As grandes marcas de moda afirmam-se sustentáveis mas continuam a produzir além do que é sustentável. Baseiam-se em modelos de negócio que estimulam a procura e, quando esta diminui, continuam a colocar produto nas lojas. O consumo retrai-se e as sobras vão para vias alternativas, mantendo o modelo de negócio activo.
A sustentabilidade está presente nas campanhas ou etiquetas, na escolha das fibras, na alteração de alguns processos de produção e na adopção de modelos circulares para despachar o que não se vende, dando a ideia ao consumidor que pode continuar a comprar, porque depois pode vender em segunda mão, na mesma loja onde compra roupa nova. Estas marcas subsidiam investigação, fazem parte de alianças pela moda sustentável, participam em eventos, conferências e convenções. Pode a fast fashion ser sustentável?
Por uma agenda global da moda
Em Setembro, a indústria global da moda reuniu-se para tentar transformar as ideias em acções e concretizar a ambição de uma indústria, se não sustentável, pelo menos não (tão) insustentável. O Global Fashion Summit (GSF) existe desde 2009, organizado pela Global Fashion Agenda, uma organização sem fins lucrativos que promove a sustentabilidade na moda e na qual, naturalmente, participam os grandes da indústria. Pela primeira vez, além do evento principal, em Copenhaga, o GSF teve um segundo evento em Boston, alargando a discussão ao continente americano, juntando marcas, organizações não-governamentais, retalhistas, legisladores e inovadores, num encontro que procura mudar a indústria da moda.
Do programa do Global Fashion Summit destaca-se a um documento que reúne os esforços de desenvolvimento de políticas de protecção ambiental para a indústria têxtil. Destaca-se também o Fashion CEO Agenda 2023, um relatório para líderes que querem implementar uma estratégia de descarbonização, com cinco prioridades sociais e ambientais que vão garantir a prosperidade das pessoas e das empresas, dentro dos limites aceitáveis para continuarmos a viver neste Planeta. Nada sobre a produção.
Também foram apresentados estudos, projectos e muitas histórias mas, neste momento, chega de histórias, sobretudo das que nos fazem dormir. O tempo é de acção, pressionar as organizações responsáveis, agir junto das marcas que continuam a poluir e a produzir desmesuradamente, num contexto de profunda desigualdade que se consubstancia ao nível da produção e do consumo porque, mesmo no Norte Global, para designar os países mais ricos, há discrepâncias profundas ao nível do consumo. O capitalismo global atira uns para a falta de opções, com a escolha determinada pelo baixo preço, enquanto permite que outros comprem por prazer, ou desporto, sem considerar o preço ou o impacto social e ambiental das suas escolhas de consumo.
Durante o GFS não faltaram apresentações de estudos, relatórios e propostas de mudança. Contudo, quando circulamos pelas lojas, está tudo na mesma. A mesma quantidade de peças de roupa, acessórios, bugigangas e sapatos, como se a mudança não necessitasse de implementação imediata. Ninguém sabe, ao certo, quantas peças de roupa são produzidas em cada ano mas sabemos, pelas pilhas que se amontoam para descarte ou incineração que são mais do que as que conseguimos vestir. Também se falou de reciclagem e da utilização de materiais reciclados mas a conclusão é sempre a mesma: precisamos produzir menos.
De boas intenções…
Definimos metas, estabelecemos objectivos, esquecemo-nos de arranjar formas de cumprir aquilo a que nos comprometemos. Longe vai o protocolo de Quioto e sobre o acordo de Paris já passaram oito anos. O que mudou, entretanto? As nações continuam a congratular-se pelos acordos que conseguem ratificar e há, de facto, muitas alterações no caminho da sustentabilidade. Contudo, no essencial, continuamos muito distantes do objectivo de Paris: limitar o aquecimento global abaixo dos 2°C e tudo fazer para tentar que não ultrapasse os 1,5°C. A Antárctida está a derreter a um ritmo duas vezes mais rápido do que o previsto e temos menos de sete anos para cumprir os objectivos de desenvolvimento sustentável das Nações Unidas, os mesmos que têm orientado programas, projectos, formações e muitas acções, mas que ainda não atingiram a sua total concretização.
Entre os objectivos de desenvolvimento sustentável, a pobreza, a fome, saúde, água potável e saneamento, são aspectos tão básicos que, se não os alcançarmos, impossibilitam a concretização de outros, como a igualdade ou a educação. As Nações Unidas têm 17 objectivos ambiciosos. No mundo da moda traduzem-se na urgência em criar ambientes igualitários e seguros, com condições de trabalho e remuneração socialmente aceitáveis mas, também, em usar matérias-primas que não prejudiquem o meio ambiente e apostar na economia circular. Talvez produzir menos seja mais fácil, rápido e eficaz.
“Precisamos mudar”
Acredito na boa vontade de quem produz estes relatórios e desenvolve documentos como a Fashion CEO Agenda, para ajudar quem toma decisões a desenvolver medidas tangíveis para alcançar estes objectivos. No entanto, preocupa-me que, a sete anos da data definida pelas Nações Unidas, ainda estejamos a formar e informar as lideranças para a mudança. Aquela que está a acontecer perante os nossos olhos e para a qual as grandes organizações do mundo da moda contribuem negativamente, alimentando o paradigma excessivo de produção, distribuição e consumo. Sobretudo, um modelo que assenta em previsões de mercado, economias de escala e uma máquina de marketing que consegue influenciar de tal forma o consumidor que, quando as previsões não se concretizam, continuam a vender.
Como é que, num contexto de produção excessiva e lucros que, no caso da Inditex, este ano já ultrapassam os 37 mil milhões de euros, com um aumento de cinco mil milhões de euros em relação ao ano passado, ainda estamos na fase do “precisamos mudar”?
O grupo Inditex detém marcas como a famosa Zara, Bershka, Pull&Bear, Massimo Dutti, Stradivarius, Oysho, Zara Home e Uterqüe. Que atire a primeira pedra quem não tiver uma peça têxtil de uma destas marcas. Esta, também é uma questão. As marcas precisam produzir menos mas o consumidor também pode ser mais consciente e selectivo.
A Inditex serve todos os segmentos de mercado na área da moda e acessórios, roupa interior, decoração e interiores. Em 2022, de acordo com o relatório de resultados da marca, o lucro real, ou seja, depois de deduzidos os custos directos, cresceu 60,1%, o maior crescimento na última década. O que quer dizer que ou baixou substancialmente os custos, ou aumentou os preços, ou combinou a diminuição dos custos com o aumento do preço do produto final. Talvez, como afirmam, vença a criatividade. As colecções de Outono/Inverno foram muito bem recebidas pelo consumidor: as vendas em loja e online, entre 1 de Agosto e 11 de Setembro deste ano, aumentaram 14% em relação ao mesmo período do ano passado. Se as vendas cresceram, a responsabilidade também é nossa. Continuamos a comprar e compramos cada vez mais. Criatividade e serviço ao cliente, defende a marca. Será?
A Inditex também afirma investir na sustentabilidade. Se por sustentabilidade, entendermos sustentabilidade do seu negócio, não falham. Ao que dizem, usam tecnologia de ponta para transformar o seu processo de produção numa indústria circular, ao mesmo tempo que está comprometida a comprar 30% dos têxteis para a sua produção futura a uma empresa que produz fibras têxteis a partir de lixo têxtil.
Oremos irmãos, porque, numa outra página da marca, afinal em 2030, 100% dos seus produtos têxteis serão criados a partir de materiais de baixo impacto ambiental. Adoro mas não sei a que se referem. Quais materiais? Como são produzidos e como vão ser incluídos na sua cadeia de valor e sistema de produção?
Ainda estimam que 25% das roupas sejam produzidas com fibras que ainda nem existem e que a própria Inditex está a investir no seu desenvolvimento, enquanto 40% das fibras têxteis que vão usar resultam de processos convencionais de reciclagem, 25% virá de produção bio regenerativa. Os restantes 10% serão outras fibras, produzidas no quadro das exigências ambientais. Repararam que o verbo está sempre no futuro?
E, portanto?
Portanto, transparência, menos produção e alteração de comportamentos. O capitalismo é opaco por natureza e a opacidade é uma das principais características da indústria da moda. Dificilmente conseguimos avaliar a cadeia de valor e saber, com precisão, quais os agentes envolvidos, da mesma forma que também não se sabe muito bem como são as produções bio ou como são criadas a tais fibras inovadoras, sequer, como é a produção e o seu efectivo impacto ambiental.
As novas fibras terão mesmo menor impacto ambiental ou será uma forma de continuar a produzir cada vez mais, com a bandeira verde hasteada, deixando ao consumidor a ideia de que, por ser amigo do ambiente, pode comprar? Qual será o fim dessas peças de roupa? Não irá esta estratégia aumentar o descarte e criar a ideia de que a moda continua a ser descartável porque esse descarte alimenta processos de reciclagem e a produção de novas fibras quando, na verdade, há fibras que não são, pelas suas características, circulares?
A moda envolve vários agentes, sendo a indústria têxtil um dos principais. Sobre esta indústria, sabe-se pouco, atribuindo-se à indústria da moda a responsabilidade da poluição. Estaremos perante um conflito de interesses uma vez que, uma sem a outra, dificilmente sobrevivem?
Resta-nos tomar o problema nas nossas mãos e fazer o que podemos, percebendo que, aquilo que vestimos, tem impacto na nossa saúde (o tipo de fibra pode, em contacto com a pele, ser prejudicial à saúde), a nossa carteira (quanto mais compramos, mais gastamos), individualidade (porque nos dizem que precisamos de algo novo para aumentar a nossa auto-estima) e meio ambiente (o Planeta não aguenta muito mais).
Do Global Fashion Summit e da Fashion CEO Agenda posso concluir que continuamos a insistir no que precisamos fazer sem que o que precisa ser feito, de facto, se faça: as emissões de carbono necessitam de redução imediata, da mesma forma que precisamos de, imediatamente, remover os gases tóxicos da atmosfera com impacto real na saúde pública, sobretudo nas zonas mais vulneráveis do globo.
Os países que dependem da indústria têxtil e das marcas de moda para a sua sobrevivência económica estão ameaçados porque não estão preparados para a mudança imediata que é necessário implementar na cadeia e métodos de produção. Ou talvez empresas como a Inditex possam parar de fazer experiências, adoptando novas práticas de forma concreta. Quem sabe, ganhar menos uns milhões.
É inegável a relação directa entre excesso de produção e consumo excessivo. O modelo em que se baseia esta indústria mudou e não é preciso uma CEO Agenda para o provar. Pena é que sejam as pequenas empresas as primeiras a adoptar um modelo de produção e de negócio que privilegia a ética, o bem-estar, circularidade e preservação ambiental. A estas, falta apenas uma coisa: escala.