Não, os ecossistemas não recuperam todos após o fogo
Existe uma ideia corrente nos meios técnicos ligados à gestão do fogo: a de que, após um incêndio, e passado tempo suficiente, os ecossistemas acabam por recuperar. Sendo as plantas os organismos largamente dominantes na biosfera, a sua recuperação espontânea é determinante para a reposição gradual da estrutura, composição e funções dos ecossistemas. Deste modo, a sobrevivência ao fogo de sementes e estruturas subterrâneas, como toiças e rizomas, garantiria o restabelecimento dos ecossistemas destruídos pelos incêndios. Este processo espontâneo de restauro, a sucessão ecológica, é universal e central em ecologia.
É verdade que uma parte significativa dos habitats naturais em Portugal são compostos de vegetação mediterrânica, isto é, comunidades de plantas nativas, que evoluíram com adaptações à aridez prolongada no Verão e também, muitas delas, com adaptações ao fogo. São exemplos destas adaptações a capacidade de rebentar de toiça ou de raiz, ter sementes resistentes ao fogo ou até ter uma "casca" espessa com cortiça, que é o caso do sobreiro.
Algumas espécies, mais do que tolerantes, são promovidas pelo fogo e ganham vantagens competitivas na sucessão ecológica pós-fogo. Vem daqui a ideia generalizada de que, nos ecossistemas mediterrânicos, o fogo é um fator natural, e até por vezes necessário e que sempre os acompanhou. Assim, o feito destrutivo seria temporário e a recuperação uma questão de tempo. Esta generalização é simplista e abusiva e assumi-la tem implicações na forma como encaramos o efeito dos incêndios na conservação da natureza em Portugal.
É verdade que em muitos ecossistemas a gestão pelo "fogo controlado" é uma solução viável e desejável, seja na diminuição da biomassa combustível ou na promoção de etapas da sucessão ecológica mais interessantes para a conservação. São exemplos deste caso habitats de matos baixos ou pastagens contendo flora valiosa que não ocorre nos bosques que tendem a dominar as sucessões na ausência de fogo.
Existe, pois, perigo na generalização de que o fogo é irrelevante ou salvífico para todos os ecossistemas, incluindo todos com valor de conservação em Portugal. Isto não é verdade, nem para aqueles que convivem com regimes regulares de fogo. Disto são exemplo os urzais-tojais, um tipo de habitat Natura 2000 com grande extensão em Portugal e sujeito a incêndios regulares ao longo de milénios.
Em contraste, existem tipos de habitats que são relíquias de tempos geológicos anteriores ao predomínio da vegetação mediterrânica adaptada ao fogo. Muitos destes habitats têm ainda espécies que surgiram no Terciário, em condições subtropicais e, julga-se, muito menos sujeitas a regime de fogo natural. Estes habitats, também eles reconhecidos na tipologia Natura 2000: o habitat 9240 ( "carvalhais ibéricos de Quercus faginea e Quercus canariensis) tem algumas plantas remanescentes das florestas subtropicais antigas sem adaptações ao fogo. São os bosques de carvalhos de folha semipersistente com azevinhos, loureiros, folhados, adernos e acompanhados de flora herbácea florestal endémica do Sudoeste de Portugal continental.
Os carvalhais do Sudoeste ibérico são distintos dos restantes carvalhais portugueses e, ao contrário dos congéneres dominados por plantas mediterrânicas, estão bastante mais indefesos ao fogo. Provavelmente, a sua destruição é irreversível ou muito dificilmente recuperável. Mesmo em caso de recuperação parcial desta vegetação, em regimes de incêndios regulares, a sucessão ecológica acaba por ser sobrepujada pelas plantas mediterrânicas ou por exóticas invasoras agressivas como as acácias australianas.
Este é o caso dos bosques de carvalho-de-monchique, carvalho-cerquinho ou de carrasco-arbóreo (e sobreiro) que agora ardem no incêndio que começou em São Teotónio, Odemira, e se estendeu para Aljezur e encostas das serras do Sudoeste algarvio. Com este incêndio veremos reduzir drasticamente área destes carvalhais portugueses de caraterísticas únicas, que até podem vir a desaparecer do mapa da rede Natura 2000 portuguesa. E talvez para sempre, não lhe venham acácias tomar o lugar.
Na prioridade das preocupações durante incêndios, surgem naturalmente primeiro a segurança com pessoas, habitações, bens, infraestruturas e usos do solo com valias económicas diretas. Mas é da mesma grandeza de importância que o planeamento da prevenção e combate a incêndios em Portugal contemple também, nas suas prioridades primárias, a prevenção de perda irreversível de ecossistemas que não resistem ao fogo. Esta prioridade funda-se em razões civilizacionais, e na atualidade não carece de mais justificação.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico