Redução de emissões na pandemia teve impacto?
A pandemia da covid-19 já acabou e ficámos a saber que, no primeiro ano, devido às medidas de confinamento e consequente redução da actividade económica, as emissões globais de dióxido de carbono tiveram uma redução na ordem dos 7% em 2020, face a 2019. Voltando novamente a subir nos anos seguintes devido à recuperação económica. E não fosse a guerra na Ucrânia, teriam subido ainda mais.
Os ciclos de vegetação, a variabilidade da circulação atmosférica e dos ciclos de pluviosidade, a variabilidade da interacção mar-atmosfera, bem como os mecanismos de oscilação conhecidos, como o El Niño, interferem no ciclo curto de carbono (ou ciclo biológico).
A análise da variabilidade interanual de dióxido de carbono na atmosfera mostra, com clara evidência, que o aumento de concentração de dióxido de carbono, devido às emissões antropogénicas de origem fóssil iniciadas com a revolução industrial, está em aceleração (ritmo de subida a aumentar), pese embora a existência de curtos períodos de desaceleração.
Questionou-se na altura da pandemia se a redução histórica e significativa de emissão de gases de efeito estufa, e em particular de dióxido de carbono, iria ter algum impacto na sua concentração na atmosfera, e consequentemente, nas alterações climáticas. Já que se tratou de uma redução da ordem das reduções necessárias para se alcançar os objectivos de mitigação climática que se estabeleceram em 2015 na COP21.
Alguns especialistas internacionais já tinham referido que:
- Dada a grande quantidade de dióxido de carbono na atmosfera, na ordem de 413 partes por milhão (ppm, unidade de concentração) em 2019, correspondendo a mais de 900 mil milhões de toneladas (Gton, gigatoneladas) face à quantidade existente no início da revolução industrial;
- Dada a diminuta quantidade efectiva que essa redução representou, em termos do dióxido de carbono retido na atmosfera (ordem de 1.3Gton, cerca de 50% da redução dos 7% anuais);
- Dado o período que o dióxido de carbono emitido leva a distribuir-se pela atmosfera e a elevar-se às camadas mais altas (dois a cinco anos), qualquer alteração nas medições de dióxido de carbono na atmosfera, daí resultante, seria imperceptível.
Pois, 1.3Gton distribuídos por cinco anos correspondem a cerca de 0.3ppm/ano, o que comparado com os 2.5 ppm de aumento anual médio, é de facto um valor muito pequeno. Além disso, trata-se de um valor inferior à própria variabilidade interanual da concentração de dióxido de carbono na atmosfera, que é em termos médios da ordem 1 a 1.5ppm/ano, mas pode chegar aos 2ppm/ano.
Houve instituições internacionais que, na altura, lançaram missões aéreas de medição regional (nomeadamente, o Global Monitoring Laboratory da NOAA) exactamente com o intuito de verificar se essa redução de emissões em 2020 seria observada através de uma desaceleração do aumento da concentração de dióxido de carbono na atmosfera. Mas os resultados foram inconclusivos, tal como era esperado, por serem muito inferiores à variabilidade interanual.
Passados três anos desde o início da pandemia, podemos olhar para a série de dados (figura 1) e analisar a possível presença ou ausência de impacto. Em particular, olhando para a série de variação anual de aumento de concentração de dióxido de carbono na atmosfera (figura 2, variação homóloga anual). De facto, em 2020, o ritmo de aumento de dióxido de carbono estava já a desacelerar e continuou até ao início de 2023. Uma desaceleração que se verifica aproximadamente a cada dois anos, dentro da variabilidade interanual já conhecida.
Só que esta redução do ritmo de aumento, de 3ppm/ano (em 2019) para 2ppm/ano (em 2023), poderia levar à conclusão (errada) de que se tratava de um efeito directo devido às reduções de emissões de dióxido de carbono em 2020. Mas olhando para a série de registos mensais iniciada em 1960 na estação de Mauna Loa, no Havai, conseguimos perceber que existem períodos de aceleração e outros de desaceleração da concentração de dióxido de carbono na atmosfera, com variabilidade de segunda ordem (a variação é, ela própria, variável).
Dessa análise, saltam à vista duas evidências, uma é que em anos de El Niño forte observa-se uma aceleração da concentração de dióxido de carbono na atmosfera. Algo que é compreensível por quem percebe o mecanismo de interacção entre o mar e a atmosfera associado ao fenómeno. A outra é que há períodos de desaceleração que são mais prolongados no tempo do que outros. Vê-se isso neste período 2020-23, vê-se também em 2008-10, em 1992-95 e em 1962-65.
Isto poderia levar a pensar que a crise económica de 2008 e a crise da pandemia poderiam estar por detrás dessa desaceleração. Mas o facto é que em todos esses períodos esteve sempre por detrás um período de La Niña mais prolongado, ou um El Niño de reduzida intensidade (caso de 2008-10).
Uma das razões por que se pensa que o El Niño de 2023-24 venha a tornar-se muito forte é exactamente o facto de o último La Niña ter sido muito prolongado, correspondendo a três ciclos consecutivos de fase negativa (de La Niña). A ocorrer um El Niño mais forte que o habitual, isso significará uma maior aceleração da concentração do dióxido de carbono na atmosfera.
A partir do momento em que recentemente terminou a fase de La Niña, que durou entre 2019 e 2023, e começou a definir-se a fase do El Niño, também se verificou a inversão da desaceleração da concentração de dióxido de carbono na atmosfera.
Muito embora as sucessivas ondas de calor marinho verificadas no Atlântico possam estar também por trás desta inversão da variabilidade da concentração de dióxido de carbono na atmosfera, é habitualmente o El Niño que acelera, em termos interanuais, a concentração de dióxido de carbono na atmosfera. Pelo que, este período prolongado de desaceleração da concentração de dióxido de carbono na atmosfera está maioritariamente associado ao prolongado período da fase negativa do ENSO (El Niño – Oscilação Sul), ou seja, da La Niña, e não ao impacto das reduções de emissões na pandemia da covid-19.
Face a isto, tudo leva a crer que estamos a entrar numa fase de aceleração de concentração de dióxido de carbono na atmosfera, com o ressurgimento do El Niño, podendo atingir-se as 3ppm/ano já em 2024. No entanto, é de realçar que a tendência da variação do aumento de dióxido de carbono na atmosfera é de crescimento, ou seja, em termos médios e de longo prazo a concentração de dióxido de carbono na atmosfera está a acelerar (ritmo a aumentar).
A variação anual de dióxido de carbono na atmosfera era de menos de 1ppm/ano nos anos 60, passou para 1.8ppm/ano no início do século e é agora de 2.5ppm/ano. Ou seja, o dióxido de carbono na atmosfera está a aumentar actualmente a uma taxa média de 25ppm/década.
Para se ter uma comparação desta ordem de grandeza, ela foi, em termos médios, de 0.9ppm/século nas fases interglaciárias dos últimos 850 mil anos, correspondendo aos ciclos naturais de longo período. É o mesmo que dizer que, actualmente, o dióxido de carbono está a aumentar na atmosfera a um ritmo de cerca de 260 vezes mais do que nos ciclos naturais.
Em 2015, ano da COP21 e do Acordo de Paris, a concentração de dióxido de carbono tinha acabado de quebrar a barreira das 400ppm. Neste passado mês de Junho acabámos de atingir a média das 420ppm, pelo que em 2025 atingir-se-ão as 425ppm.
Dada a elevada inércia do sistema e o nível de aceleração da concentração de dióxido de carbono na atmosfera, caminhamos para as 450ppm na próxima década e para as 500ppm na década de 2050 (figura 3). Ora, 420ppm corresponde a um aumento de 50% de dióxido de carbono na atmosfera face às 280ppm verificadas no período pré-industrial, o que significa que, para uma sensibilidade climática de 3 graus Celsius por cada duplicação de dióxido de carbono, atingimos já o limiar de dióxido de carbono na atmosfera que nos leva ao aquecimento da superfície da Terra de 1.5 graus Celsius face ao período pré-industrial. Já as 500ppm, ao serem ultrapassadas, conduzir-nos-ão a um aquecimento global de 2 graus Celsius.
Dada a grande concentração actual de dióxido de carbono na atmosfera, uma variação nas emissões para que seja mensurável terá de ser significativamente grande ao ponto de ser observada nas medições. É por essa razão que no acordo de Paris, da COP21, se estabeleceu o objectivo de reduzir 50% das emissões de dióxido de carbono de origem fóssil em cada década até 2050.
Ou seja, a partir de 2020, deveríamos reduzir globalmente das 36Gton de emissões de dióxido de carbono fóssil para as 18Gton até 2030, de 18Gton para as 9Gton até 2040 e de 9Gton para a ordem das 5Gton até 2050. Será possível? O que aconteceu com a pandemia pode dar-nos essa resposta, da qual precisamos ter perfeita consciência.
Mas o que significa reduzir-se 50% das emissões de origem fóssil em 10 anos? Para se conseguir esse rácio é necessário reduzir as emissões globais em -6.7%/ano, em termos médios. Isto a nível mundial e não apenas a nível nacional ou regional. Ora, -6.7%/ano é o nível de redução alcançado em 2020 com o confinamento na pandemia Covid-19. Ou seja, reduzir as emissões em 50% em 10 anos, seria equivalente a termos uma pandemia por ano, de forma cumulativa, isto é, reduções contínuas relativamente ao ano anterior, em cada ano e até 2050.
Três décadas de redução sucessiva sem interrupções na ordem dos 7%/ano. Apesar de tal absurdo (do ponto de vista prático e económico), ainda há muita gente a afirmar que AINDA É POSSÍVEL, que há soluções. Como em 2022 regressámos ao nível das emissões de 2019 (acima das 36Gton/ano, considerando para além da produção de energia, o flaring e a produção de cimento), e 2023 promete ultrapassar o limiar das 37GTon, para alcançar tal objectivo de redução de emissões até 2030, temos de reduzir agora, a partir de 2024, não 6.7%/ano, mas 9.8%/ano, para compensarmos o aumento dos últimos anos, de 2021 a 2023.
Não só não estamos a reduzir as emissões, como estamos a aumentar e a afastarmo-nos cada vez mais do objectivo a que todos os países (ou quase todos) se propuseram. Não esquecer que, de acordo com os especialistas, as contribuições nacionais para atingir esses objectivos do Acordo de Paris poderão levar-nos para além das metas estabelecidas, ou seja, pode-se atingir entre 2.7 a 3.2 graus Celsius. As contribuições nacionais do Acordo de Paris são medidas que estão aquém do necessário para ficar abaixo dos 2 graus Celsius de aquecimento global e, se possível, abaixo dos 1.5 graus Celsius até 2100.
Quem vai assumir o falhanço? Quem vai vir dizer, daqui a uns anos, que falhámos, que não conseguimos nem de perto nem de longe, alcançar o que todos dizem ser necessário? Tanta promessa, tanto optimismo, tanto discurso positivo, tanta iniciativa… e tamanho esforço na pandemia, que, no final, dá tudo “resto zero”. O clima responde ao crescimento económico, o clima não responde à vontade política. É preciso a verdadeira acção, não chega a intenção!