveis para a frota chinesa Ben Blankenship/The Outlaw Ocean Project

Jesica Reyes, a tradutora de indonésio, pôs-nos em contacto com Rafly Maulana Sadad, um indonésio que, enquanto trabalhava no Lu Rong Yuan Yu 978 há dois anos, caiu de um lance de escadas e partiu as costas. Voltou imediatamente ao trabalho, puxando as redes; desmaiou e acordou na cama. O capitão recusou-se a levá-lo para terra e Sadad passou os cinco meses seguintes no navio, com o seu estado a piorar. Os amigos de Sadad ajudavam-no a comer e a tomar banho, mas ele estava desorientado e muitas vezes ficava deitado numa poça da sua própria urina. "Tinha dificuldade em falar", contou-nos Sadad no ano passado. "Sentia-me como se tivesse tido um AVC ou algo do género. Não conseguia perceber nada." Em Agosto de 2021, o capitão deixou Sadad em Montevideu e ele passou nove dias no hospital, antes de regressar a casa de avião. (Os pedidos de comentário da Rongcheng Rongyuan, proprietária do navio em que Sadad trabalhou, e da PT Abadi Mandiri International, a sua agência de recrutamento, ficaram sem resposta.) Sadad falou comigo a partir da Indonésia; agora só consegue andar com muletas. "Foi uma experiência de vida muito amarga", disse.

Tal como os barcos que as abastecem, as fábricas de transformação chinesas dependem de trabalho forçado. Nos últimos 30 anos, o Governo norte-coreano tem exigido que os cidadãos trabalhem em fábricas na Rússia e na China, e que depositem 90% dos seus rendimentos — que ascendem a centenas de milhões de dólares — em contas controladas pelo Estado. Os trabalhadores são frequentemente sujeitos a um controlo rigoroso e têm os seus movimentos limitados. As sanções da ONU proíbem este tipo de utilização dos trabalhadores norte-coreanos, mas, de acordo com estimativas do Governo chinês, no ano passado, cerca de 80 mil trabalhadores norte-coreanos viviam apenas numa cidade do Nordeste da China.

De acordo com um relatório do Comité para os Direitos Humanos na Coreia do Norte, pelo menos 450 destas pessoas trabalhavam em fábricas de pescado. O Governo chinês retirou da Internet grande parte das referências a estes trabalhadores. No entanto, utilizando os termos de pesquisa "North Korean beauties", encontrámos vários vídeos no Douyin, a versão chinesa do TikTok, que parecem mostrar trabalhadoras de fábricas de pesca, a maioria posts de funcionários homens, que se mostram curiosos. Um trabalhador chinês observou que as mulheres "têm um forte sentido de identidade nacional e são autodisciplinadas!". Outro argumentou, no entanto, que as trabalhadoras não têm outra opção senão obedecer às ordens, caso contrário "os membros das suas famílias vão sofrer".

Na última década, a China desencadeou uma onda de repressão contra os uigures e outras minorias étnicas em Xinjiang, uma região no Noroeste da China, criando centros de detenção em massa e forçando os detidos a trabalhar em campos de algodão, em quintas de tomate e em fábricas de polissilício (material semicondutor utilizado na produção de células fotovoltaicas). Mais recentemente, num esforço para desestabilizar as comunidades uigures e encontrar mão-de-obra barata para as grandes indústrias, o Governo deslocou milhões de uigures para trabalharem em empresas de todo o país. Os trabalhadores são frequentemente supervisionados por guardas de segurança e postos em dormitórios rodeados de arame farpado.

Ao pesquisar os boletins informativos das empresas, os relatórios anuais e as notícias dos media estatais, descobrimos que, nos últimos cinco anos, milhares de uigures e outras minorias muçulmanas foram postas a trabalhar em fábricas de transformação de pesca. Alguns são submetidos a uma "educação patriótica"; num artigo de 2021, funcionários locais do Partido Comunista afirmaram que os membros de grupos minoritários que trabalhavam numa fábrica de pescado eram uma "grande família tradicional" e estavam a aprender a aprofundar a sua "educação para a unidade étnica".

Laura Murphy, professora da Universidade Sheffield Hallam, no Reino Unido, especialista em tráfico humano, escravidão e trabalho forçado, diz que "tudo isto faz parte do projecto para apagar a cultura, as identidades, a religião e, certamente, a política dos uigures: o objectivo é a transformação completa de toda a comunidade". As autoridades chinesas não responderam a vários pedidos de comentário sobre o trabalho forçado dos uigures e de cidadãos da Coreia do Norte na indústria de transformação da pesca do país.

Os EUA têm leis rigorosas que proíbem a importação de bens produzidos com mão-de-obra norte-coreana ou uigur. A utilização desses trabalhadores noutras indústrias — por exemplo, no fabrico de painéis solares — tem sido documentada nos últimos anos e, em consequência, os EUA confiscaram produtos importados no valor de mil milhões de dólares. Descobrimos, no entanto, que as empresas que empregam uigures e norte-coreanos exportaram recentemente pelo menos 47 mil toneladas de produtos da pesca (incluindo cerca de 17% de todas as lulas transportadas para os EUA). As remessas foram enviadas para dezenas de importadores americanos, incluindo os que abastecem bases militares e cantinas de escolas públicas. "Estas revelações põem um problema muito sério a toda a indústria da pesca", diz Martina Vandenberg, fundadora e presidente do Human Trafficking Legal Center.

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As caixas de lula exportadas para os Estados Unidos são marcadas com um número de lote de lula crua e um número de autorização local para exportação The Outlaw Ocean Project

A China não aceita bem as reportagens sobre este sector. Em 2022, passei duas semanas a bordo do Modoc, um antigo barco da Marinha dos EUA que a organização sem fins lucrativos Earthrace Conservation utiliza como navio-patrulha. Nessa altura estivemos junto de navios chineses de pesca de lulas ao largo da costa da América do Sul. Quando estávamos a regressar a um porto das Galápagos, um navio da Marinha equatoriana aproximou-se de nós e um oficial disse que a nossa autorização para reentrar em águas equatorianas tinha sido revogada: "Se não derem meia volta agora, vamos abordar o vosso barco e prender-vos." Disseram-nos ainda para navegarmos para outro país. Não tínhamos comida nem água suficientes para a viagem. Depois de dois dias de negociações, fomos autorizados a entrar brevemente no porto, onde oficiais equatorianos armados nos abordaram; alegaram que as licenças do navio tinham sido registadas incorrectamente e que o nosso navio se tinha desviado um pouco da rota aprovada ao sair das águas nacionais. Este tipo de infracções não resulta normalmente em mais do que uma multa escrita.

Mas, de acordo com o embaixador Fitzpatrick, a explicação foi um pouco mais complicada. Disse que o Governo chinês tinha contactado vários deputados equatorianos para manifestar a sua preocupação com a presença do que consideravam ser um navio quase militar envolvido em operações secretas. Quando falámos com Juan Carlos Holguín, na altura ministro dos Negócios Estrangeiros do Equador, ele negou que a China estivesse envolvida. Mas Fitzpatrick disse-nos que Quito tem cuidado quando se trata da China, em parte porque o Equador está profundamente endividado para com o país. "A China não gosta dos Modoc", disse ele. "Mas, sobretudo, não queria mais cobertura mediática sobre a sua frota de pesca de lulas."

Pesca criminosamente contaminada

No dia da morte de Daniel Aritonang, Reyes apresentou um relatório à Guarda Costeira uruguaia e mostrou as fotografias do corpo do rapaz aos oficiais. "Eles pareceram bastante desinteressados", disse ela. Mas, no dia seguinte, um médico legista local fez uma autópsia. "Houve uma situação de abuso físico", diz o relatório. Enviei o relatório a Victor Weedn, o patologista forense, que me disse que o corpo apresentava sinais de violência e que o beribéri não tratado parece ter sido a causa da morte. Nicolas Potrie, que dirige o consulado da Indonésia em Montevideu, lembra-se de ter recebido um telefonema de Mirta Morales, a procuradora que investigou o caso de Aritonang. "Temos de continuar a tentar perceber o que aconteceu. Estas marcas — toda a gente as viu", disse Morales a Potrie. Um representante da Rongcheng Wangdao disse que a empresa não encontrou nenhuma prova de má conduta no navio: "Não houve nada relacionado com as suas alegações de incidentes terríveis de abuso, violação, insultos ao carácter de alguém, violência física ou retenção de salários." A empresa disse que tinha entregado o assunto à Associação das Pescas Ultramarinas da China. As questões colocadas a esta associação ficaram sem resposta.

Potrie insistiu em fazer mais perguntas, mas também não houve resposta. Morales recusou-se a partilhar connosco qualquer informação sobre o caso. Em Março de 2022, conversámos em Montevideu com Aldo Braida, o presidente da Câmara de Agentes de Pesca Estrangeiros, associação que representa as empresas que trabalham com navios estrangeiros no Uruguai. Braida classificou os relatos de maus tratos em navios chineses que atracam no porto como "fake news", afirmando que "há muitas mentiras à volta disso". Disse-nos ainda que, se os membros da tripulação cujos corpos foram desembarcados em Montevideu tivessem sofrido maus tratos físicos, as autoridades uruguaias descobririam; e que, quando se juntam homens perto uns dos outros, é provável que surjam lutas. "Vivemos numa sociedade violenta", disse.

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Fadhil com uma lula gigante ao largo do Peru Yansel Lianus Saputra
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Fadhil (de laranja), Ramadhan Sugandhi, Frans Wiliam Imbab e Ilham Sugito posam para uma fotografia depois de gravarem um vídeo juntos Ramadhan Sugandhi

O Uruguai não se tem mostrado disponível para escrutinar mais a China, porque este país traz negócios lucrativos para a região. Em 2018, por exemplo, uma empresa chinesa que havia comprado um terreno de quase 28 hectares a oeste de Montevideu apresentou um plano para construir um “megaporto” de mais de 188 milhões de euros. Os media locais informaram que o porto seria uma zona de comércio livre e incluiria docas de 800 metros de comprimento, um estaleiro, uma estação de abastecimento de combustível e instalações de armazenamento e processamento de produtos da pesca. Há anos que o Governo uruguaio tentava obter esse investimento chinês. O então presidente, Tabaré Vázquez, tentou contornar a Constituição, que exige uma votação de dois terços de ambas as câmaras da Assembleia Geral, e autorizar a construção do porto por ordem executiva. "Há tanto dinheiro em cima da mesa que os políticos começam a contornar a lei para o agarrar", diz Milko Schvartzman, especialista em conservação marinha radicado na Argentina. Mas, devido à resistência da sociedade e dos partidos da oposição, o plano foi cancelado.

A indústria de produtos do mar é difícil de controlar. Uma grande parte do peixe consumido nos EUA é capturado ou processado por empresas chinesas. Existem várias leis para impedir que os EUA importem produtos contaminados por trabalho forçado. Mas a China não fornece pormenores sobre os seus navios e fábricas de processamento de pescado. A certa altura, num navio chinês, um ajudante de bordo mostrou-me pilhas de peixe congelado em sacos brancos. Explicou-me que não escrevem os nomes dos navios fora dos sacos para que estes possam ser facilmente transferidos entre navios. Esta prática permite que as empresas de pesca escondam as suas ligações a navios com historial criminoso.

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Daniel Aritonang no aeroporto de Kuala Lumpur, Malásia, na sua rota para embarcar no navio Zhen Fa 7

Na ponte de comando de outro navio, um capitão chinês abriu o seu diário de bordo, que é suposto documentar as suas capturas. As duas primeiras páginas tinham anotações; as restantes estavam em branco. "Ninguém guarda isso", disse ele. Os funcionários da empresa poderiam fazer uso dessas informações mais tarde. Kenneth Kennedy, antigo director do programa de combate ao trabalho forçado do Departamento de Imigração e Fiscalização Alfandegária dos EUA, disse que o Governo deveria suspender as importações de pesca da China até que as empresas norte-americanas pudessem demonstrar que suas cadeias de abastecimento estão livres de abusos. "Os EUA estão inundados de produtos de pesca criminosamente contaminados", afirmou.

É provável que nada mude enquanto os consumidores americanos estiverem a olhar para o lado. Para documentar as falhas de controlo no sistema de abastecimento de pescado, a equipa desta reportagem seguiu os navios por satélite e observou-os a transferir as suas capturas para navios-frigoríficos. Seguimos esses navios até aos seus portos e, com uma equipa de investigadores na China, filmámos as capturas a serem transferidas para camiões, que depois entregavam a carga em fábricas de transformação. Descobrimos, por exemplo, que o Zhen Fa 7 fazia o transbordo com uma empresa que empregou pelo menos 170 trabalhadores uigures ou de outras minorias deslocados de Xinjiang. Pelo menos seis fábricas que parecem ter processado as capturas do Zhen Fa exportaram grandes volumes de produtos da pesca para centenas de cadeias de restaurantes, mercearias e empresas de serviços alimentares americanas, incluindo a Costco, a Kroger, a H Mart, a Performance Food Group e a Safeway (nenhuma destas empresas respondeu às perguntas enviadas).

No dia 22 de Abril, o corpo de Daniel Aritonang foi transportado de avião de Montevideu para Jacarta e depois levado para a casa da família em Batu Lungun, num caixão de madeira com uma figura de Jesus Cristo em cima. A mãe de Aritonang chorou e desmaiou ao ver o caixão. O funeral não tardou e Aritonang foi enterrado a poucos metros do pai, num cemitério não muito longe da igreja que frequentava. A sua lápide é feita de duas ripas de madeira unidas em forma de cruz.

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Casa renovada da família de Daniel Aritonang, em Batu Lungun Sihkami Denting/The Outlaw Ocean Project

À noite, depois do funeral, um funcionário da agência de recrutamento de Aritonang visitou a família na sua casa para discutir o que os locais chamam “acordo de paz”. Anhar disse que a família acabou por aceitar um acordo de cerca de 200 milhões de rupias, ou seja, aproximadamente 13 mil dólares. Os membros da família mostraram-se relutantes em falar sobre os acontecimentos no navio. O irmão de Aritonang, Beben, disse que não queria que a sua família se metesse em sarilhos e que falar do caso poderia causar problemas à sua mãe. “Nós, a família de Daniel, fizemos as pazes com o pessoal do navio e deixámo-lo ir”, disse ele.

No ano passado, 13 meses após a morte de Aritonang, voltei a falar com a família por videoconferência. A mãe, Regina Sihombing, estava sentada num tapete com padrão de leopardo na sala de estar com o seu filho Leonardo. A sala não tinha mobília nem outro sítio para se sentar que não fosse o chão. Segundo o chefe da aldeia, a habitação tinha sido reparada com dinheiro do acordo; afinal, parece que Aritonang tinha conseguido arranjar a casa dos pais. Quando a conversa se voltou para Daniel, a mãe começou a chorar: “Podes ver como estou agora.” E Leonardo disse-lhe: “Não fiques triste. Era a hora dele.”


A escrita e a investigação para este texto receberam os contributos de Ian Urbina, Joe Galvin, Maya Martin, Susan Ryan, Daniel Murphy e Austin Brush


Este artigo foi produzido pelo The Outlaw Ocean Project, uma organização jornalística sem fins lucrativos com sede em Washington, que tem feito trabalhos relacionados com direitos humanos, questões laborais e problemas ambientais nos oceanos. Este colectivo de jornalistas foi fundado pelo antigo repórter do New York Times Ian Urbina. Para além do PÚBLICO, este trabalho foi publicado na revista norte-americana The New Yorker e nos jornais El País (Espanha), Le Monde (França) e Die Zeit (Alemanha)


Tradução: Sérgio B. Gomes


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