Apelo ao Conselho de Reitores
As universidades são essenciais para a ação climática, disse António Guterres: “As soluções existem. Agora, é tempo de transformar as relações da humanidade com o mundo natural e uns com os outros. E devemos fazê-lo juntos. Solidariedade é humanidade; solidariedade é sobrevivência.”
Os partidos políticos e os governos, reféns dos eleitores e dos poderes económicos e financeiros, evitam confrontar os cidadãos com o futuro que os espera e sensibilizá-los para comportamentos materialmente mais sóbrios. Preferem continuar a falar de aumentos do poder de compra em vez de os levar a imaginar novas formas de bem-estar. É o sistema educativo que tem o dever e a responsabilidade de o fazer. Por isso, o Conselho de Reitores das Universidades Alemãs exorta, na Declaração de Hamburgo, as universidades a garantir uma formação ecológica a todos os estudantes.
PRR e transição ecológica
Para a transição digital, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), na componente “Qualificações e Competências”, coloca 142 milhões de euros à disposição das instituições de ensino superior para financiar formação em ciências e tecnologias digitais. O Governo anunciou em julho o cheque Formação + Digital, cheque de 750 euros, para formar 25 mil trabalhadores em competências digitais. Esta iniciativa inscreve-se no programa Emprego + Digital, cuja verba é de 94 milhões.
Para a transição ecológica, o PRR não prevê qualquer formação. Em resposta à criação de uma formação em competências ecológicas para os alunos do ensino superior, um alto dirigente do Ministério da Ciência e do Ensino Superior disse: “Não nos podemos imiscuir na autonomia das universidades.”
Portanto, dar dinheiro para incentivar a formação em competências digitais não é imiscuir-se. Pode-se pagar para que instituições e pessoas decidam melhorar as competências digitais; isso não fere a autonomia de ninguém. Dar dinheiro e incentivar formação sobre questões ecológicas, isso sim, seria intrusivo.
A verdade é que se pensa que as competências digitais promovem o crescimento e a competitividade económica. Têm um valor instrumental. As competências ecológicas, elas, só permitem preservar a possibilidade de vida no planeta, questão considerada como predominantemente ética e, portanto, ideológica. O Governo escolheu.
Que não haja equívocos: achamos crucial melhorar as competências digitais dos cidadãos e das empresas portuguesas. Mas as transições, digital e ecológica, requerem processos de mudança complexos, em termos técnicos e também culturais. Por isso precisam ambas de ser incentivadas, incluindo nas suas sinergias.
Ter a coragem dos valores
A concentração no digital alimenta várias ilusões. A ilusão de que os problemas ecológicos podem ser resolvidos com tecnologia — o tecnossolucionismo. Ora, o impacto ecológico da digitalização é o que mais cresce (em termos energéticos e minerais) e, dado que aumenta a produtividade só de alguns trabalhadores, a digitalização acentua as desigualdades sociais. A ilusão de que a transição ecológica não requer sobriedade e justiça social. Sabe-se que os mais ricos, mas também as classes médias, têm de mudar de padrão de vida e pagar, diretamente ou através de impostos, os custos decorrentes dos fogos, cheias e secas. Foram eles, aliás, que mais contribuíram para os problemas climáticos. Espera-se que os comportamentos de sobriedade e solidariedade surjam magicamente?
Deixar pensar que um crescimento económico perpétuo é possível num planeta com recursos finitos é fraudulento; promover hoje só o sucesso económico e o enriquecimento individual é altamente ideológico. A liberdade individual, quando indiscriminadamente estimulada, dissolve o sentido do interesse coletivo. As universidades têm um papel essencial para abrir horizontes e delinear modelos de sociedade alternativos, justos e sustentáveis. Por isso deveriam assumir que têm de transmitir valores éticos, relativos à nossa relação com a natureza e com os outros, como sublinhou Guterres, e não só competências instrumentais.
A Declaração de Hamburgo pede aos líderes universitários para iniciar “uma mudança cultural nas suas instituições, revendo as suas decisões estratégicas em matéria de educação, investigação e divulgação, na perspetiva da sustentabilidade e da ação climática”.
Apelamos ao CRUP que se associe à Declaração de Hamburgo e promova junto da tutela a criação de um grupo de trabalho que reflita sobre como integrar a transição ecológica na formação dos estudantes do ensino superior, formação feita de conhecimentos científicos e preocupações sociais.
As autoras escrevem segundo o novo acordo ortográfico