Políticas ou crimes ambientais?
Numa altura em que se discute em todo o mundo a necessidade de criar um sistema legal internacional de defesa do ambiente, a Culturgest recebe dia 4 de outubro um debate que se debruça sobre crimes ambientais. A conversa insere-se no âmbito das investigações da companhia Hotel Europa junto da comunidade de São Pedro da Cova que deram origem às peças A Mina e Tribunal Mina, em cena na Culturgest de 6 a 8 de outubro.
No caso em apreço, em que centenas de milhares de toneladas de resíduos perigosos foram depositadas ilegalmente em São Pedro da Cova, Gondomar, sendo que o Estado, primeiro permitiu a ilegalidade, depois não conseguiu responsabilizar os prevaricadores e, finalmente, ainda teve de recorrer a dinheiros públicos para resolver o problema, coloca-se a questão de perceber qual tem sido o papel desse Estado nos inúmeros crimes ambientais que se vão praticando no nosso país.
Os organismos oficiais respondem, argumentando que o problema é a falta de recursos para fiscalizarem. Isto é, em parte, verdade e resulta do desinvestimento que se tem verificado nesta componente da administração pública. Mas há outras razões mais profundas e graves que estão na origem destes crimes e que têm mais a ver com a incapacidade das autoridades ambientais em resistir à pressão de diversos interesses, do que com a falta de recursos para fiscalizar.
Com efeito, basta observar algumas situações que ocorrem na área dos resíduos para percebermos que quase nada acontece por acaso e que ocorrem situações incompreensíveis que, aparentemente, ocorrem por incompetência de quem nos governa, afinal resultam de uma grande competência, mas para fazer o que não devia ser feito.
Assim, é logo no processo legislativo que se criam as condições para a prática dos crimes ambientais, ou por ausência de legislação ou por legislação feita à medida dos prevaricadores.
Um exemplo flagrante dos impactes ambientais da ausência de legislação é o caso da proposta de lei ProSolos, relativa à prevenção e remediação da poluição do solo, a qual esteve em consulta pública em 2015, tendo recebido um apoio generalizado de vários setores, mas que passados oito anos ainda não saiu da gaveta, apesar de, por três vezes, a Assembleia da República ter recomendado ao Governo a sua publicação.
Ora esta legislação era muito importante para prevenir e resolver várias situações de poluição do solo, uma vez que obrigava os vendedores de terrenos onde funcionaram atividades de risco de poluição do solo, a analisar a qualidade do solo, ficando responsáveis pela remediação da contaminação existente.
Já no que se refere a legislação feita à medida dos poluidores, há vários e até caricatos exemplos. Entre estes, escolho o caso da legislação relativa à Taxa de Gestão de Resíduos (TGR), a qual prevê uma penalização para as entidades gestoras de fluxos específicos de resíduos, como os resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos (REEE), por incumprimento das metas das suas licenças.
O problema é que o valor estipulado na lei para a penalização através da TGR é muito inferior ao custo que essas entidades têm com a recolha e reciclagem dos resíduos, ou seja, é o mesmo que ser-se multado em 20 cêntimos por não pagar a portagem na Ponte 25 de Abril, quando a portagem são 2 euros. E assim, o crime compensa.
E de que crimes estamos a falar no caso dos REEE?
Estamos a falar de décadas em que não foram tratadas milhares de toneladas de lâmpadas com mercúrio, espalhando este contaminante pelo ambiente, ou de dezenas de milhares de toneladas de frigoríficos que não foram devidamente tratados, originando a libertação do gás refrigerador para a atmosfera, resultando na destruição da camada de ozono e no aumento da temperatura do planeta.
Por outro lado, a publicação de legislação para proteção do ambiente não é uma garantia de intervenção adequada dos responsáveis pela política de ambiente. Veja-se o caso da aplicação da legislação sobre colocação de amianto em aterros, em que durante 10 anos as autoridades ambientais permitiram colocar amianto junto de resíduos biodegradáveis em células de aterros de resíduos não perigosos, quando a legislação comunitária o proíbe, devido ao risco de libertação de fibras de amianto para a atmosfera, tendo esta situação só sido corrigida após várias denúncias públicas.
Semelhante caso é o do licenciamento do incinerador de resíduos urbanos da ilha de São Miguel, nos Açores, em que a Declaração de Impacte Ambiental do projeto condicionava o licenciamento desta unidade ao cumprimento das metas de reciclagem em 2020. No entanto, apesar do incumprimento dessas metas, o Governo Regional licenciou o projeto, através de um ato ilegal, comprometendo o futuro da reciclagem nos Açores.
Estas práticas potenciam a ocorrência de danos para o ambiente e a saúde pública e resultam ainda num péssimo desempenho do nosso país na área dos resíduos, sendo disso exemplo a baixa taxa de reciclagem dos resíduos urbanos (cerca de 21%), quando a meta comunitária para 2025 é de 55%, ou ainda a taxa de recolha e tratamento dos resíduos de equipamentos elétricos e eletrónicos que ronda os 20%, quando a meta comunitária é de 65%.
No entanto, para minimizar a situação perante a opinião pública, as autoridades ambientais portuguesas frequentemente manipulam os dados oficiais, bastando dizer, a título de exemplo que a taxa de reciclagem efetiva dos resíduos urbanos é 21%, mas os números oficiais apontam para o valor irreal de 32%.
Concluindo, há muito trabalho para fazer para impedir os crimes ambientais, mas, em primeiro lugar, o Governo tem de publicar as leis que faltam, como a legislação sobre solos contaminados, tem de fazer cumprir a legislação existente, não pactuando com as ilegalidades, como foi o caso do amianto nos aterros e tem de ser transparente, apresentando a realidade da gestão dos resíduos aos portugueses e não uma ficção que só tem dificultado a resolução dos problemas que temos pela frente, isto se queremos desenvolver a economia circular e ser um país sustentável em termos ambientais.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico