Na última vez que Amara Strande testemunhou perante deputados do estado Minnesota, nos Estados Unidos, tinha a voz trémula, um efeito colateral de um tumor que pressionava a garganta e do cancro que se espalhou a partir dos pulmões.
Aquela foi a quinta vez que Amara Strande falou com deputados estaduais em defesa de uma moldura legal capaz de proibir uma família de substâncias perfluoroalquiladas (PFAS, na sigla em inglês). Amara Strande culpa estes compostos químicos persistentes por uma rara forma de cancro de fígado que desenvolveu.
Amara Strande usava um casaco castanho que cobria inúmeras cicatrizes, marcas que ficaram das 20 cirurgias a que foi submetida após o primeiro diagnóstico de cancro. Tinha apenas 15 anos.
Dois meses antes, quando Amara se dirigiu pela primeira vez aos parlamentares, não foi preciso fazer tanto esforço para falar como nesse dia de Março.
“Passei os últimos cinco anos a lutar contra o cancro com cada grama do meu ser. E vou lutar pelo resto da minha vida”, disse Amara Strande, durante a intervenção. “Sem qualquer culpa da minha parte, fui exposta a esses produtos químicos tóxicos. E, como resultado, vou morrer com cancro.”
Amara Strande morreu no dia 14 de Abril, aos 20 anos. Morreu apenas algumas semanas antes de os deputados estaduais aprovarem a legislação agora conhecida como “Lei de Amara”, que proíbe o uso das PFAS no Minnesota.
O legado “tóxico” da empresa 3M
A morte de Strande repercutiu nos subúrbios de Twin Cities, onde fica a sede da 3M, empresa que se tornou um dos principais fabricantes de produtos contendo PFAS. A 3M afirma que está a trabalhar no sentido de recompensar cidades como Oakdale, onde Amara Strande completou o ensino secundário. Ao mesmo tempo, a empresa está a enfrentar inúmeros processos judiciais.
Nos últimos meses, a família e os amigos de Amara celebraram a sua vida e lamentaram a sua perda. Cerca de 700 pessoas estiveram presentes no funeral e outras 250 acompanharam a cerimónia online, segundo o pai, Michael Strande.
“Nada substitui Amara. Nem mesmo a ‘Lei de Amara’”, disse a mãe, Dana Strande, numa entrevista. “Ela tinha muito para dar ao mundo.”
Ao homenagear Amara, amigos e familiares sentem-se compelidos a continuar a cruzada. As PFAS têm sido associadas à infertilidade, problemas de tiróide e diferentes tipos de cancro.
Usados há muitos anos em revestimentos antiaderentes, equipamentos retardadores de chamas e roupas repelentes de água, os “produtos químicos eternos” já impregnaram o sistema de abastecimento de água potável e de alimentos dos Estados Unidos. Embora as formas mais perigosas de PFAS já tenham sido eliminadas, os ambientalistas norte-americanos mobilizam-se agora para banir os demais compostos desta família de substâncias em todo território nacional.
Jeff Munter, um amigo que testemunhou ao lado de Amara no parlamento do Minnesota, disse que teria sido “desrespeitoso” abandonar a luta após a morte da amiga. Se a proibição do PFAS de Minnesota for aceite pelo Congresso, ele está pronto para testemunhar.
“Vou estar lá a falar sobre minha experiência com amigo da Amara”, disse Jeff Munter.
Embora os defensores da “Lei de Amara” vejam no diploma um progresso, também reconhecem que esta moldura legal não resolve o problema imediato no Condado de Washington, um conjunto de subúrbios a leste de Saint Paul, incluindo Oakdale.
Há algumas décadas, a 3M – então conhecida como Minnesota Mining and Manufacturing – começou a despejar resíduos de PFAS em poços perto de Oakdale e outras localidades do condado de Washington, segundo a Agência de Controlo de Poluição de Minnesota.
Desde então, este despejo de resíduos resultou numa nuvem subterrânea de quase 518 quilómetros quadrados de águas subterrâneas contaminadas. Em 2004, esta pluma de resíduos já havia contaminado o abastecimento de água potável para mais de 140 000 residentes, refere a agência estadual.
As PFAS são conhecidas como “produtos químicos eternos” devido à extrema durabilidade: não se decompõem no ambiente nem se degradam. Esta persistência é uma realidade para a Escola Secundária de Tartan, onde, enquanto se aguarda a remediação do ecossistema, uma gigantesca pluma de PFAS continua a contaminar as águas subterrâneas.
A escola dos “alunos com cancro”
A escola secundária de Tartan, fundada em 1971, acolhe cerca de 1600 alunos. É um estabelecimento de ensino como tantos outros, com bailes de formatura e equipas desportivas, incluindo orgulhoso historial de vitórias no basquete. A escola também é conhecida pelo número de diagnósticos de cancro.
Janice Churchill, que trabalhou como professora de matemática na escola por 21 anos, disse que, entre 2005 e 2015, cinco alunos da escola morreram de diferentes tipos de cancro e outros foram diagnosticados com a doença.
Ninguém esperaria estes números “se as coisas estivessem normais”, disse Churchill, que suspeita que a exposição às PFAS tenha contribuído para os casos de cancro.
Quando era estudante, Amara Strande praticava desporto e adorava cantar e tocar música. Manteve algumas dessas actividades mesmo depois de ser diagnosticada com cancro. Rapidamente, começou a fazer parte de um novo círculo social na escola.
O grupo ficou conhecido, informalmente, como “os alunos com cancro”.
Amara cresceu numa casa confortável de classe média, com os pais e a irmã, Nora. A mãe, pastora evangélica, e o pai, um director de liturgia católica, decidiram mudar a família para Maplewood, a 1,5 quilómetros da sede da 3M, quando Amara tinha três anos. A menina sonhava ser uma estrela pop, contam os pais.
A 3M fazia parte do quotidiano da família. A empresa – que teve um lucro líquido de 5,7 mil milhões de dólares em 2022, o equivalente a cerca de cinco mil milhões de euros – continua a ser o motor da economia local. Os Strande estavam rodeados por vizinhos que trabalhavam na 3M.
Em meados dos anos 2000, a relação da cidade com a 3M começou a mudar. Testes do Departamento de Saúde de Minnesota revelaram que as práticas de tratamento de resíduos da empresa poluíram o aquífero local e pelo menos quatro poços de água que servem a população de Oakdale.
Embora a agência estadual tenha sido posteriormente acusada de atrasar a análise de águas subterrâneas, testes subsequentes revelaram que as PFAS já haviam contaminado a água corrente utilizada por diferentes comunidades, de acordo com o Departamento de Saúde de Minnesota.
Em seguida, a 3M concordou em pagar à localidade de Oakdale dez milhões de dólares (cerca de nove milhões de euros), montante destinado à instalação de novos sistemas de tratamento de água para filtrar as PFAS. A empresa também apoiou financeiramente pelo menos mais uma comunidade na renovação da rede de água.
Como outros jovens da escola secundária de Tartan, Amara brincava acerca do facto de beber “água cancerígena da 3M”, conta a mãe.
Em 2017, Amara começou a sentir fortes dores abdominais, dores nos ombros e hemorragias nasais frequentes. Um exame de rotina na escola acabou por abrir caminho para várias cirurgias oncológicas. Um tumor com quase sete quilos foi removido do fígado da jovem.
Amara foi diagnosticada com hepatocarcinoma fibrolamelar, já em estágio quatro – um cancro tão raro que afecta apenas uma em cinco milhões de pessoas entre 15 e 39 anos nos Estados Unidos, segundo o Instituto Nacional do Cancro.
O cancro obrigou Amara a trilhar um caminho de agonia e repetidas cirurgias – 20 ao todo – para remover tumores. Com os procedimentos cirúrgicos vieram os tratamentos de radiação e quimioterapia e, no final, algumas terapias experimentais.
“A vida não está apaixonada por mim”
Ao longo do tratamento, Amara continuou a frequentar o ensino médio e a tocar música. Entrou para o Coro de Câmara de Minnesota, omitindo propositadamente o diagnóstico durante as audições, refere a mãe. O objectivo, lembra, era que não fosse seleccionada apenas por pena.
Na Primavera de 2022, Amara, então com 19 anos, começou a gravar algumas canções da sua autoria, incluindo uma intitulada I Am the Strange (eu sou uma estranha, em português).
A letra inclui, numa tradução livre, a seguinte estrofe:
Eu posso gritar o mais alto que puder
Mas ninguém me parece ouvir
Contorcida, a arder e apodrecer
Choro por dentro, mas os meus olhos estão secos.
A música ajudou Amara a lidar com a doença. “Estou apaixonada pela vida, mas a vida não está apaixonada por mim e não consigo superar isso”, escreveu no diário. “Vou morrer.”
Cinco anos após o diagnóstico, os médicos disseram-lhe que não havia mais nada a fazer. Nessa altura, os tumores do lado direito do corpo já a haviam obrigado a reaprender a escrever e pintar com a mão esquerda. Amara acabou por perder a habilidade de tocar piano e guitarra.
Por insistência de Avonna Starck, directora do grupo Clean Water Action de Minnesota, Amara começou a testemunhar a favor da legislação estadual para proibir as PFAS, muitas vezes escondendo a cadeira de rodas antes de intervir. As suas aparições ganharam cada vez mais atenção e os amigos aderiram à causa na esperança de mudar a lei de Minnesota.
Amara Strande morreu dois dias antes de completar 21 anos. Isso motivou ainda mais os seus amigos e aliados.
Tanto dentro como fora do Capitólio de Minnesota, Munter e outras pessoas próximas de Amara seguravam cartazes a dizer: “Salvem vidas, proíbam as PFAS” e “A minha vida é mais importante do que uma panela antiaderente”. E entoaram palavras de luta como “ha, ha as PFAS têm de bazar”.
O projecto de lei, que foi recebido com resistência em sessões anteriores, foi aprovado com apoio bipartidário duas semanas após a morte de Amara Strande. O diploma proíbe todos os usos de PFAS em produtos até 2032 – excepto aqueles necessários para a saúde pública – e exige que os fabricantes informem às autoridades o uso destas substâncias em produtos até 2026. Também proíbe aplicações específicas em vários produtos a partir de 2025.
O deputado estadual Jeff Brand, principal autor da legislação, disse que ficou indignado ao saber que esses “produtos químicos eternos” se tornaram quase omnipresentes na corrente sanguínea das pessoas.
“Não tivemos escolha sobre esta matéria”, disse numa entrevista. “Não tivemos a opção de dizer que não queríamos PFAS nos nossos corpos.”
Andrea Lovoll, directora legislativa do Centro para a Defesa Ambiental no Minnesota, disse que Amara foi fundamental para a aprovação da legislação. “O facto é que ela dedicou o fim da vida à luta para que ninguém mais sofresse com as PFAS”, disse Lovoll, que há três anos trabalha no sentido de banir as PFAS no Minnesota.
Como tantas pessoas que conheceram e adoravam Amara, Dana Strande admite que não pode provar que as PFAS contribuíram para o cancro da filha.
Embora numerosos estudos associem os produtos químicos “eternos” a cancros, recorrendo a animais de laboratório, a Agência de Protecção Ambiental diz que “a investigação científica ainda está a tentar determinar como distintos níveis de exposição a diferentes PFAS podem levar a uma variedade de consequências para a saúde humana”.
Descarte de “sucata química húmida”
O que se sabe é que a 3M apoiava-se numa legislação ambiental permissiva dos anos 1950 e 60 para despejar PFAS em locais como terrenos da própria empresa, por exemplo, e pelo menos num aterro sanitário público. Estudos subsequentes indicaram que as comunidades circundantes enfrentam hoje um risco elevado de cancro.
A 3M afirmou que o descarte de resíduos nesses locais “era uma prática comum e aceite na época” e que era provável que “alguns desses resíduos” contivessem produtos químicos persistentes conhecidos como PFAS, de acordo com evidências apresentadas num processo do estado do Minnesota contra a empresa.
Embora a DuPont tenha sido a empresa que patenteou o Teflon revestido com PFAS, foi a 3M que se tornou a principal fabricante. Acabou por aplicar as PFAS em vários produtos, desde dispositivos médicos até espuma de combate a incêndios.
De acordo com uma investigação dos reguladores de Minnesota, a 3M descartava em 1966 quase 23 milhões de litros de “sucata química húmida” por ano em poços não revestidos. A empresa estava ciente da potencial contaminação da água, conforme documentos apresentados como prova processual.
Os reguladores acabaram por detectar PFAS em 100 dos 102 aterros sanitários fechados em todo o estado, de acordo com a Agência de Controlo de Poluição de Minnesota. No subsolo do aterro sanitário do condado de Washington, onde vive a família Strande, os níveis de PFAS nas águas subterrâneas eram mais de dez vezes maiores do que o limite de segurança.
3M “nunca acreditou”
Um estudo conduzido em 2017 por David Sunding, especialista em responsabilidade industrial e professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley, revelou que cada criança que morreu no condado de Washington, no período entre 2003 e 2015, apresentava 171% maior probabilidade de ter sido vítima de cancro do que um habitante da mesma faixa etária falecido em condados contíguos. Cada óbito ocorrido em Oakdale entre 2003 e 2015 tinha 19% mais probabilidade de estar associado ao cancro do que registos de diferentes áreas de residência, segundo o estudo.
David Sunding depôs no processo do estado de Minnesota contra a 3M na qualidade de especialista. O investigador concluiu, por exemplo, que os habitantes do condado de Washington foram diagnosticados com mais casos de leucemia, linfoma não-Hodgkin, cancro de rim, próstata e bexiga do que os residentes de outros condados de Minnesota.
Outros estudos são menos conclusivos. Um artigo de 2018 do Departamento de Saúde de Minnesota encontrou “um pequeno excesso de mortalidade por cancros e cancro de mama feminino” em Oakdale, mas não identificou um aumento generalizado dos casos de cancro nas oito comunidades poluídas por PFAS.
O documento do Departamento de Saúde de Minnesota precedeu a decisão de Minnesota de encerrar, em 2018, o processo contra a empresa 3M mediante um acordo indemnizatório do valor de 850 milhões de dólares (o equivalente a cerca de 758 milhões de euros).
Numa declaração na época, um responsável da 3M afirmou que a empresa “nunca acreditou” que havia um problema de saúde associados aos produtos químicos, mas decidiu “ultrapassar o litígio e colaborar com o estado em actividades e projectos para beneficiar o ambiente e as comunidades”.
Contactado pelo The Washington Post, o porta-voz da 3M, Sean Lynch, recusou-se a disponibilizar um representante para uma entrevista ou responder a perguntas sobre como a empresa actualmente vê a toxicidade das PFAS.
“Temos de cumprir os nossos compromissos – incluindo a remediação das PFAS, o investimento no tratamento da água e a colaboração com as comunidades”, disse a empresa em comunicado enviado por e-mail, reiterando um anúncio anterior de que encerrará a produção de substâncias químicas “e trabalhará para descontinuar o uso das PFAS nos produtos até o final de 2025”.
Em Minnesota, alguns ex-alunos da escola secundária de Tartan continuam a culpar a empresa por casos de cancro.
Derek Lowen era um caloiro de 14 anos em Tartan em 2004, quando começou a sentir enxaquecas que o levavam a vomitar ou desmaiar. O rapaz tinha um tumor cerebral do tamanho de uma bola de beisebol a pressionar crânio, referiu numa entrevista.
Após a cirurgia, Lowen teve de fazer fisioterapia por dois anos, para reaprender a andar e recuperar outras habilidades motoras, disse na mesma ocasião. Derek Lowen entrou em remissão em 2011, mas agora afirma sofrer com perda de memória. E culpa as PFAS pela doença.
Derek Lowen continua zangado, amargurado por ter gasto os anos de ensino secundário em tratamentos médicos, um período em que “os outros jovens, saudáveis, estavam a socializar e a fazer descobertas”.
Prevenir é melhor que remediar
Na área metropolitana de Twin Cities – onde fica a cidade de Oakdale –, os custos de reparação de danos continuam a aumentar. Remover e destruir as PFAS das águas e das lamas das estações de tratamento de águas residuais de Minnesota pode custar entre 14 e 28 mil milhões de dólares (12 a 25 mil milhões de euros) e levar cerca de 20 anos, de acordo com um novo relatório.
O estudo também inclui o custo de limpeza da infra-estrutura municipal, como estações de tratamento de água, para evitar que o produto químico seja despejado pelos canos da cidade, de acordo com Rebecca Higgins, hidrogeóloga sénior da Agência de Controlo da Poluição de Minnesota.
“A prevenção é sempre o caminho mais fácil. Uma vez no ambiente, é extremamente caro e difícil remover [as PFAS]”, disse Rebecca Higgins.
A 3M continua a arcar com estas despesas. Milhares de processos judiciais foram movidos contra a empresa, alegando que a companhia reconheceu que as PFAS podem causar cancro, baixa fertilidade, malformações congénitas e outros problemas de saúde.
Em Junho de 2023, um estudo nacional estimou que as PFAS contaminam hoje quase metade de toda a água canalizada do país. Num acordo interestadual, à parte daquele que foi feito com Minnesota, a 3M concordou em pagar 10,3 mil milhões de dólares ao longo de 13 anos para compensar fornecedores públicos de águas nas quais foram detectadas PFAS. Como fez em 2018, em Minnesota, a empresa afirmou que o acordo de “não é uma admissão de responsabilidade”.
O quarto da filha
Nos meses que se seguiram à morte de Amara, Michael Strande continuou a entrar na sala de estar da família com a expectativa de encontrar a filha, a trabalhar em pinturas juntamente com a irmã. Ou talvez a abraçar um dos gatos da casa ou a compor músicas originais no estúdio caseiro.
Dana Strande disse que ainda é muito doloroso passar pelo quarto da filha. “É tão difícil lidar com a falta que sinto dela”, desabafa Dana Strande. “Sinto que se começar a chorar nunca mais vou parar.”
A família preocupa-se ainda com a persistência e os riscos das PFAS, incluindo a segurança da água filtrada da torneira. A irmã de Amara, Nora Strande, teme parte dos produtos que encontra nas prateleiras das lojas. “Não consigo eliminá-las. Não consigo manter-me segura”, confessa.
A família empenha-se em não aumentar essa contaminação - tanto que, ao enterrar Amara, optaram pela cremação, depositando as cinzas num cofre sem tinta ou materiais plásticos.
“Não queríamos manter os restos mortais de Amara em contacto com produtos químicos”, explicou a mãe.
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post